Reminiscências sobre "O Mar Que Banha a Ilha de Goré", de Kiusam de Oliveira.

Por Oubí Inaê Kibuko

A Lady Deise Souza Camargo (Brasil) e Josefa Guimas Marrato Macôo (Moçambique): Mestras-matriarcas-guerreiras-baobás, in memorian.

“Quando papai falava da mamãe,

dizia que ela era tão bonita que nunca teria que acender o fogão.

Só de entrar em casa, a água começava a ferver”.

Frase do filme Indomável Sonhadora, de Benh Zeitlin

...Biblioteca Mário de Andrade a zona leste. Antes de embarcar no metrô Anhangabaú contemplo o Largo da Memória do alto da Rua Xavier de Toledo e dou voltas pelo seu entorno me xingando por ter esquecido a câmera! O local é ótimo para fotos noturnas. Apalpo os livros na bolsa. Prossigo meu trajeto. Gosto de ler nos meios de transporte público. Geralmente do lado esquerdo, na janela e observando a paisagem. Pausa na leitura de “Cortina de Fumaça” e “Sem Fôlego”, roteiros do escritor Paul Auster que resultaram nos filmes homônimos. Cinema e Literatura ou cinema literário vem sendo meu foco de afeto e pesquisa. Vi os filmes. Agora leio o livro, entrelaçado com “Introdução à Teoria do Cinema”, de Robert Stam. Subsídios para estudo aos curtas: "O Moleque", adaptação livre do conto homônimo de Lima Barreto e "Jardim Beleléu", baseado num conto do Cuti, e dirigidos por Ari Candido Fernandes. O chamado para tecer comentários ao livro infanto-juvenil “O Mar Que Banha a Ilha de Goré”, de Kiusam de Oliveira e ilustrado por Taisa Borges, Editora Peirópolis, 2014, 1ª Edição, em pauta para o próximo encontro do Quilomboletras precisa ser atendido e já devia ter sido feito. Meu problema não é começar a escrever, e sim, parar de escrever. Algo como ir à Salvador. O dilema não é ir; é voltar. Imagino como vai ser o dia em que eu for pra África. Maria das Dores, OUBIgrato pelo puxão de orelha!...

“Kiusam de Oliveira é artista multimídia, arte-educadora, bailarina, coreógrafa e contadora de histórias. Doutora em Educação e mestre em Psicologia pela USP, tem ampla experiência em sala de aula, da educação infantil ao nível superior. Especialista nas temáticas das relações étnico-raciais, de gênero, da corporeidade e do candomblé de ketu, é ativista do movimento negro há quase 30 anos. Sobre o tema, ministra cursos, palestras, oficinas e workshops em congressos e universidades em todo o país. Criadora e diretora do programa de rádio Povinho de Ketu - as africanidades brasileiras no ar, transmitido pelas rádios públicas nacionais, é bailarina e coreógrafa no show Tecnomacumba, de Rita Ribeiro, e autora de Omo-Oba: histórias de princesas (2009), recomendado pela FNLIJ/2010 e selecionado para o PNBE/2011”. Fonte: site da Editora Peirópolis.

Folheando o livro, por algum motivo ainda inexplicado, me senti remetido a Felicie e Victor, protagonistas de “A Bailarina”. Animação dirigida por Eric Summer e Éric Warin: “Felicie é uma menina órfã apaixonada pela dança. Ao lado do seu melhor amigo Victor, que deseja se tornar um grande inventor, eles desenvolvem um grande plano de fuga para conseguirem o que querem. Eles fogem do orfanato em que vivem para Paris, a Cidade Luz, onde a torre Eiffel ainda está sendo construída. Felicie terá que se superar e aprender com seus erros para tornar o seu grande sonho em realidade: ser uma grande bailarina da Ópera Nacional de Paris”. Talvez seja alguma relação com público-alvo ou falta de referência. Os bailarinos que tive contato mais próximo foram Elísio Pita, Ismael Ivo, Luciene Ramos Silva, Roberta Silva. Dentre eles conheci Afro 2, Babalotim, Bandalá, Dandara, Ogban, Oriashé... Grupos de dança afro pé no chão, que nada ou pouco devem às sapatilhas...

Em síntese a história aborda com pitadas de amor e crítica social sobre amizade, confiança, lealdade, superação e, sobretudo transformação. Temas que tomei contato através do primeiro livro infantil ganho e lido graças a sorteio no ensino primário entre meus nove ou dez anos: O Circo de Bonecos, do médico e dramaturgo Oscar Von Pfuhl, Ed. Brasiliense, 1964. Mesmo tendo escrito uma dezena de peças, há ainda pouca informação sobre ele. Venho de família doméstica e afeita à música popular. Em casa não havia livros nem leitores. Tomei gosto pela leitura na rua. O Circo ainda me faz companhia. Preciso inclusive encaderná-lo.

