O POLIGLOTA
O poliglota segredou duas palavras numa língua estranha, o som pareceu suspender-se no ar como o fumo lento dum cigarro deixando dois círculos, até se dissolverem lentamente. Ela sonhava com um ser capaz de dizer essas duas palavras duma linguagem própria dos sonhos, onde a imaginação se suspende numa respiração de ideias sensíveis, corpo do pensamento.
Esta invenção nasceu como um corpo, não passando duma ideia. A ideia visitou-a alimentando um espaço próximo às línguas faladas, mas trazia uma língua nova capaz de dizer "a água na boca". Por isso era como uma nascente e começou-a a visitar em sonhos que lhe deram vida e ela começou a ficar mais apetitosa, a gostar de se ver ao espelho na linguagem duma metamorfose do corpo. A expressão ainda esperava um rosto ou adquiria-o por empréstimo, as feições caras duma cara.
Dar vida à sedução, criar o poliglota como um sedutor, o personagem nascera duma ficção ganhando realidade, a história daria um conto. A moral da história viria sem falha ocupar lugar no "enredo", como uma rede este enredo seria uma armadilha: a moral da história seria moral, esta falaria de sentimentos. Sentimentos alheios ao rosto expressivo, ao rasto diurno duma fantasia nocturna onde o sonho acordava no sono trazendo da noite para o dia a ideia do conto.
Pode ter sido assim, pode ter sido doutro modo. Era no entanto necessário dar um sentido crítico à abordagem pessoal duma pessoa, pois o personagem só podia ser uma pessoa embora, felino, pudesse miar nos telhados?, ladrar na rua?, uivar à lua? Lobisomem, vampiro ou zombi, a beleza pertencia à ideia como a ideia pertencia ao corpo. Contudo, o personagem rapidamente ganhou uma expressão intraduzível no rosto ou corpo, a língua nova e estranha.
Ela imaginou-se uma terceira, quarta, quinta, sexta, sábado ou domingo, dia de semana imaginária, palavra nova articulada a partir dessas duas palavras numa língua estranha e era o seu nome. Também ela entraria no seu conto, mesmo se seria ele a contá-lo. Para esse efeito adormeceu à noite depois de lê-lo, desta vez desafiara o sonho de imaginá-lo real, capaz de ser lido. Dera-lhe a ler o conto, lia-o agora com outros olhos. O conto já não lhe pertencia, o sentido crítico inicial perdia-se, a moral alterava-se, o sono começava a reclamar o sonho ou vice-versa: esta conversa consigo mesma surgia-lhe como um devaneio.
Como lhe veio a ideia do conto, assim acabava agora o conto. Poderia ser uma parábola, uma história com moral. O sonho era ter agora um sono com sonhos, ela iria à procura das duas palavras dessa língua a inventar. Também poderia revisitar o seu conto, seguir o poliglota, viajar pelo mundo. Pois essa viagem fazia parte dum percurso que como um rio desaguava na sua boca, trazendo para o mundo a imaginação. Seria ela a criar as duas palavras que poria na boca do poliglota: Até amanhã!
Deu por si a despedir-se dela, ele seria o poliglota, ela amanhã leria este "Até amanhã" e poderia ver aí as duas palavras dessa língua estranha que duas pessoas dizem uma à outra quando se começam a inventar. Aqui a leitura deve ser feita em voz baixa, o conto está pronto a ser contado mas ainda tem de existir primeiro. Falta apenas a compreensão do mesmo, essa moral das parábolas que é a explicação das mesmas. Um padre, um santo, um anjo, o primeiro vira lobisomem, o santo vampiro, o anjo é zombi como às vezes os representam nos filmes.
Quem é ela que faço-a nascer dum conto onde me fiz nascer? Se para as duas palavras duma língua estranha fui capaz de inventar um "até amanhã", não é possível traduzir em palavras quem nos cria criadores e simultaneamente personagens. Deixo-a como uma sombra no meu corpo, uma luz que me ilumina de fora: será você?, serás tu? Serão estas as duas palavras: tu e você? Mistérios que nenhuma língua desvenda e provavelmente são necessários para dar significado aos contos, pois quando são bons nunca são óbvios, diz o poliglota.
