Os Dois e Demais Córregos no documentário Cine São Paulo
CINE SÃO PAULO, documentário, Brasil, 2017. Direção, Pesquisa, Roteiro, Produção de Ricardo Martensen e Felipe Tomazelli.
Sinopse: “Desde 1940, quando seu pai comprou um cinema na cidade de Dois Córregos, interior de São Paulo, a vida de Francisco Teles, o Chico, passou a ser dedicada a esse lugar. A sala é o símbolo da transição do projetor a carvão ao digital, da resistência diante da TV e do videocassete e também da memória afetiva da cidade. O edifício, que está muito deteriorado, precisa ser restaurado e Chico tem a obsessão de fazer o velho cinema voltar a funcionar”. Fontes: Adoro Cinema/Catalogo 22º É Tudo Verdade.
“Se queres ser universal, começa por pintar a tua aldeia”, sugere citação atribuída a Leon Tolstoi. Meus olhos ainda brilham quando relembro cenas de Cine São Paulo. Repensar, analisar, falar de algo memorial que vimos pronto, finalizado, tocante, são tarefas árduas, complexas, delicadas. Sobretudo quando envolvem pessoas que tem idade para ser nossos pais. E cuja realização de um sonho não só nos enche de orgulho, como também aponta perspectivas a quem convalesce de vontade anêmica.
Dois Córregos, apesar de não conhecer, é uma cidade localizada no interior paulista, suponho ser sua composição étnica e de gênero, colorida, participativa, diversificada. Os dados demográficos no seu histórico, mesmo no IBGE não fornecem maiores informações. “Na margem esquerda do rio do Peixe, afluente do rio Jaú, desde meados do século XIX, havia um pouso de tropeiros que demandavam os sertões do oeste paulista ou de Mato Grosso, com o nome de Pousada do Dois Córregos. Nesse local, entre os córregos Lageado e Fundo, José Alves de Mira e Mariano Lopes, proprietários da Fazenda Rio do Peixe, resolveram doar vinte alqueires de terras para formação de um patrimônio. No dia 4 de fevereiro de 1856, foi erguida capela em louvor ao Divino Espírito Santo, a poucas centenas de metros do referido Rio do Peixe. Após o falecimento de José Alves de Mira, sua viúva ratificou a escritura original de doação, na qual os moradores se comprometiam a pagar uma contribuição anual para construção de nova igreja, reconhecida canonicamente em 14 de dezembro de 1866”. Ou seja, a existência da cidade gira em torno de 160 anos.
Dois Córregos é cenário. Segundo os sócios diretores, por não terem conseguido patrocínio, o filme foi financiado com recursos próprios, originários de trabalhos realizados pela produtora. Corretos ou equivocados, previstos ou imprevistos, cinema via de regra resulta de amizade, contatos, acordos e escolhas. A produção e captação não fizeram uma panorâmica dos moradores. Cine São Paulo é quase todo interno. O que talvez justifique a ausência da sua população devidamente representada ao longo do filme, exibido no 22º É Tudo Verdade/2017. O site da prefeitura local também não dispõe informação a respeito. Apenas estima cerca de 27 mil habitantes. Pouco mais de 10% se comparados aos 211 mil da Cidade Tiradentes. A produção e captação ficaram restritas a Seu Chico, personagem e foco central do filme, sua família e pessoas pontuais ligadas ao histórico da sala ou ao projeto documental e restauro do Centro Cultural. Daniele Soffner, coordenadora e uma das responsáveis pelo processo de restauro do espaço, divide cenas e relatos com Seu Chico. Retrato repetido nas cenas, digamos pedagógicas, em passeio monitorado, que reuniu algumas crianças e jovens com olhos brilhantes de curiosidade sobre a história do cinema, o funcionamento da sala de projeção, dentre outros, durante os preparativos para a reinauguração. E quando esta ocorre apenas um jovem negro passa de relance na platéia. Uma aula de dois gumes!
Abrindo parênteses para melhor argumentar – Perante olhares clínicos, o Rio de Janeiro retratado por Walt Disney em “Alô Amigos”, nos anos 1942 ainda gera dúvidas, continua controverso, sujeito à revisão, se considerar debates e apontamentos críticos. As terças-feiras mensais ficaram vazias; o Teste de Audiência no Caixa Belas Artes está fazendo falta!
“São Paulo é Cenário”. Este é o mote no vídeo de 2:25 minutos do Circuito SP Cine, que não difere muito da faxina presente e gritante na filmografia brasileira, da qual nem a Disney escapou. Ao longo da exposição vemos e ouvimos depoimentos e chamadas para o fazer cinematográfico em São Paulo, nas vozes e imagem de doze homens, seis mulheres e nenhuma mulher negra, indígena, japonesa. E continuaria passando como algo normal se a cineasta e roteirista Renata Martins não tivesse chamado a atenção. Boa sacada. Ecoa charge do Mauricio Pestana: “Sua tevê é preto e branco? Não só tem branco”. Quando abrem vaga é sempre para um. Basta vermos atentamente alguns filmes, peças teatrais, telejornais. É como se - Ary Barroso de um lado e Jéferson De no outro - contemplasse todos. Escassez, miopia, provocação, ou vicio publicitário alimentado pelo comodismo? Eis a questão.