De memória puxo fios posteriores: O Pequeno Príncipe, Confissões De Um Vira-lata, O Negrinho do Pastoreio, Memórias De Um Cabo de Vassoura, algumas obras de Monteiro Lobato, gibis diversificados e bolsilivros de bang bang. Com a “idade crítica”, citando Cidinha da Silva em uma das crônicas de “Cada Tridente No Seu Lugar” entrei em crise e bani os desenhos animados e os heróis das séries televisivas. Virei a cara para Batman e Robin, Zé Colméia, Família Adams, Super Homem, Flipper, Space Ghost, Os Herculóides, Perdidos no Espaço, Manda Chuva, Speedy Racer, Ultraman, Os Flintstones, National Kid, Johnny Quest, A Feiticeira, Os Impossíveis, Jeannie é um gênio, Super Mouse, os faroestes espaguetes, dentre outros. Eram espelhos que não refletiam a nossa cara preta. Em gráficos éramos pontos minúsculos. Os Jacksons foram gotas de café num oceano de leite. Uma reportagem envolvendo Raquel Welch e Jim Brown durante as filmagens de "Cem Rifles", 1969, citando a atriz como preconceituosa foi o estopim. Ela era uma das minhas musas. Pedi divórcio. Eu tinha um pôster enorme dela colado na cabeceira da minha cama.

Contudo, mal sabia eu o mau que estava fazendo para mim mesmo. Lacunas ficaram abertas e não havia nada a altura, seja em cinema, tevê ou em literatura para aquela fratura exposta! Os Blaxplotations incisivos e os pioneiros do cinema afro-americano e negro brasileiro, eu só conheceria décadas depois. Nas rodas de lembranças com os da minha idade, se não fazia cara de paisagem, mudava de assunto quando era programa preferido na televisão. Mas no fundo eu bem queria participar da conversa. As cenas espocavam como fogos juninos. Lembrava das peripécias, dos recursos mirabolantes que recorríamos quando não tínhamos o aparelho em casa. O jeito foi fazer as pazes como também a olha-los por outra ótica. A fotografia tem me ensinado que o mundo pode ser visto por outros ângulos. Basta procurar os que nos dão prazer ou algo tipo “Uma Janela Para O Céu” (The other side of the mountain, 1975), para nos referendarmos no que pudermos deles apreender...

Aos poucos, livros produzidos e publicados por mãos negras, em parceria com etnias solidárias, fuçando aqui e ali foram tímida e aleatoriamente aparecendo: “Palmares – em quadrinhos” – de Krinas e Togo Yoruba; “Esta História Eu Não Conhecia”, Mazza Produções; O Menino de Palmares, de Isa Silveira Leal; “Pai Adão Era Nagô” e “Cinco Cantigas Para Você Contar”, de Inaldete Pinheiro de Andrade; “Pretinha, eu?”, de Júlio Emílio Braz; “A Cor da Ternura” e “Leite do Peito”, de Geni Guimarães; “A Pelada Peluda no Largo da Bola”, de Cuti (que não figura no verbete a ele atribuído na Wikipédia); “Jogo Duro”, de Lia Zatz; “Violência Histórica”, de Maurício Pestana; “Benjamin: O Filho da Felicidade”, de Heloísa Pires Lima; “Cumbe” e “Noite Luz”, de Marcelo D’Salete; e Kiusam de Oliveira. Dela já li “O Mundo no Black Power de Tayó” e “Omo Obá”. Se Marcelo prima em seus traços pelo preto e branco, onde o grafismo namora o grafite, as ilustrações aos livros e histórias de Kiusam expressam a cosmogonia colorida de um panteão orixalizante.

Tempo de refletir, romper paradigmas, incendiar a senzala da mesmice, buscar e encontrar soluções em vez de reclamar de braços cruzados ou esperar por milagres messiânicos, de ocupar lugares na casa grande que ainda nos são devidos. No zapzap do controle uma referência exibida pela TV Brasil aponta caminhos. “Meu Lugar’ (My Place) é uma série baseada no clássico de mesmo nome da literatura infantil australiana, de autoria de Nadia Wheatle e Donna Rawlins, que conta a história de 13 crianças que vivem num lugar ao Sul de Sydney que tem mais de 130 anos. Cada uma das crianças tem algum tipo de problema e todas se escondem sempre debaixo de uma mesma figueira antiga. E cada uma delas tem uma história diferente para contar sobre o lugar aonde vive”.

