Órfã

A lua não mais brilhou

atrás do perene monte...

O sol não mais cintilou

no rubro e belo horizonte...

Dias opacos chegaram

pra trazer-me a torva dor;

os sorrisos transmutaram

em um mártir incolor.

Sou órfã de mãe e pai

e vivo numa chafurda

e minha cerviz se esvai

e minha' alma é muito surda.

Não ouve cantos etéreos,

nem vê astros reluzentes,

mas vê grandes vitupérios,

ouve chascos estridentes.

Éolo - vilão cruel,

mau assim como Satã

- o príncipe sem laurel,

destruiu meu amanhã.

Destruiu minha letícia,

minha plena liberdade

e eu só vivo em estultícia

no meio da falsidade.

Meu eflúvio é chamusco...

Ninguém vê ou dá valor;

o meu peito é muito fusco,

mas brilha tanto o amor.

Peito pulsante, perene...

Peleja, pulsa pungente,

paciente... pare, pene

para plasma penitente.

O pecado em meu pregresso

fez de mim u'a sânie eterna

como se fosse regresso

perdoar por ser tão terna.

Pois meu sangue é diletante,

arma guerra contra mim,

quem pariu-me é cego, infante,

é néscio e quer o meu fim.

Meu próprio sangue me fere

e logo se torna vão:

não há siso que supere

com mal tanto e turbilhão!

São eferentes vorazes

que tiram minha Esperança!...

São amores eficazes

que me ferem com a lança!...

Tristeza tanta eclodiu

com volúpias infernais...

Meu coração se feriu,

pois malfazente é demais.

Os regaços tão sabidos

que me cercavam co' amor

estão tristes, languescidos,

esquecidos na vã dor.

Vento vindo em vilanismo

voracerou tão verdugo

que o véu viço em veludismo

verminou velha verruga.

E a solitária menina

ficou órfã de seus pais.

Não é mais dileta mina

de diamantes assaz.

Tenho chagas em meu ser

causadas na solidão,

que destruiu meu viver

e que trouxe-me aflição.

Aflição no próprio espírito:

espírito torto e negro;

pois meu peito é tão contrito

e em nada, nada me alegro.

Não há Édem, nem Elísio:

há insano dionisíaco

que vem com seu torvo ofício

lúgubre, assaz demoníaco.

E meu coração pungente

dói, não dá nanhum eflúvio,

mas fica inerte e silente

ao tão colossal dilúvio.

Todos amigos fugiram!...

Foram todas relutanças.

Talvez eles - vãos - fingiram

ou fizeram esquivanças.

Meu sangue me deixou só...

Minha mãe ama-me estranho...

A pequena irmã? Dá dó!...

E eu me perco e nada ganho.

Ouço vozes do meu siso

em plena noite soturna,

dizendo-me que o sorriso

jamais se esconde na furna.

Este duro cataclismo

me puxou por esta mão,

e eu num estoldo egoísmo

sucumbi nesta aflição.

Agora no pungente ermo

vivo só solidão tal,

porque tenho o peito enfermo

e não resisto um punhal.

O sol, a lua não brilham...

Nem mais dão o seu alvor;

o peito e o coração se ilham,

mas 'inda brilha o amor!

27/09/2003 2h15

Cairo Pereira
Enviado por Cairo Pereira em 17/04/2009
Reeditado em 20/07/2010
Código do texto: T1545001
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