Em "Esboço para uma História do Negro no Cinema Brasileiro", a introdução a Dogma Feijoada, de Jefferson De, o pesquisador Noel dos Santos Carvalho elucida: “Com o aperfeiçoamento da linguagem cinematográfica, as imagens indesejáveis, sejam elas de negros, pobres, indígenas, etc., serão paulatinamente eliminadas. O nome técnico para designar esse controle na produção, o sentido das imagens é decupagem. O que, sem exageros, é mais uma das várias formas de dominação simbólica”.
Apontar este lapso pode servir também de alerta não só a futuras produções como também para possíveis questionamentos de comunidades de “minorias” presentes em mostras e festivais no exterior, onde o filme for exibido, e que tendem a boicotar tudo que não os representa. Vide o Oscar. Há quem ainda pense que o branco é a soma de todas as cores. Hoje são outros os tempos. Eles endossam em coro a campanha: “SE NÃO ME VEJO, NÃO COMPRO”. No Brasil, esta consciência ainda está engatinhando, mas já faz algum barulho. – fecho aqui os parênteses.
Independente de gênero e coloração étnica, roteiristas, exibidores, diretoras e diretores, produtoras e produtores devem estar mais atentos aos caminhos por onde passam e pretendem passar suas produções. Estamos no Brasil, não na Suécia ou Escandinávia. Nem todos estão entorpecidos pela plim plim. Mesmo que Cine São Paulo nos remeta aos bons tempos da Sessão da Tarde. Não se trata de cotas nem paternalismos. E sim de coerência com a realidade nacional e exercício do nosso senso de responsabilidade social independente de leis. No filme Seu Chico é questionado sobre a ausência da esposa. Ele explica os motivos que a levaram ao seu distanciamento e da sua falta de participação. Cenas depois somos cúmplices de uma grata surpresa. Rememorando o slogan para uma campanha automotiva: “Está na hora de você rever seus conceitos”.
Um dado lamentável em termos de formação de público, de possível agente multiplicador, cujo leque para sobrevivência e memória do cinema brasileiro necessita ser ampliado o máximo possível. Seu Chico revela à câmera, nas primeiras cenas, quase em tom confidencial, ter um sonho recorrente. Quando ele entra no cinema, encontra tudo no lugar, menos os projetores. Sumiram. Inexplicavelmente não estão mais lá. "Preciso chamar o Freud", pensa falando alto. Neste contexto e tendo por base outra fala dele sobre números que beiraram quase a mil expectadores nas exibições de filmes icônicos e memoráveis. Cujo retorno financeiro ajudou-o comprar uma casa e a manter o cinema enquanto pode enfrentar a concorrência, é de se perguntar: Cadê eles?
Respeito limite ao essencial. “Em cinema, mais é menos”, alertam os mestres. Assisti Cine São Paulo duas vezes. Se a meia greve geral não tivesse me ilhado seriam três! E pretendo assistir outras tantas. Apesar dos louros, sou refratário a Cidade de Deus, filme gentilmente cedido para reabertura do espaço cultural restaurado com esforço titânico do Seu Francisco Teles. Convencer a esposa a ser companheira num projeto incerto, num sonho quase obsoleto é tarefa apenas para grandes heróis. Relaciono o seu Chico com o fotógrafo Wilson Rodrigues, o Buscapé, interpretado pelo ator Alexandre Rodrigues, a meu ver único ponto positivo e referencial no filme. Um espelho para muitos. Afinal, quem não é visto não é lembrado. Em Cine São Paulo, a ausência da população possivelmente diversificada, antes do termo virar moda, me remeteu aos Buscapé provavelmente invisíveis em Dois Córregos e por extensão omitidos no documentário.
Aponto este lapso por representar um percentual a ser pesquisado e documentado nacionalmente. Assim como Seu Chico, eu também fui contaminado na infância pelo cinema. A diferença deve-se que meu contato se deu por meio de ações sócios-educativas de um centro espírita em meados de 1960, na zona norte paulista, onde sessões infantis aos domingos com projetor 16 milímetros faziam parte do programa recreativo. Juntando a turma da rua, calculo que éramos uns dez, que por não termos televisão, aguardávamos ansiosos e batíamos cartão todo fim de semana. Talvez, o foco da entidade era somente realizar ações sociais, sem nenhum tipo de recorte mais agudo. Rebobinando a memória, os anos de chumbo assolaram o país a partir de 1964. Mesmo assim, a entidade plantou semente, gerou lembranças afetivas, passou o bastão. Um ideal permanece.