Textualmente Kiusam subverte a tradição narrativa. A criação do universo e atuação nele, além de ativa, é majoritariamente feminina. Um bom refletor de aspirações do Movimento Negro e subsídios a potencialidades para negros em movimento. Coletivo e individuo caminham juntos, mesmo em estradas paralelas. Entretanto, aceito de um lado o leque feminino que a autora nos apresenta (Diversidade existe antes do termo virar moda. O Gênesis judaico-cristão e toda a sua filosofia patriarcal deve ser questionado) e contesto do outro. Respeito especificidades, porém sou contra qualquer tipo de apartheid. Sou defensor da emancipação feminina, no entanto reitero meu aceno que parte do machismo no Brasil e no mundo (uma contradição que não se discute com ambas as partes) ainda se deve também muito às mulheres transmissoras dos piores preconceitos aos filhos no meio em que vive, antes do berço. O que eu chamo de machismo uterino e manutenção de zonas de poder. Os homens têm as deles e as mulheres idem. Em círculos tradicionais, onde os papeis sociais são delimitados, os cenários tendem a ser mais evidentes.

Cito artigo-depoimento de Cláudia Gavenas “E quando o machismo vem da mulher?”, em Blogueiras Feministas: "Tive experiências muito desagradáveis com o machismo oriundo de mulheres, até mesmo daquelas que me causavam admiração ou a quem manifestava apreço, ou que eram amigas de longa data. E dentre tais experiências, as que mais se repetiram foram através de duras palavras. Palavras até mesmo de ódio, agressivas, ásperas. Palavras capazes de denegrir e de ferir. E foi difícil demais para mim aprender a lidar com isso". Quem em ambiente escolar ou de trabalho sob comando feminino já não foi alvo de assédio moral ou em lares de predomínio matriarcal já não se viu na parede com a desarticuladora frase: "Está na minha casa, comendo da minha comida paga com o meu dinheiro e vem falar mal de..."?

Decerto que a classe masculina tem deixado a desejar. Basta termos humildade para ouvirmos Gonzaguinha: "Não quero a razão pois eu sei o quanto estou errado/O quanto já fiz destruir/Só sinto no ar o momento em que o copo está cheio/E que já não dá mais pra engolir". O feminicídio a cada dia faz mais uma vítima!

Como as questões do feminismo negro diferem conceitual e historicamente do feminismo branco; a educação de águia é oposta a de galinha; o Dia Internacional da Mulher é um e o Dia da Mulher Africana é outro, incluindo o etnocídio das nações indígenas brasileiras; homens negros também carregam a cruz da solidão e citando uma frase do filme “Indomável Sonhadora” (Beasts of the Southern Wild), de Benh Zeitlin: "O Universo depende de que tudo se encaixe perfeitamente. Se uma peça se quebrar, por menor que seja, o universo inteiro se partirá", voltemos ao livro.

Aline Silva, no artigo "Literatura Infantil Negra", publicado em 2014 no Blogueiras Negras, compartilha experiências que norteiam reflexões: "No meu caminhar como professora de educação infantil, sempre questionei o papel daqueles livros de contos de fadas onde os personagens principais e de maior credibilidade eram sempre brancos, com cabelos lisos, na maioria das vezes claros e compridos. Primeiro, eu comecei a trabalhar, em sala de aula, e só depois eu passei a estudar, ainda na faculdade, sobre a história da África que é a minha história. E então, a cada momento que via meus alunos e alunas não sendo representados (as) por aqueles contos, fui me sentindo profundamente incomodada e com uma grande responsabilidade em mudar aquele contexto. Passei então a ensinar aos meus alunos a outra versão da história que normalmente não é contada, a nossa história, e substituí da sala de aula aqueles livros que não os representavam por livros onde eles pudessem se ver e se espelhar de forma positiva, livre e autêntica, sem estereótipos".

Na literatura de Kiusam Deus vira Deusa, da menor a maior em termos hierárquicos. E tudo é movimento. “O Mundo no Black Power de Tayó” é o que se pode dizer de filosofia de vida, aliada a ações afirmativas pelo olhar de uma menina. Já “Omo Obá” é todo protagonizado por mulheres-orixás mirins interativas em contextos diversos. E como toda criança que se preza, elas recorrem a todo tipo de estratagemas quando são postas de lado ou em condição secundária. Se não lideram, estão lado a lado em posição igualitária. Quando se trata de “Brincar de Viver”, seja homem ou mulher um não é maior nem melhor que o outro. Vide a canção de Guilherme Arantes na voz da Bethânia.

Em “O Mar Que Banha a Ilha de Goré” não é diferente. A começar pela capa temos um misto ou apropriação mítica onde se mesclam Sereia e Yemanjá. A figura submersa é difusa. As deusas das águas também são outras. Dentre elas Obá e Oxum. A submersão pode ser alusiva a espaço uterino e a maternidade como forma de resistência.