O poliglota segredou duas palavras numa língua estranha, o som pareceu suspender-se no ar como o fumo lento dum cigarro deixando dois círculos, até se dissolverem lentamente. Ela sonhava com um ser capaz de dizer essas duas palavras duma linguagem própria dos sonhos, onde a imaginação se suspende numa respiração de ideias sensíveis, corpo do pensamento.
Esta invenção nasceu como um corpo, não passando duma ideia. A ideia visitou-a alimentando um espaço próximo às línguas faladas, mas trazia uma língua nova capaz de dizer "a água na boca". Por isso era como uma nascente e começou-a a visitar em sonhos que lhe deram vida e ela começou a ficar mais apetitosa, a gostar de se ver ao espelho na linguagem duma metamorfose do corpo. A expressão ainda esperava um rosto ou adquiria-o por empréstimo, as feições caras duma cara.
Dar vida à sedução, criar o poliglota como um sedutor, o personagem nascera duma ficção ganhando realidade, a história daria um conto. A moral da história viria sem falha ocupar lugar no "enredo", como uma rede este enredo seria uma armadilha: a moral da história seria moral, esta falaria de sentimentos. Sentimentos alheios ao rosto expressivo, ao rasto diurno duma fantasia nocturna onde o sonho acordava no sono trazendo da noite para o dia a ideia do conto.
Pode ter sido assim, pode ter sido doutro modo. Era no entanto necessário dar um sentido crítico à abordagem pessoal duma pessoa, pois o personagem só podia ser uma pessoa embora, felino, pudesse miar nos telhados?, ladrar na rua?, uivar à lua? Lobisomem, vampiro ou zombi, a beleza pertencia à ideia como a ideia pertencia ao corpo. Contudo, o personagem rapidamente ganhou uma expressão intraduzível no rosto ou corpo, a língua nova e estranha.
Ela imaginou-se uma terceira, quarta, quinta, sexta, sábado ou domingo, dia de semana imaginária, palavra nova articulada a partir dessas duas palavras numa língua estranha e era o seu nome. Também ela entraria no seu conto, mesmo se seria ele a contá-lo. Para esse efeito adormeceu à noite depois de lê-lo, desta vez desafiara o sonho de imaginá-lo real, capaz de ser lido. Dera-lhe a ler o conto, lia-o agora com outros olhos. O conto já não lhe pertencia, o sentido crítico inicial perdia-se, a moral alterava-se, o sono começava a reclamar o sonho ou vice-versa: esta conversa consigo mesma surgia-lhe como um devaneio.
Como lhe veio a ideia do conto, assim acabava agora o conto. Poderia ser uma parábola, uma história com moral. O sonho era ter agora um sono com sonhos, ela iria à procura das duas palavras dessa língua a inventar. Também poderia revisitar o seu conto, seguir o poliglota, viajar pelo mundo. Pois essa viagem fazia parte dum percurso que como um rio desaguava na sua boca, trazendo para o mundo a imaginação. Seria ela a criar as duas palavras que poria na boca do poliglota: Até amanhã!
Deu por si a despedir-se dela, ele seria o poliglota, ela amanhã leria este "Até amanhã" e poderia ver aí as duas palavras dessa língua estranha que duas pessoas dizem uma à outra quando se começam a inventar. Aqui a leitura deve ser feita em voz baixa, o conto está pronto a ser contado mas ainda tem de existir primeiro. Falta apenas a compreensão do mesmo, essa moral das parábolas que é a explicação das mesmas. Um padre, um santo, um anjo, o primeiro vira lobisomem, o santo vampiro, o anjo é zombi como às vezes os representam nos filmes.
Quem é ela que faço-a nascer dum conto onde me fiz nascer? Se para as duas palavras duma língua estranha fui capaz de inventar um "até amanhã", não é possível traduzir em palavras quem nos cria criadores e simultaneamente personagens. Deixo-a como uma sombra no meu corpo, uma luz que me ilumina de fora: será você?, serás tu? Serão estas as duas palavras: tu e você? Mistérios que nenhuma língua desvenda e provavelmente são necessários para dar significado aos contos, pois quando são bons nunca são óbvios, diz o poliglota.
{Foto: "continuação"...
Vou hoje (18.12.06) incluir no dia 18
http://www.recantodasletras.com.br/visualizar.php?idt=306313}