Coincidentemente, ontem, dia 30 de abril foi domingo. Ao retornar, comentei por alto o filme Cine São Paulo para alguns moradores do condomínio onde moro na Cohab Cidade Tiradentes. Tornei a repetir como se deu meus primeiros contatos com o cinema a quase cinqüenta e dois anos passados e que hoje, desta doença (cinefilia crônica), eu não quero ser curado. A população da Cidade Tiradentes e adjacências está tendo acesso a filmes, em ação recente, graças a programação esporádica no CEU Água Azul e a regular do Circuito SPCine, no Centro de Formação Cultural. Por ter sido projetado para ser bairro dormitório, o maior conjunto habitacional da América Latina não tem salas de exibição. As mais próximas estão nos shoppings Aricanduva, Itaquera, Tatuapé.
Rememorando a conversa, esqueci de mencionar a eles que o documentário também me remeteu ao Cine-Teatro Carlos Gomes, tombado como patrimônio cultural andreense em 1992, onde iniciei meus estudos audiovisuais pela ELCV (Escola Livre de Cinema e Vídeo de Santo André), tema e personagem em dois curtas-metragens, “A Despedida”, e “O Homem de Touca”, ambos ainda não finalizados. Como também serviu de cenário e de set para outros mais produzidos pelas turmas 1 a 4 (disponíveis no Youtube). O local foi desocupado por questões de segurança e permanece abandonado pelo poder público! Alguns Francisco Teles e Spike Lee, esposas, familiares, amigos, simpatizantes fazem-se necessário ali e em outras localidades do país para tomar a frente. No centro velho de São Paulo, o Art Palácio, Cine Ipiranga, o Comodoro, o Marrocos, o Metrópole, o Paissandu, apenas para citar, estão largados.
Nesses tempos tumultuados por conflitos de valores, gerados por embates políticos e crise financeira mundial, onde a busca por relações humanas mais saudáveis e construtivas, e de incentivo a novos meios de empreendedorismo, Cine São Paulo serve de estímulo e referência a iniciativas individuais, coletivas, familiares. Hoje, segunda-feira, 1º de maio (dentro de mais doze dias – comunidades negras e afrodescendentes interioranas tradicionais – comemorarão os 129 anos de Enganação da Escravatura), o Repórter Brasil, da rede EBC, exibiu matéria que reportou ao documentário e a fala do Amir Labaki sobre o logo do festival “É Tudo Verdade/2017”, o Kinotrem, de Dziga Vertov. Na Internet encontrei menções correlatas a Alexander Medvekine. Um grupo de jovens do interior da Bahia, através de projeto sociocultural, está aprendendo história da imagem e técnicas fotográficas num trem restaurado e adaptado para ser estúdio e sala de aula. O Foto Trem.
Na tela momentos vividos no local em companhia do pai, a quem ele se refere com muito orgulho, como as sessões de "Ben-Hur"; a canção "Que Será Será" em espanhol na voz de Doris Day em "O Homem Que Sabia Demais"; Mazzaroppi em "O Casamento do Jeca", o áudio de "Superman - o filme", nos remetem a um passado que nos enche de lembranças e saudosismos. Será que Seu Chico exibiu “A Moreninha”, “Barravento”, “Compasso de Espera”, "No Calor da Noite", Assalto Ao Trem Pagador”, “Ganga Zumba”, “O Pagador de Promessas”, “Ao Mestre Com Carinho” ou "Adivinhe Quem Vem Para Jantar"? Só o caderno do Seu Chico onde todos os filmes exibidos foram em detalhe anotados poderá nos responder.
Estes apontamentos não pretendem diminuir ou depreciar Cine São Paulo. O filme é merecedor de méritos. Citando Seu Chico “Não devemos nos prender as coisas da terra”. Apesar da lacuna, reitero aqui os emocionados votos expressos presencialmente nas dependências da Reserva Cultural e Centro Cultural São Paulo: "Se depender de torcida, já ganhou!" aos diretores Ricardo Martensen e Felipe Tomazelli. Cine São Paulo é mais que um documentário. Lembra Cinema Paradiso, O Artista, A Invenção de Hugo Cabret, La La Land, o esforço e obra de cineastas do quilate de Ousmane Sembene, Adélia Sampaio, Yasujiro Ozu, Oscar Micheaux, Tizuka Yamasaki, Zózimo Bulbul, apenas para citar. Cine São Paulo é uma declaração de amor para quem ama e vive pelo cinema e também para quem precisa de uma razão para amar e viver. E o melhor. Grita desesperadamente em português; plagiando Belchior.
Cabeças Falantes permanece aberto para colaborar na divulgação do filme quando ele entrar em circuito. Que o Cine São Paulo – Centro Cultural Nilson Prado Telles, que me remete ao Instituto Pombas Urbanas – Centro Cultural Arte Em Construção e ao Núcleo Cultural Força Ativa – Biblioteca Comunitária Solano Trindade, situados na Cohab Cidade Tiradentes, torne-se também fomentador e difusor dos artistas e do povo de Dois Córregos e região. Histórias e muitos causos com certeza, têm.
Oubí Inaê Kibuko, 01/05/201, Cidade Tiradentes para o mundo.
Agradecimentos à Benedita Lopes pela revisão.
Publicado no Cabeças Falantes: www.tamboresfalantes.blogspot.com.br