Segundo a Wikipédia: "Ilha de Goreia ou Ilha de Gorée, localiza-se ao largo da costa do Senegal, em frente a Dakar, na África Ocidental. É um símbolo do tráfico negreiro. Foi, entre os séculos XV e XIX, um dos maiores centros de comércio de escravos do continente, a partir de uma feitoria fundada pelos Portugueses. Esse entreposto foi, ao longo dos séculos, conquistado e administrado por Neerlandeses, Ingleses e Franceses. A sua arquitetura é caracterizada pelo contraste entre as sombrias casernas dos escravos e as elegantes mansões dos seus mercadores. Goreia, classificada em 1978 como Patrimônio da Humanidade é um símbolo da exploração humana e uma escola para as gerações atuais, com grande importância para a Diáspora africana".

O prefácio do etnólogo Carlos Moore, pagina 6, segundo parágrafo, corrobora nossa impressão nas três ultimas linhas da citação anterior: “Esta terceira obra da engenhosa escritora e contadora de histórias Kiusam de Oliveira vem auxiliar mães, pais e educadores a elevar a autoestima de crianças negras brasileiras, demolida no dia a dia, inclusive no espaço escolar. Essas crianças — que não vêem seus rostos, seus cabelos ou sua cor refletidos com carinho em nenhum lugar do imaginário de um país que as nega e as rejeita — encontram nesse livro uma resposta ao vazio sobre sua história, antes e depois da traumática chegada de seus ancestrais africanos num mundo regido pela escravização negra”. Essas crianças — que não vêem seus rostos, seus cabelos ou sua cor refletidos com carinho em nenhum lugar do imaginário de um país que as nega e as rejeita — encontram neste livro delicadamente ilustrado pela artista Taisa Borges, uma resposta ao vazio sobre sua história, antes e depois da traumática chegada de seus ancestrais africanos num mundo regido pela escravização negra”.

O livro é semente, e seus leitores, terra em plantio de dentro para fora. Se uma terra for bem preparada, a semente for boa e resistente a intempéries, o fruto será ótimo. A começar pela comovente e referencial dedicatória: “Para minha mãe, Erdi!” Esta mãe, com certeza é uma pessoa iluminada e deve estar muito orgulhosa da filha que gerou! Não só para si, mas também para o mundo...

Nas páginas seguintes, a partir do segundo parágrafo da pagina 11, temos ao longo historias e retratos memoriais que mais se parecem a diálogos poéticos entre filha e mãe, mãe e filha ou entre ambas, onde ficção, vivências e referencias se misturam. Na subversão de Kiusam, Mar, substantivo masculino, vira feminino e com inquestionável status materno: “A Mãe Mar finge uma distração eu não lhe pertence, lançando seu olhar além do horizonte, sem dar a menor atenção aos alcances daqueles finos seres radiantes”.

Ao longo da história, Mãe Mar, é citada 16 vezes. A última é no terceiro parágrafo da pagina 36: “E tudo ainda segue exatamente como antes. Porque, lânguidos, os raios do sol continuam a repousar suas línguas candentes sobre o corpo-mar fresco e sereno da Mãe Mar, lambendo-o como fazem as felinas ao banhar, com amor, suas crias”. Como a dizer: Você vai desmentir sua mãe?

Gosto de fotografar troncos de árvores. Ainda não encontrei explicações nem consigo resistir. Sinto-me atraído. As ilustrações do baobá na página 14 e 15 e da menina contemplando uma flor de baobá na página 21 reforçam tanto a necessidade quanto o desejo de conhecer este ilustre familiar ou parente desconhecido. Vivemos próximo e sabemos mais dos outros e dos seus costumes, culturas, referências, que nós de nós mesmos. Um drama como alude de forma sutil a sinopse presente na contra capa do livro: “(...) o leitor poderá encontrar o caminho para compreender a história afro-brasileira e ajudar delicadamente incluir o negro e sua trajetória traumática no imaginário da formação da cultura brasileira”. Nunca vi um baobá além das falas dos antigos em rodas de conversa, em filmes africanos e fotos na Internet. No Brasil, sei da sua existência em alguns estados e municípios. Um vídeo no Youtube informa seu plantio na inauguração em 20/11/2009 do Parque da Consciência Negra – Cidade Tiradentes. “O nome é uma homenagem à população local, formada em boa parte por descendentes de negros”. Oubí Inaê Kibuko faz menção como figura de linguagem em Reencontro, conto publicado na série Cadernos Negros: “Pessoas e coisas que tornam substanciais as nossas vidas... são aquelas que têm a essência de um baobá”. A escritora Heloisa Pires Lima foi mais longe e lhe dedicou dois livros: “A semente que veio da África” e “O coração do Baobá”.

