A trajetória pela linguagem que a criança faz ao longo da infância
Ao examinar a trajetória pela linguagem que a criança faz ao longo da infância, muito se ganha em relação à compreensão das possibilidades de construção do novo que um adulto pode vir a experimentar através de seus esforços sistemáticos. Em especial, observando a subversão da linguagem que as crianças fazem no frescor de sua enunciação que se produz de acordo com a lógica daquele para quem o sistema lingüístico não está ainda plenamente constituído. Podemos compreender que as palavras são velhas apenas na medida em que nós, os falantes adultos supõem que o signo lingüístico não se decompõe.
Ao contrário do que acontece com o adulto, as crianças pequenas mantêm uma relação bastante diferenciada com os signos, pois, geralmente desmontam-nos para criar outros significantes. Ou seja: no que se refere à criação do novo, não se trata do fato que sejamos vítimas da impossibilidade de sermos nós mesmos a origem e a fonte de um novo léxico, mas sim, de sermos prisioneiros dos significados que, para cada um de nós, se cristalizaram ao longo de nossa história.
Posso citar para evidenciar o exemplo do jogo de compor e decompor. Nesse tipo de jogo os signos lingüísticos costumam gerar muito prazer àquelas crianças cujas idades estão compreendidas mais ou menos entre 03 e 10 anos, fato este que se torna visível, observando, por exemplo, as adivinhas que versam sobre a materialidade das palavras com as quais costumam se divertir entre si.
A facilidade que os pequenos têm para memorizar brincadeiras de adivinhações aponta para o fato de que, confrontadas com os signos, as crianças têm condições de perceber que, ao se tratar de linguagem, há muito mais do que os conteúdos por ela veiculados. Como, para elas, os sentidos compartilhados numa dada comunidade lingüística ainda não são cristalizados, têm maior facilidade para depreender aquilo que Foucault (1989) chama de "o gramatical puro", podendo, portanto, deixar com que as palavras atravessem-nas de forma diferenciada. Esta permeabilidade dos pequenos à mobilidade da linguagem é o que faz com que, em sua boca, palavras gastas possam comparecer de modo, no mínimo, bastante arejado. Por este motivo, a criança reinventa a sua linguagem e supera a ingenuidade do adulto tirando proveito de sua própria ignorância.
Os exemplos que se seguem procuram exemplificar momentos nos quais uma criança pode ultrapassar os parâmetros de compreensão oferecidos por sua família e, de algum modo, sustentar uma questão própria. Diferentes entre si, têm em comum o fato de que, em seu exercício, ora de modo acidental, ora de modo deliberado, a criança pôde se lançar para além da situação imediata de sua relação social com outros, além de sua família.
A criança se deixa atravessar pelos dispositivos da linguagem, condição necessária para o advento da criação, está bastante relacionado com a possibilidade de demonstrar interesse pelas propriedades do sistema em si.
Por este motivo, vou iniciar esta exploração sobre as palavras dos novos narrando uma historieta, ocorrida quando sua protagonista tinha três anos e cinco meses, cuja principal característica é o fato de que a criança, embora bastante jovem, demonstrou maior facilidade de tomar a linguagem como objeto de análise específico do que sua mãe pôde supor em um primeiro momento.
Trata-se do seguinte episódio:
Surpreendida pela falta da babá e precisando fechar notas de fim de bimestre, a mãe, professora, se instala na mesa da sala de jantar. Enquanto a mãe trabalha, a filha desenha com giz de cera em uma grande folha de papel craft. Estão ambas em silêncio. De repente, a filha inicia o seguinte diálogo:
— Mãe, o que é "o"?
— Como assim "o", filha? Você está falando do "o" que aparece em "o sorvete", "o menino"?
— Não, não é desse tipo de "o".
— (!) Então não sei.
(...minutos em silêncio....)
— E "pariu" o que é?
— "Pariu" é "teve filhotinho". A gente diz, por exemplo, que a cadela pariu, quando ela teve filhotinhos. Entendeu?
— Entendi.
(...outros minutos em silêncio....)
— E "puta" o que é? (com tom mais baixo para pronunciar "puta").
— Isso é uma palavra para xingar. Tem gente que xinga o outro de bobo, de idiota... Tem gente que xinga de "puta". (Meio brava) Mas isso não é palavra para você falar.
— Tudo bem, mãe, eu não falo, mas é esse o "o" que eu quero saber ...
— Esse "o"? Que "o"? Não entendi nada. (Perplexa) Conta já e direito onde foi que você ouviu isso!
— Hoje, na hora que o papai me buscou na escola. Ele passou na frente de um homem. Daí o homem botou a cabeça pra fora do carro e gritou pra ele assim, bem altão mesmo: "Puta que o pariu"! É esse "o" que eu nunca ouvi. O que é esse "o"?
(...outros minutos em silêncio, para refletir como explicar isso....)
— Esse "o" quer dizer você. Para o homem não berrar "puta que pariu você", ele gritou "o". É para o xingamento não ficar muito comprido. Mais alguma dúvida?
(...novo silêncio....)
— Sim. Se por acaso tivesse sido você que tivesse me buscado na escola hoje e se fosse você quem fizesse coisa besteira com o carro, o homem ia ter gritado com você também, não ia?
