A liberdade contra a vida

"Espero com muita confiança que a vida que me resta cumprir não seja longa. E isso, posso dizer, é tão-somente o pensamento que me sustenta. Livros e estudos que freqüentemente me admira ter amado tanto, projetos de grandes coisas, esperanças de glória e de imortalidade são coisas cujo tempo de rir já passou. Dos desígnios e das esperanças deste século não rio: desejo-lhes com toda a alma o melhor sucesso possível e louvo, admiro e respeito alta e sinceríssimamente a boa vontade: porém não invejo os pósteros nem os longevos. Em outros tempos senti invídia dos tolos e dos estultos e dos que se têm em alto conceito; de bom grado ter-me-ia trocado por qualquer um deles. Hoje não invejo mais néscios ou sábios, grandes ou pequenos, fracos ou fortes. Invejo os mortos e somente por eles me trocaria. Toda imaginação agradável, todo pensamento do futuro que tenho, como acontece em minha solidão e com os quais vou passando o tempo, consistem na morte, e daí não saberia sair. Nem neste desejo de lembrança dos sonhos da primeira idade e o pensamento de ter vivido em vão me perturbam mais, como costumavam. Se chegar à morte, passarei tranqüilo e contente como se nada mais tivesse esperado ou desejado no mundo. Este é o único benefício que pode conciliar-me com o destino. Se me fossem propostas, de um lado, a fortuna e a fama de César e de Alexandre, expurgada qualquer mácula, e, de outro, a morte hoje, e eu devesse escolher, diria: morrer hoje! e não hesitaria em decidi-lo."

Leopardi.

O documentário "Solitário anônimo", um curta-metragem, mostra os dias de tratamento de um idoso que foi encontrado na rua prestes a morrer de inanição. O homem não trazia nenhum documento, apenas um bilhete onde ele se apresentava como um solitário anônimo, sem família, que tinha o direito de morrer.

Uma situação inusitada e problemática para os médicos e enfermeiros que o atenderam. Pelo que estava escrito no bilhete, eles já imaginavam as complicações em submeter o anônimo ao tratamento, e conseguiram a autorização judicial. Enquanto tentavam colocar-lhe a sonda, ouviam o paciente reclamar repetidamente: "Selvagens." "Deixem-me morrer em paz."

Eu fiquei algo perturbado com aquelas cenas desde o início do documentário. E, como geralmente acontece quando reconhecemos alguma identidade entre outra pessoa, me senti na pele daquele homem, ao ser revelado, aos poucos, que tratava-se de alguém razoavelmente instruído, que conhecia filosofia, falava cinco idiomas e era advogado. Se fosse um mendigo, um desempregado ou um portador de HIV, ele teria mais motivos para desejar a morte, seria mais compreensível esse estado. E ele não respondia por que decidiu morrer. "Já que você quer morrer, por que não dá um tiro na cabeça?" "Eu sou covarde. Eu não sou como o japonês."

Mas o médico e o juiz que o encontraram em pele e osso não o deixaram expirar. A partir daquele momento, passou a ser obrigação do Estado fazer de tudo para preservar aquela vida.

De um lado, o velho advogado rogando para que o deixassem à morte; do outro, o Estado se empenhando ao máximo para mantê-lo vivo.

Uma pessoa capaz, decidida a morrer, que defendia não poder o Estado impedi-lo nisso.

Mas não há razão para pasmo. Esse não é um problema novo. Apenas não é tão comum alguém morrer voluntariamente sem motivos, ou mesmo sem motivos aparentes. A maior questão que se impõe aqui é se o indivíduo capaz pode por fim à própria vida, sem precisar declinar a razão. Podendo, o Estado fica impedido de mantê-lo vivo.

No Brasil, como na maioria dos países, que não têm expressa disposição legal sobre o assunto, devemos nos socorrer dos princípios espalhados pela legislação, sobretudo os impressos na Contituição. Aqui, o debate é longo e conturbado; os princípios não são de interpretação imediata, e invariavelmente a discussão ultrapassa os limites do jurídico.

Então chegamos à ética.

No domínio da ética, as questões que cabem são as seguintes: seria suportável para a sociedade se os indivíduos devessem ignorar aquele que, por ato consciente e livre, procura a morte? A sociedade não se corromperia imediatamente? Não perderia o sentido da solidariedade? Por outro lado, cada um é livre para fazer da sua vida o que entender mais digno. Se não há prejuízo alheio, não haverá concessões da vontade.

Retornando ao direito, se por um lado o nosso ordenamento jurídico traz fortes indícios da indisponibilidade do direito à vida, por outro, não chega a proibir expressamente, de maneira genérica, a sua renúncia por quem, conscientemente, possa dela renunciar. Porém, há um conhecido dispositivo da Constituição Federal (artigo 5º, II) que diz que "ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei".

De qualquer forma, o direito brasileiro não aponta para essa solução, e nem deveria, por ser social e juridicamente inviável. Ela é perigosa, traria desequilíbrio nas relações humanas, e destruiria muito do tem sido construído desde longa data. Contudo, não há como simplesmente ignorar o que dizem os poetas mais inspirados e os filósofos mais contemplativos sobre a morte e o suicídio. Se não se pode autorizar a morte voluntária, como atender, em situações de conflito, aos direitos à liberdade e à dignidade, para tantos indivíduos os mais sagrados?