Segundo a Wikipédia: "No Recife, o baobá da Praça da República é uma possível fonte de inspiração de Saint Exupéry, quando por ali passou, ao escrever "O pequeno príncipe". (...) As árvores de baobá da espécie africana Adansonia digitata foram trazidas pelos sacerdotes africanos para o Brasil e foram plantadas em locais específicos para o culto das religiões africanas. No candomblé é considerada uma árvore sagrada (ossê, em iorubá e akpassatin, em fon), e nunca deve ser cortada ou arrancada”.

Lembro ter pedido um fruto de baobá aos que tem ido a África ou vindo de lã para assim ao menos conhecê-lo. O exemplo vem de judeus, japoneses, dentre outros povos. Mas até agora não fui atendido. Talvez não entenderam ou então é pelos preceitos que ele carrega.

A narração da página 17, primeiro e segundo parágrafo para os diálogos entre Kika e Laith: “O tempo... Ah, o tempo! Ele passou tão rápido que Kika nem percebeu o momento em que a Mãe Mar recuou. O tempo é insuficiente diante de tantas emoções ainda por vir, Mãe Mar sabe disso. É nesse momento que um jovem se aproxima. (...) É um garoto de uns 13 anos, que nas horas vagas ganha uns trocados como guia turístico. Assim que deitou seus olhos sobre a menina sentiu algo estranho, como se já a conhecesse”. Essa descrição me remeteu a cenas e passagens alusivas, presentes no documentário “Atlântico Negro – Na rota dos Orixás”, de Renato Barbieri.

Coincidência ou referência? Na sociedade da informação, do garimpo e domínio intelectual por extensão, existem dados e fatos da história do negro no mundo que valem ouro!... No site CONTIoutra encontrei um artigo que talvez referende a citação ao sonho de Kika ouvindo contação de histórias de um baobá, antevistas por Laith na página 26, segundo parágrafo, oitava linha: “(...) Ele certamente contará histórias de um tempo em que as mulheres faziam parte de uma sociedade secreta chamada Gélédés, e de quando as amazonas dominaram o solo africano”. Aqui temos uma incursão histórica e a literatura, enquanto ficção, recorre a referencias subjetivas que induzem o leitor mais atento a buscar informações objetivas. O que é Gélédés? Amazonas em África?

A primeira pode ser alusiva à organização homônima existente em São Paulo, à qual Kiusam de Oliveira concedeu entrevista em março/2015 ao seu portal de notícias de como surgiu a concepção do livro “O mar que banha a Ilha de Goré", seção Questões de Gênero - Mulher Negra: "Em 2010, quando participei do Festival Mundial de Artes Negras, em Dakar, no Senegal. "Na ocasião tive a oportunidade de visitar a Ilha da Goré e foi uma experiência maravilhosa, de muita inspiração". Quanto ao significado, assim informa um verbete na Wikipédia: “Gelede é originalmente uma forma de sociedade secreta feminina de caráter religioso existente nas sociedades tradicionais yorubas. Expressa o poder feminino sobre a fertilidade da terra, a procriação e o bem estar da comunidade. Gelede é um festival anual homenageando "nossas mães" (awon iya wa), não tanto pela sua maternidade, mas como ancião feminino. Ela ocorre durante a época seca (março-maio) entre os Yorubas do sudoeste da Nigéria e o vizinho Benin”.

Quanto a segunda, eis uma plausível referencia que até então eu desconhecia: “A África não é só famosa por suas rainhas, mas também por suas guerreiras. Desde o Egito antigo, passando pela Núbia, Nigéria, Congo, Gana, Guiné Bissau, África do Sul e Benin. O continente tem uma história de luta das mulheres que eram combatentes assim como os homens. As Guerreiras do Daomé, também conhecidas como as guerreiras Mino, são um exemplo disso. Foram soldados valentes e disciplinadas. A crueldade em sua forma de lutar as colocava a frente no campo de batalha contra os colonos brancos europeus. Este exército de mulheres foi criado no início do século XVII, e por quase 200 anos dominou e prevaleceu invicto. As Amazonas do Daomé são um dos poucos exércitos de mulheres documentado da história moderna. O único propósito destas guerreiras era a guerra. Elas eram educadas e treinadas para a luta. Não podiam ter filhos ou se casar e suas habilidades físicas vieram para superar os guerreiros homens. Rifles Winchester que obtidos da venda de escravos, facas, lanças, arcos e flechas eram as suas armas. Após as batalhas, bebiam o sangue de seus inimigos e, em seguida, expunham suas cabeças como um troféu de guerra. Algumas fontes indicam que o número de guerreiras Mino chegou a quatro mil e outros dizem que elas chegaram a casa de seis mil mulheres guerreiras. Durante dois séculos, essas tropas foram poderosas na África Ocidental até que desapareceu em 15 de janeiro de 1894. O reino do Daomé perdeu a batalha contra a França e tornou-se uma colônia, agora Benin”.