— Acho que sim....
— Então, se ele tivesse gritado com você e não com o papai, ele tinha berrado a mesma coisa ou tinha berrado "puta que a pariu"?
— Ele teria que ter berrado "a pariu", mas acho que quem grita assim na rua não sabe disso. Entendeu?
— Entendi.
Para quem não está habituado a prestar atenção na fineza de raciocínio que as crianças podem ter, é no mínimo surpreendente que, confrontada com a expressão "puta que o pariu!", o interesse de L. não recaiu sobre seu significado, mas sim, sobre a linguagem propriamente dita. No caso, a menina sustentou um longo diálogo para descobrir como se faz o feminino do pronome pessoal do caso oblíquo no sistema lingüístico que rege a Língua Portuguesa.
A menina teve de fazer um longo caminho para contextualizar o sintagma no qual ouviu o "o" (objeto de seu interesse), coisa que só foi possível por ela ter insistido em uma série de tentativas visando superar a perplexidade, preconceitos e ignorância de sua mãe. É, portanto, para além da compreensão imediata de sua genitora, que L. pôde sustentar uma interrogação sobre o que significa falar, que, por sua vez, abre as portas para a ordem desejante (Lacan, 1960-61).
Coube à mãe apenas confiar em sua filha e continuar respondendo como pôde. Neste sentido, pode-se mostrar que a mãe proporciona à criança aproximar-se da via do desejo não por suas respostas em si, mas, em primeiro lugar, por supor na criança, mesmo em tenra idade, um sujeito capaz de saber.
Sempre que falamos, estamos em pleno terreno do equívoco generalizado, embora nem sempre notemos isso. Normalmente, quando isso acontece, causa vergonha ou embaraço, pois, não gostamos de dar a ver a instabilidade no campo dos sentidos, em especial, quando é causada por nossa ignorância lingüística ou "enciclopédica". Naqueles momentos nos quais poderíamos tirar proveito para aprender, nós adultos nos calamos.
Em diversas culturas, os primeiros anos da vida do humano consistem no momento em que, através do que pensamos ser um uso da linguagem sistemático, deliberado e calculado, estamos tentando fazer com que a criança assuma, como se fossem suas, as mesmas velhas e gastas palavras que um dia nós assumimos. É por meio desta operação que transmitimos o saber inconsciente (Cf. Lacan, 1969-70), aparelho que, ao organizar os modos de satisfação da criança, permite que a vida cumpra seu ciclo.
Pelo menos até alguns anos atrás, a escola e demais aparelhos destinados à educação em sentido amplo (confissões religiosas, clubes de escoteiros, agremiações esportivas, etc.) têm se unido para tentar "domesticar o olhar" daquele que chega ao mundo, transmitindo-lhe uma reverência às palavras de ordem que são importantes naquela comunidade lingüística que, por sua vez, fornece àquele que ali foi incluído um parâmetro de comportamento coerente com uma matriz de sentido que faz o novato ver o mundo do mesmo modo como o via a geração anterior.
Ao obrigar que uma criança se refira a diversos ideais — coisa que, evidentemente, só pode fazer por meio das palavras — as diversas instituições que se encarregam de apresentar os construtos culturais acumulados através dos tempos à criança obrigam-na, em certa medida, a se colocar como origem de enunciados que a precederam em muitos séculos e, deste modo, tendem a criar obstáculos a possibilidade de que o recém-chegado inicie um novo ciclo de criação, que é condição para a sustentação das suas próprias palavras. Lacan (1964) chama este processo de "assujeitamento", esclarecendo que se trata de um mecanismo composto por dois tempos: o da alienação (assunção do sentido social de um significante) e o da separação (quebra do signo lingüístico e conseqüente advento do sexual. Afinal, o recém chegado precisa do outro para sobreviver.
Referências bibliográficas:
FOUCAULT, M. As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas. São Paulo: Martins Fontes, 1987.
LACAN, J. (1956). O Seminário sobre "A carta roubada". In : Escritos. São Paulo : Perspectiva, 1978, pp. 17-67.
__________. (1960-61). O Seminário. Livro 8. A Transferência. Rio de Janeiro : Jorge Zahar Editor, 1992.
__________. (1964). O Seminário. Livro 11. Os quatro conceitos fundamentais da Psicanálise. Rio de Janeiro : Jorge Zahar Editor, 1979.
__________. (1969-70). O Seminário. Livro 17. O avesso da Psicanálise. Rio de Janeiro : Jorge Zahar Editor, 1992.
__________. (1972-73). O Seminário. Livro 20 Mais. Ainda. Rio de Janeiro : Jorge Zahar Editor, 1982.
PÊCHEUX, M. (1990). O Discurso. Estrutura ou Acontecimento. Campinas, SP : Pontes, 1990.
RIOLFI, C. R. (2005). Erro de leitura ou equívoco constitutivo (de sujeito)? Apontamentos sobre a singularidade na fala de uma criança. In: LIMA, R.C.C.P. (org). Leitura: múltiplos olhares. (título provisório) Campinas, SP: Mercado de Letras, no prelo.
SAUSSURE, F. (1989) Curso de Lingüística Geral. São Paulo: Cultrix.