Actualidade (e utilidade) de uma "receita" antiga - área de um triângulo so com os lados
Actualidade (e utilidade) de uma “receita” antiga
Continua a ensinar-se, preferencialmente e tanto quanto me é dado saber, na grande maioria dos casos, exclusivamente, às crianças, que a área de um triângulo se calcula multiplicando o comprimento da base (um qualquer dos lados) pela altura respectiva (o segmento da perpendicular a essa base compreendido entre o pé da perpendicular e o vértice oposto) e dividindo o produto por dois. Admitindo abusivamente que esse procedimento, devidamente ensinado, permite resolver todos os problemas de determinação da área de um triângulo em ambas as dimensões, mental e material, da questão, ainda assim subsiste a laboriosa obrigatoriedade de determinar o comprimento daquela altura, indicação irrelevante na grande maioria dos casos. A medição dos lados de um triângulo, seja no papel seja num qualquer terreno, não oferece a ninguém qualquer dificuldade e é suficiente para o cálculo da respectiva área. Se interessar a determinação da altura respeitante a qualquer dos lados basta dividir a área pelo comprimento desse lado e multiplicar o resultado por dois.
Segundo alguns autores (p.ex. www.matematica.br/historia/arquimedes.html) a “receita” que referimos era já conhecida no tempo de Arquimedes (287 a 212 AC), mas veio mais tarde a ser denominada de fórmula de Heron ou teorema de Heron (Alexandria, séc. I) o mesmo que inventou de facto a máquina a vapor sob a forma de um “brinquedo” – a eolipila – cujo princípio usou para fazer o milagre de abrir as portas de um templo acendendo o fogo no altar. É possível que a Portugal o conhecimento da “receita” tenha chegado através dos árabes, antes de Pedro Nunes (1502-1578) mas é sabido que este a utilizou.
O procedimento é descrito pela pena de Camilo Castelo Branco (na tradução, de 1873, do Dicionário Universal de Educação e Ensino de E. M. Campagne, Livraria Internacional – entrada Triangulo): “Para se obter a superfície de um triângulo, sendo dados os seus três lados, basta fazer a semi-soma dos três lados, diminuir separadamente a este resultado cada um dos três lados, o que dá três restos, multiplicar entre si estes três restos, multiplicar ainda este produto pela semi-soma dos três lados e extrair depois a raiz quadrada ao produto”. Ainda ali se afirma a seguir: “Esta regra é de grande importância prática na agrimensura porque não exige a observação dos ângulos no cálculo da superfície de um triângulo, o que reclama o emprego de instrumentos mais complexos do que os das medidas do comprimento dos lados”.
Para os menos avessos a fórmulas o processo pode ser resumido pela expressão seguinte: A= raiz quadrada de [S (S-a) (S-b) (S-c)] em que A é a área do triângulo, S é metade do perímetro ou a semi-soma dos comprimentos dos lados, a, b e c são as medidas do comprimento de cada um dos três lados; a raiz quadrada do produto dos quatro factores englobados pelos parêntesis rectos é o resultado pretendido.
Para eliminar qualquer dúvida na interpretação da “receita” consideremos o triângulo com os lados de 50, 60 e 70 m e calculemos a respectiva área. S ou a semi-soma a que Camilo se refere é S = (50+60+70)/2 = 180/2 = 90; S-a = 90-50 = 40; S-b = 90-60 =30; S-c=90-70=20; o produto entre parêntesis rectos é de 90x40x30x20 = 2160000; a raiz quadrada deste número (2160000) é 1469,6938, área pretendida do triângulo, em metros quadrados, por os lados terem sido dado em metros lineares. A raiz quadrada dum número, como é sabido, é outro número que multiplicado por si próprio dá como resultado o número inicial. O algoritmo que permite calcular a raiz quadrada com a aproximação que se queira é trabalhoso e cada vez menos conhecido porque quase todas as máquinas de calcular dispõem da tecla que permite executar a operação num cálculo rápido. Mesmo sem essa tecla é por vezes mais fácil e rápido o cálculo por tentativas (com máquina de calcular) do que com o algoritmo adequado.
A justificação ou demonstração da validade da “receita” ou da fórmula usada pode ser feita de diversos modos. José Cloves Verde Saraiva, da Universidade estadual do Maranhão, apresenta na net sob o título “Brahmagupta para todos” uma demonstração da fórmula de Heron com base na Trigonometria (lei dos cossenos para um triângulo), seguida da extensão, atribuída a Brahmagupta (séc. VII) da fórmula de Heron a quadriláteros inscritos numa circunferência – recorde-se que um triângulo é o caso particular de um quadrilátero com um lado nulo e é sempre inscrito numa circunferência de centro no ponto de encontro das perpendiculares ao meio de quaisquer dos seus dois lados. O autor destas linhas apresentou em 2001, com o nome oficial, uma demonstração [nota(1)] apenas com recurso ao teorema de Pitágoras, casos particulares da multiplicação e ao manuseamento de expressões literais, que se envia a quem o solicitar; mas uma outra, com recurso aos mesmos conhecimentos elementares e algumas semelhanças, por recorrer aos mesmos conhecimentos, pode ser vista na net no endereço http://pessoal.sercomtel.com.br/matemática/geometria/heron/heron.htm .
Mais importante do que a justificação é o conhecimento da “receita” que habilita na prática qualquer pessoa a determinar a área de superfícies de contornos irregulares, dividindo-a em triângulos fáceis de identificar com pregos ou estacas em cada um dos seus vértices.
(1) - (IN)COMPETÊNCIAS DO ENSINO BÁSICO E A ACTUALIDADE DE UMA RECEITA ANTIGA, O PROFESSOR, 2005, Nº90, III Série, Maio_Agosto, pp. 27-30