Outra referência ou simples coincidência: Pracatum, páginas 26 a 28, é uma letra tocada e cantada por três meninos, cuja ilustração deles vemos nas páginas 22 e 23, sob o título O Tambor - Sabedoria: “Ao ouvir aquela conversa, os três meninos catadores de brilhos pedem licença para três rapazes donos de djembês que estão ali perto e preparam uma surpresa para Kika: começam a tocar”. O dialogo entre Kika e Laith expressam a força da educação e identidade cultural que em África vem de berço. E na diáspora, por falta de continuidade, corre o risco de se perder: “Por aqui, o tambor é um meio de comunicação, lembra? Desde bebês convivemos com eles, nos momentos de alegria ou tristeza. Vamos ouvir o que eles têm a nos dizer”. Pracatum também pode ser alusão a organização homônima criada por Carlinhos Brown “(...) que identificando o potencial dos moradores, propõe, através da música, resgatar a herança cultural do Candeal e aproveitar elementos da realidade local para promover a transformação sócio-econômica”. Site da Pracatum.

No entanto, salvo equivoco e resquícios da “Violência Histórica”, a que coletividade negra ainda está exposta e é submetida, a composição, além de extensa em termos contextuais soa forçada e pesada para crianças de 4, 5, 6 anos. Mesmo para as crianças que vivem ou são frutos de “condições sub-humanas”. Grosso modo, nessa idade, o mundo infantil se resume a diversão e amizade. Tudo é motivo de brincadeira. Mesmo onde falta afeto, alimento, moradia... Até quando as mais velhas são precocemente responsáveis pelas mais novas. Elas ainda não tem noção histórica e geográfica apurada “(...) atravessaram nos tumbeiros e o oceano Atlântico”. Nem estão contaminadas “(...) pela vida, pela sobrevivência, pela liberdade” do mundo adulto. Isto são mazelas e aspirações deles. Estudos de 2012 apontaram que nada menos que 70% das crianças não conhecem a figura paterna. Sobretudo em relações competitivas e conflitantes, onde a criança é usada como escudo, fantoche, marionete em plataformas políticas, ações de pensão alimentícia, guerras de alienação parental, estelionatos emocionais e suas seqüelas...

Questiono com base no artigo “Literatura infanto-juvenil”, de Felipe Araújo, publicado no site Infoescola: "O mercado editorial infanto-juvenil apresenta seus livros com base na faixa etária dos leitores. As obras, quando direcionadas a crianças com idade entre dois e quatro anos, contêm, na maioria das vezes, imagens coloridas, fotos e poucas palavras. No caso das obras direcionadas aos adolescentes, há presença de textos e fotos como forma de ampliar o entendimento dos jovens leitores”.

Neste sentido, as vozes dos três meninos Pracatum soam verborrágica e cabível a papagaios ou bonecos ventríloquos. Não sou nenhum especialista em educação infantil. Sem desmerecer, a autora, doutora em Educação, a meu ver deu voz a militante. Cito Emília Ferreiro em suas “Reflexões Sobre Alfabetização”, pg. 32: “Os adultos já alfabetizados têm tendência a reduzir o conhecimento do leitor ao conhecimento das letras e seu valor sonoro convencional”. Que observações fariam os profissionais e teóricos de Pedagogia mais críticos? Lembro Mandela: "Ninguém nasce odiando outra pessoa pela cor de sua pele, ou por sua origem, ou sua religião. Para odiar, as pessoas precisam aprender, e se elas aprendem a odiar, podem ser ensinadas a amar, pois o amor chega mais naturalmente ao coração humano do que o seu oposto. A bondade humana é uma chama que pode ser oculta, jamais extinta”. Mesmo apoiando-se nos mestres, tenho dúvidas. Uma criança de 4, 5, 6 anos se expressaria assim? Ou então, a exemplo de “A Bailarina”, animação que nos remete a outras, busca-se atingir públicos diversos: o infantil, o juvenil, o adulto, e o idoso. O quarto leva os dois primeiros ao cinema e acaba carteiro do terceiro, responsável direto pela formação do primeiro e segundo.

