Análise do longa-metragem"Narradores de Javé"

Este filme traz à tona inúmeras questões como a cultura, a tradição, a memória, o registro, a oralidade. E, principalmente o valor da escolarização, da informação e da leitura.

A ausência da educação formal proporcionou àqueles moradores a perda de tudo o que tinham até então. O apego à terra, a própria história , os vínculos afetivos estabelecidos junto aos vizinhos ao longo dos anos...Tudo estaria mudado a partir do represamento do rio que passa pelo lugar.

Assim, uma das personagens pergunta ao longo da trama: " E quem vai ficar com os nossos mortos? A minha mãe foi enterrada ali.” Essa passagem revela a angústia que cada morador passou a ter a partir da eminência da perda do arraial.

Os opostos são cada vez mais evidentes: Biá ( o letrado , o artista, o alfabetizado, o literário) ,mas também o excluído. Aquele que não tem nada a perder, pois não tinha a princípio nada, sequer amigos. Ironicamente , é o único que possui algo que ninguém poderia tirar: o conhecimento. E é o por esse motivo que irá reestabelecer o diálogo com a comunidade e a possibilidade de ser o "salvador" de toda a situação imposta a eles. Em oposição ao personagem, toda a comunidade (ingênua, analfabeta) apegada aos valores, às histórias e às tradições do passado. De um lado também , Javé ( Nome bíblico de Deus), sem asfalto, sem energia elétrica, água encanada e outros tantos elementos da cidade grande; do outro, o progresso chegando , a represa sendo construída para levar ou manter mais tecnologias a outros lugares.

Fica evidente também durante o enredo, o quanto a população iletrada pode se tornar refém de outras pessoas em vários aspectos e situações quando lhes falta o conhecimento e, consequentemente a autonomia. A falta de escolaridade tirou a chance dos moradores de Javé de argumentar, de preservar a própria história, de moradia e até mesmo o direito ao recebimento de indenização pela terra perdida (no caso deles, a ausência de documentos comprobatórios de posse da terra estrategicamente impossibilitou a eles de receber o dinheiro devido pelo Estado). Fica a pergunta: quem afinal de contas ficou com o dinheiro? Os narradores de Javé foram cruelmente enganados.

Outro equívoco constatado é sobre a ideia dada ao Zaqueu (Representante da comunidade e também analfabeto) para tentar tornar o vilarejo um patrimônio histórico. Não seria um meio para manter aquele povo calado e sem opções, uma vez que esse processo é demorado e bastante burocrático? E se sim, mais uma vez alguém letrado aproveitou-se da ignorância dos moradores ao lançar tal possibilidade?

Finalmente, observa-se a circularidade da ficção. Durante o relato, os moradores contam que foram expulsos da terra pelo Rei de Portugal porque naquela terra perdida tinha muito ouro. Ao término da obra, os moradores são novamente expulsos pelo governo porque tinham o bem mais precioso da atualidade: a água. Os representantes do poder quer seja durante o Império quer seja na República servem aos próprios interesses e não o da população e servem-se dos mecanismos que possuem para obter o que desejam.

Cabe também salientar o simbolismo religioso comum aos povos do passado com os povos do presente de Javé: o sino. Símbolo da religião, da esperança e da fé. Nas duas expulsões que são acometidos, levam o mesmo sino com eles e este sim, poderia ser utilizado como um patrimônio histórico daquele povo de valor “científico” e inquestionável. Novamente, a falta de informação e de conhecimento e até mesmo o sincretismo religioso mantém aqueles moradores num círculo indesejável de desamparo.

Depois que Javé foi inundada, o livro foi escrito, segundo Zaqueu. O que muitos moradores não tinham percebido, não escapa aos olhos de quem assiste ao filme: Antônio Biá é um escritor literário. Transforma os fatos triviais do cotidiano em enunciados criativos e atrativos ao leitor, portanto, jamais conseguiria, mesmo com muito esforço, tornar-se um mero escrevente das narrações daqueles moradores.

Marcela Cristiane
Enviado por Marcela Cristiane em 27/10/2017
Reeditado em 19/10/2021
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