CAPÍTULO I, II - EPOPÉIA

I

A EBRIEDADE DO AMOR

Céu.

Estavam duelando à esgrima, o Ódio e o Amor. Este tinha sua mãe, Paz,a assistir, senhorita alta e levemente magra, que se sentava num dos tronos da direita. Naquela noite, também o pai de Ódio, Rancor, também assistia o duelo. A noite era ainda recém-nascida, como uma flor que nem ainda corou sua estética, mas seus espinhos já estão à mostra. Estão os esgrimistas devidamente armados.

AMOR

Convoquei-lhe a tal duelo, pois minha mãe disse que desmereceste a nossa família. Peço por favor, que não o repita, pois não estou o fazendo com a tua quadrilha... Mas, não, não serei fraco como das outras vezes, agora só teu sangue no chão mostrará a cor vermelha da qual falam os poemas sobre as rosas!

ÓDIO

As rosas? Os poemas? Verás é a cor da minha vitória a untar esta espada de ouro que empunho. Veja que os diamantes da minha bainha entorpecem a meu gozo, de profunda beleza. E veja que nada mais é a beleza que o brilho que vem das pedras, mas não a sensação que traz o brilho, e sim a vaidade que docemente nos aquece a alma; por saber que valem mais que meros olhos humanos.

AMOR

A que ou a quem se destina tuas vãs palavras, alma pobre? És ser indigno de merecer versos corretos. Veja que nunca tiveste a sensação boa do prazer, não o prazer de ter, mas o de amar a quem se tem. O teu mal é estar sempre consciente do que falas... Oh! e eu me pergunto se isso é verdadeiro argumento... Ser sóbrio e fazer maldades? Calcular o prejuízo e causar perda ao que somente a outros, não a ti, deixará saudades? Ou ser ébrio a ponto de não saber o que fala, mas saber que o que se fala não fere... Não fere a outro e fere-nos?...Oh!...

ÓDIO

Como é ingênuo em dizer tal conflito desnecessário. Meu irmão, venha a mim qualquer problema seu, querido, porém não trate de tal coisa... estar sóbrio é estar sábio. Ser, veja de que lhe consolam: De raro toque, de muita saudade, de muito desprezo, de muita maldade, de pouca ou nenhuma realidade.

AMOR

Mas, de que me adianta estar sóbrio e a sofrer?

ÓDIO

Também se sofre estando ébrio, o que iguala as posições. O que desempata nossas alegações e faz com que a bandeira minha, da minha sobriedade, vingue, é a possibilidade de responder a seu sofrimento neste estado. O que a embriaguez não oferece.

AMOR

Vai! Enfia esta lâmina dourada no meu peito inútil, que já, por minha decisão, não voltará a amar. Pois então me tire este peito amante, já que mudei minha consciência para a sobriedade. Não preciso mais do peito, agora, me resta a cabeça.

ÓDIO

(Vibra a espada, corta o ar, e com ele rasga o peito de Amor) Enfio esta espada no teu peito para que nunca mais tenhas a ousadia errada de estar ébrio. Vá-se alma que de nada vale no mundo, se teus olhos negros fossem preciosos como pérolas, te perdoaria, serias de valia. Como as pombas que morrem e nascem, e nada nos oferecem.

AMOR

Resta-me aceitar a Sina que me deixas, mundo. A de morrer, como todos. Mas lhe peço, Tempo, se por querer meu ou adversidade... Súplica minha, me faça renascer num peito jovens, em diversos deles. Perdoe a minha fraqueza. Acho que, bem, a noite hoje é fria, o que por vezes me deixa fraco. Por outro lado, é nestas noites que fico mais vigoroso, nos braços dos namorados, em seus carinhos mais quentes e abraços aquecedores... Agora...

PAZ

(Abraça o filho) Meu filho, hás de renascer nos jovens que te deixam no fundo de seus peitos potenciais. Por mais que pereça, que não cantes mais sobre nós... As estações trarão, junto com as flores, a tua voz novamente... (Larga-o no chão)

II

IMENSIDÃO

Terra.

Sentado à margem o imenso Mar dos Milagres, a alma amante recebia em suas costas a brisa noturna do Porto dos Sonhos. Tentava enriquecer, de algum outro sentimento, sua ânsia tristonha... Dispersar seus desejos, admirar o mar, ou fazer com que seu corpo se tornasse parte dele.

PRIMEIRA ALMA

Aqui estou soturno com meu imenso dilema. Sinto fome, sinto sede, sinto frio, mas por mais que eu coma, beba e me acoberte, não me satisfaço. Veja, imenso Mar, eu lhe ofereço o meu corpo para continuares a vingar. Uma alma que nada mais tem a oferecer de útil, merece ter seu corpo queimado! e já que o fogo está ocupado a ungir o coração dos amantes realizados, me consuma mesmo o senhor, Oh! Mar. De milagres quero ser afogado. Pois de carinho este peito nunca foi afagado. Não tem mais esperança esta alma que lhe fala, não quer teimar, não quer discordar, não quer discutir nem quer acordar; quer um seio doce, quer amar. (Ouve-se ao longe a voz do horizonte)

HORIZONTE

Alma, pobre Alma, não se deixe cair na tentação de acabar-se: a melhor forma de resolver os teus problemas não é deixar de existir. Não temas a fome, não temas o frio nem a maldade que pode ter uma pedra a se calar. Pois, a voz que se cala é a que tem medo de falar, não é a que quer te agredir nem a que quer te matar. Veja o Mar. Parece sempre calado, parece sempre calma... Mas, sua calmaria costeira não é a mesma de seu interior, como uma pessoa tímida ele pode se tornar afável e ao mesmo tempo tenebroso. As ondas batem na costa com calma, com Paz, mas, no alto mar, as ondas imensas das tempestades arrasam as caravelas que vêem pelo caminho. A paz do mar é falsa, como a paz dos tímidos. Estes são puros e são castos; inteligentes e hábeis. Não deixam a sua expressão se desesperar, mas o contrário acontece com a alma, que se enlaça, desenlaçar, quebra, corta-se... Lembro duma estórias que os antigos contavam, que no duelo do Amor contra o Ódio, este último venceu. Ambos são fanáticos, ambos falam demais, ambos se guardam, mas o Ódio se guarda e um dia uma centelha o tira de dentro da alma; o Amor nasce e morre no peito.

[...]

(Andrié)