O djembê ilustrado na página 29. A figura mexeu meu baú. Até então eu conhecia apenas atabaques e tumbadoras. Salvo lapso descobri este instrumento pelas mãos do Balé Afro Koteban, em Osasco, por ocasião de seu primeiro Cd. Por isso, quando em 20 de novembro de 2016, Kiusam de Oliveira e o grupo Morabeza Nação, levaram “O Mundo no Black Power de Tayó”, em forma de musical ao palco do Auditório Ibirapuera, eles simplesmente mexeram com uma criança de sessenta anos!

A matéria de capa da revista Realidade, nº 64, julho/1971, estampa um casal negro com o slogan: “Prêto é a cor!” Nota: O acento circunflexo é ortografia da época. Na página 20, frases ilustram o ensaio fotográfico de David Zingg com jogadores de futebol, crianças, artistas e manequins negros. Destaque a um texto: "Nós chegamos ao Brasil em 1538, vindos da África. Sofremos muito até poder viver sem chicote e sem correntes. Quando conseguimos, nós começamos a sorrir. Hoje estamos em todo lugar: na industria, no comércio, nas artes. Sem chicote e sem correntes“. Em Atlântico Negro, os escravos antes de partir para o desconhecido, eram forçados a dar três voltas em torno de uma árvore para esquecer o que e de onde eram. Kiusam fez caminho inverso como a dizer que os escravocratas falharam em tal intento. Feito quebra-cabeças a história do negro se remonta.

Li “O Mar Que Banha A Ilha de Gore”, à noite, no trajeto centro-bairro, em 90 minutos. Quando cheguei ao Terminal Cidade Tiradentes, na última página, enquanto os passageiros desciam, refestelei-me no banco e repassei todos os títulos do livro: O Mar – Ancoragem; O Baobá – Acolhida; O Tambor – Sabedoria; O Apito – Despedida. Notei que as ilustrações das páginas 21 e 29 não tem título. Contemplativo, lembrei de “Kiriku e a Feiticeira”, do documentário “Pitanga”, O Dia de Jerusa, da Fada Manu. Um artigo de Renata Martins e Juliana Gonçalves - "O racismo apaga, a gente reescreve" – sobre a cineasta Adélia Sampaio desfilou na tela da memória: "A cada dia que passa, a palavra privilégio tem sido utilizada para ilustrar os lugares sociais estabelecidos desde então; poder viver em um mundo onde não há preocupação com a etnia das referências, é um privilégio. Ser universitária negra e estudar ao longo de quatro anos e não ter nenhuma artista, técnica, intelectual negra que tenha construído narrativas e pensamento, é um prejuízo. E, de prejuízo em prejuízo, deixamos de ser roteiristas e protagonistas de nossas próprias histórias e quando isso acontece, os antagonistas e personagens secundários, roubam a trama".

Negro ou Preto não é só batuque, samba, rap, funk, jazz, choro. É tudo isso e muito mais... Engrosso o coro dos que apreciam musica instrumental de gêneros diversos, incluindo a erudita. O que é bom tende a tornar-se um clássico. Lembrando mestre Solano: "(...) e eu estou perdido/ dentro de mim mesmo/porque não sei pintar/a 5ª Sinfonia de Beethoven (...) Ouçam todos os que me entendem/Eu amo a 5ª Sinfonia de Beethoven/e não quero limites para viver". E para alimentar este hobby ouço a Cultura FM quase o dia inteiro, frequento concertos na Sala São Paulo e no Teatro Municipal e sei bem desse “roubo”. Em quase toda a programação e com raras exceções, ouço e vejo sempre o “Eclipse”, do mestre Carlos Assumpção reivindicando ao fundo: “Olho no espelho e não me vejo/Não sou eu quem lá está/Senhores onde estão os meus tambores/Onde estão meus orixás/Onde Olorum/Onde o meu modo de viver/Onde as minhas asas negras e belas/Com que costumava voar?” Porém, como diria Conceição Evaristo: “Os brancos donos de tudo” não respondem. Agem como já cantou Chico César: "Quando um preto fala/O branco cala ou deixa a sala/Com veludo nos tamancos". Trabalhamos, pagamos impostos e outros tributos, consumimos, votamos. Contudo e em parte, graças a frágil e baixa representatividade parlamentar, com migalhas somos restituídos. "Negros, O Brasil Nos Deve Milhões!", alerta Claudete Alves. Peço licença poética a Jorge nos tempos em que era Ben: E se a Leci no próximo pleito não se reeleger, o que vai acontecer? Independente de gênero, e até que alguma autora escreva algo à altura e por outro ângulo, "Frente Negra Brasileira", de Marcio Barbosa; "...E Disse o Velho Militante José Correia, de Cuti e mestre José Correia Leite, são leituras obrigatórias e referenciais. Tanto para candidatos quanto para eleitores afrodescendentes e simpatizantes à causa negra. Videm o último pleito municipal. Nossa cadeira está vazia! Tema bom para reflexões e debates com as minas e os manos do Núcleo Cultural Força Ativa, Vai Vai, Musicalia, Aliança Negra Posse, Camisa Verde, Chic Show, Os Carlos, Fala Negão Fala Mulher, Black Mad, Peruche, Geledés, Johnny, Unegro, Nenê da Vila Matilde, Mistura Fina, Soweto, Educafro, Fórum África, Pastoral Afro, Candomblecistas, Umbadistas, Pentecostais Negros... Penso em “Tudo que aprendemos juntos”, filme de Marcelo Durst, 2015. Relembro a trilha sonora do letreiro ao final. Na batida, Erudito e Hip Hop se mesclaram. Um ensaio do Ilú Obá de Min sob o Viaduto do Chá fez o chão tremer. Como ficaria Pracatum transcrito em poema sinfônico num dueto de Marly Montoni e Virgínia Rodrigues? Elizandra, é tempo de ampliar a “Agenda da Periferia” em forma e conteúdo! A começar pela Orquestra Sinfônica de Heliópolis, a Jazz Sinfônica, a Jovem Tom Jobim. Mesmo pingado, tem irmãs e irmãos nelas que merecem holofotes...

