Análise do poema “Não te amo”, de Almeida Garrett

NÃO TE AMO

Não te amo, quero-te: o amor vem d'alma.

E eu n'alma – tenho a calma,

A calma – do jazigo.

Ai!, não te amo, não.

Não te amo, quero-te: o amor é vida.

E a vida – nem sentida

A trago eu já comigo.

Ai!, não te amo, não!

Ai!, não te amo, não; e só te quero

De um querer bruto e fero

Que o sangue me devora,

Não chega ao coração.

Não te amo. És bela; e eu não te amo, ó bela.

Quem ama a aziaga estrela

Que lhe luz na má hora

Da sua perdição?

E quero-te, e não te amo, que é forçado,

De mau feitiço azado

Este indigno furor.

Mas oh!, não te amo, não.

E infame sou, porque te quero; e tanto

Que de mim tenho espanto,

De ti medo e terror...

Mas amar!... não te amo, não.

(Almeida Garrett, em Folhas Caídas)

“Não te amo”, de Almeida Garrett, trata-se de um poema de vinte e quatro versos distribuídos em seis estrofes. Sua métrica é irregular (não totalmente). A distribuição das rimas se dá de oito em oito versos, do seguinte modo: AABCDDBC. Tal configuração permite-nos compreender a inovação formal do poema, o desprendimento do mesmo em relação às normas clássicas de composição poemática, já que o poema não se relaciona com a estética árcade que, por sua vez, está atrelada à estética clássica.

O eu lírico de “Não te amo”, desde o primeiro verso, se dirige à amada, como num grito de libertação do sentimento que o consome, atitude essa que caracteriza a poesia romântica de Garrett. No poema “Não te amo”, de Almeida Garret, visualiza-se um eu lírico centrado no próprio sentimento conflituoso. O poema “Não te amo” aponta exatamente para um eu lírico envolvido pela irracionalidade característica do sentimento amoroso. Assim, o eu lírico parece estar em conflito consigo mesmo, já que afirma não amar a persona à qual o poema se dirige, mas, para negar tal amor, faz uso de uma linguagem carregada de emotividade e passionalidade, demonstrando a incerteza quanto a esse não amor.

Encontra-se a forma verbal em primeira pessoa do singular já no primeiro verso: “amo”. Logo, conclui-se que a universalidade caracteristicamente árcade presente em certos poemas de Garrett dá lugar à exaltação de um subjetivismo exacerbado por parte do eu lírico. Revela-se, portanto, uma atitude carregada de egocentrismo por parte do eu lírico, o que se permite reiterar sua vinculação à estética romântica. Durante todo o poema, o eu lírico está centrado no próprio sentimento, cultuando seu “eu” interior, prevalecendo o individualismo e omitindo toda e qualquer manifestação sobre a amada.

Além disso, observa-se a relação estabelecida entre a morte e a amada, como que a revelar o escapismo psicológico ao qual recorre o eu lírico. No primeiro verso, o “amar” está relacionado à “alma” e o querer (“quero-te”) está relacionado ao corpo. Já no segundo verso, o eu lírico relaciona a “alma” com a “calma”, e, no terceiro verso, a “calma” ao “jazigo”, que introduz no poema o campo semântico da morte. Entre os versos 5 e 7, encontra-se uma segunda referência ao campo semântico da morte, ainda relacionando a amada ao momento fúnebre. À medida que o eu lírico afirma que traz consigo “a vida – nem sentida” nota-se um sentir mais atrelado à morte do que à vida. Típico do homem romântico, o eu lírico revela-se em uma constante fuga da vida através da projeção de seu eu na morte.

Percebe-se o predomínio da linguagem emocional em detrimento da linguagem racional, entre outras coisas, por conta da quantidade de sinais de pontuação de ordem afetiva que se apresentam ao longo do poema. Assim, reitera-se o ponto de exclamação nos versos 4, 8, 9, 20 e 24. O uso de exclamações está acompanhado de interjeições que vem ratificar a ideia da emoção que envolve o eu lírico em suspiros típicos do sentimento amoroso, como “Ai!” (versos 4, 8, 9 e 24).

A reiteração da expressão “Ai! Não te amo, não!”, que vem a se configurar como um refrão no poema em questão, demonstra o estado conflituoso em que está envolvido o eu lírico no sentido do uso constante de uma expressão ao longo do poema para que ele próprio se convença de que não ama a pessoa a que se refere. O refrão constitui-se, assim, como um mecanismo de autopersuasão do eu lírico, em que se procura racionalizar o conflito vivido. Além do ponto de exclamação, encontra-se a presença do ponto de interrogação (verso 16) e das reticências (verso 23), os quais reiteram a ideia de que o eu lírico está distante do pensamento lógico e da razão, e está próximo do estado emocional.

Além disso, observa-se a presença do elemento noturno, também caracteristicamente romântico, na medida em que o eu lírico metaforiza a amada utilizando o vocábulo “estrela” (verso 14). Em seguida, encontra-se uma série de elementos que se leva a associar essa amada a algo que funde o encantado (em uma acepção ao feitiço, ao envolvimento, quiçá a uma sensualidade malograda) ao sublime, o que também é fundamental na estética romântica. Assim, ao mesmo tempo em que é bela (verso 13), essa amada funciona como uma espécie de elemento de mau agouro, o que é possível depreender-se pelos seguintes adjetivos: “aziaga” que caracteriza a “estrela” no verso 14, e “azado” que se refere a “feitiço” no verso 18. Outrossim, percebe-se o distanciamento do ideal de beleza clássica que essa amada apresenta, pois na medida em que sua beleza é capaz de causar “medo” e “terror”, a desarmonia está instalada nesse ser. Ao contrário dessa beleza desarmônica presente no poema de Garrett, lembre-se que a harmonia constitui elemento básico da beleza clássica, a qual é muito recorrente na estética árcade.

Ao comparar alguns poemas de Garrett na obra Folhas caídas, verifica-se que há a passagem de poemas com características árcades para poemas com características românticas, o que aferre uma transformação do estado de espírito do eu lírico representado. Encontra-se em alguns poemas dele um eu lírico em estado de paz provocado pelo ameno cenário natural, enquanto que no poema “Não te amo” observa-se a representação do conflito desse eu lírico, causado pela presença e pela negação do sentimento amoroso. Tal comparação revela-se pertinente em função de ser possível encontrar nos poemas da obra Folhas Caídas a transição das fases estéticas da obra de Almeida Garrett, que transita do árcade ao romântico ao longo de sua produção poética.

Referências bibliográficas:

GARRETT, Almeida. Folhas caídas. Portugal: Mem Martins-Publicações Europa-América, 1987.