O Mar Que Banha a Ilha de Goré tem um que de circularidade. Termina com a mesmo frase que iniciou: Serenou o mar... De verde-jade, serenou o mar“. Me lembrou Amanda Silva, colega de trabalho, capoeirista, gestante de pai nigeriano, fã confessa de Clara Nunes. Cujas canções ela canta com afinada emoção: "O mar serenou quando ela pisou na areia/Quem samba na beira do mar é sereia/O pescador não tem medo/É segredo se volta ou se fica no fundo do mar/Ao ver a morena bonita sambando/Se explica que não vai pescar/Deixa o mar serenar/O mar serenou quando ela pisou na areia/Quem samba na beira do mar é sereia"

“A leitura do mundo precede a leitura da palavra”, afirmou Paulo Freire na obra intitulada “A Importância do Ato de Ler”, 1988. Em leque, os livros de autoras e autores negros lidos até aqui, presentes no meu modesto acervo ou vistos nas caminhadas abriram-se e perfilaram em roteiros vivos. Houve um tempo em que rainhas e reis, princesas e príncipes da Disney e sua caucasiolândia reinavam absolutos. Nossa ignorância e comodismo, alguns movidos por temores e receios, os alimentou. Esses tempos mudaram. Vi-me maravilhado como o menino Totó, em Cinema Paradiso (cuja versão do diretor sou doido para assistir. Além de 50 minutos adicionais, ela tem vários extras. Uma aula!). Nesta levada evoco em pensamento autoras e diretoras negras (cujos nomes omito para não endossar o poema Rotina, de Esmeralda Ribeiro: “Tem sempre um homem me dizendo o que fazer”. Ficam a critério e pesquisa de quem tiver paciência e generosidade para chegar até aqui). Tento imaginar como seria a contação de histórias da quase tricentenária Irmandade do Rosário dos Homens Pretos, das comunidades remanescentes de quilombo – Cafundó e Ivoporanduva, ou da “Roça do Ventura”, o quase bicentenário terreiro Seja Undê – apenas para citar, pelo olhar feminino infanto-juvenil? Mas ao contrario do Totó, a Kika, e o Laith me levam para outro lugar. Pareceu um sonho. Estava em sets de filmagem entre produtores e assistentes agitados; atrizes e atores concentrados, regidos irmanados por diretoras e diretores negros emponderados, depois do habitual AÇÃO; gritando por mérito e direito, cheios de amor e orgulho: CORTA!!! Era a cobradora, uma negona alta e bem-servida, bonita e risonha, chamando-me a atenção. Todos os passageiros já haviam descido e o ônibus iria recolher...

Nestes 170 anos de Chiquinha Gonzaga e 120 de Pixinguinha, ainda sem uma cinebiografia a altura, ainda sem uma cinebiografia a altura, penso num piano Bosendorfer Imperial, o preferido de Arthur Moreira Lima e de Oscar Peterson. Quantas e quais notas a leitura de um livro toca no teclado das nossas emoções? Só mestra Beth Bell regendo mestre Lumumba tocando kalimba saberão responder...

OUBIgrato! OUBIgrato! OUBIgrato! “Valeu a pena!” - Cidade Tiradentes, abril/2017.

Originalmente publicado em Cabeças Falantes: http://tamboresfalantes.blogspot.com/2017/04/reminiscencias-sobre-o-mar-que-banha.html