DISCRIMINAÇÃO – UM ENSAIO À LUZ DA CONSTITUIÇÃO VIGENTE - PARTE DOIS
No entanto, mais surpreendente que a própria absolvição foi a ausência de reação dos movimentos feministas, a inércia dos defensores dos direitos humanos e a falta de repercussão do episódio nos meios de comunicação. É indispensável que esse infeliz episódio sirva para alertar a sociedade de que tal tipo de reação não decorre de um gesto de amor, mas simplesmente de amor próprio ferido. Um mero sentimento de vingança, em nome do resgate da própria honra, não pode legitimar que se disponha da vida alheia impunemente. Essa prática, ao receber o referendo da própria Justiça, revela que persiste a violência doméstica, não se podendo ainda falar em igualdade, como cânone maior da ordem constitucional. (grifos e destaques nossos)
É evidente que não se está dizendo que a infidelidade conjugal, seja do homem ou da mulher, não deva ter conseqüências. Geradora da insuportabilidade da vida em comum, justifica pedido de separação judicial. Ademais, historicamente e mesmo sob a égide da atual legislação, permite a atribuição de culpa ao outro cônjuge, com as penalidades legais a tanto, embora estudos recentes apontem a inconstitucionalidade da atribuição de culpa na separação judicial por indevida ingerência estatal na privacidade do casal.
Tais fatos repita-se, são notórios e historicamente inegáveis, justificadores da especial proteção legal conferida à mulher pela Lei Maria da Penha, que se afigura, portanto, como absolutamente necessária para coibir as violências e abusos historicamente sofridos pelas mulheres em seu ambiente familiar, donde realmente "Só quem não quer não enxerga a legitimidade de tal ação afirmativa que, nada obstante formalmente aparentar ofensa ao princípio da igualdade de gênero, em essência busca restabelecer a igualdade material entre esses gêneros, nada tendo, deste modo, de inconstitucional” [07].
A Lei Maria da Penha não teve seu nome escolhido aleatoriamente: trata-se de justa homenagem a uma mulher que sofreu absurdas agressões de seu marido em seu ambiente doméstico, na década de 1980, e não conseguiu a punição de seu marido pelas leis de então, devido à comunhão de ineficácia legislativa e morosidade judicial.
Aclamada como uma verdadeira revolução no tratamento da violência doméstica perante o judiciário, a Lei Maria da Penha provocou reverberações em todos os segmentos, justificando que sua aplicabilidade viria a ser um elemento capaz de diminuir, ou até mesmo eliminar, o tratamento nas relações conjugais, com a finalidade de extirpar do meio social a detestável prática de atos violentos do marido em relação a sua cônjuge. A pedra de toque relacionava-se diretamente com o fato da criminalização da prática abusiva que, mesmo acontecendo entre as quatro paredes do lar, não mais passaria despercebida dos olhos e ouvidos dos meios responsáveis pela segurança pública, bem como pelo crivo de controle do judiciário.
A bem da verdade, tal instituto foi alvo de críticas das mais severas, tanto no segmento político como no judiciário, em especial no que se referia à lesão que esta estaria causando ao texto constitucional no que se refere ao princípio da igualdade inserto no artigo 5º, onde está claro que não podem haver diferenciações entre homem e mulher, anunciando, por esta linha de raciocínio adotada, um elemento discriminador entre pessoas que deveriam ser tratadas igualmente.
Neste sentido, afirmam Flávia Piovesan e Sílvia Pimentel no artigo "Lei Maria da Penha: Inconstitucional não é a lei, mas a ausência dela", assim citada pelo Desembargador Herculano Rodrigues no julgamento da Apelação Criminal 1.0672.07.234359-7/001(1)(09):
(...) O texto constitucional transcende a chamada ‘igualdade formal’, tradicionalmente reduzida à fórmula "todos são iguais perante a lei", para consolidar a exigência ética da "igualdade material", a igualdade como um processo em construção, como uma busca constitucionalmente demandada. Tanto é assim que a mesma Constituição que afirma a igualdade entre os gêneros, estabelece, por exemplo, no seu artigo 7º, XX, ‘a proteção do mercado de trabalho da mulher, mediante incentivos específicos’.
Se, para a concepção formal de igualdade, esta é tomada como pressuposto, como um dado e um ponto de partida abstrato, para a concepção material de igualdade, esta é tomada como um resultado ao qual se pretende chegar, tendo como ponto de partida a visibilidade às diferenças. Isto é, essencial mostra-se distinguir a diferença e a desigualdade. A ótica material objetiva construir e afirmar a igualdade com respeito à diversidade e, assim sendo, o reconhecimento de identidades e o direito à diferença é que conduzirão à uma plataforma emancipatória e igualitária. Estudos e pesquisas revelam a existência de uma desigualdade estrutural de poder entre homens e mulheres e grande vulnerabilidade social das últimas, muito especialmente na esfera privada de suas vidas. Daí a aceitação do novo paradigma que, indo além dos princípios éticos universais, abarque também princípios compensatórios das várias vulnerabilidades sociais.
Neste contexto, a ‘Lei Maria da Penha’, ao enfrentar a violência que de forma desproporcional acomete tantas mulheres, é instrumento de concretização da igualdade material entre homens e mulheres, conferindo efetividade à vontade constitucional, inspirada em princípios éticos compensatórios. Atente-se que a Constituição dispõe do dever do Estado de criar mecanismos para coibir a violência no âmbito das relações familiares (artigo 226, parágrafo 8º). Inconstitucional não é a Lei Maria da Penha, mas a ausência dela.
Destarte, não se pode afirmar, sem correr o iminente risco de alegar-se algo sem conteúdo, que a lei em si possui em seu cerne qualquer preceito discriminatório, envidando, na verdade, esforços no sentido de eliminar possibilidade de que o homem, valendo-se de uma prerrogativa arcaica e plenamente invalidade em nosso meio social da atualidade, venha a cometer práticas abusivas não apenas contra a sua cônjuge, mas sim contra outro ser humano que, segundo a lei, possui as mesmas qualidades, capacidades, direitos e deveres que seu agressor, tornando a relação entre eles uma relação de violência baseada em um poder que não existe e que não pode subsistir quando confrontado com o princípio da igualdade.
Por outro lado, uma análise mais acurada da lei ora em apreço nos conduz ao seu aprofundamento, percebendo que em seus artigos certas nuances podem indicar uma discriminação ao contrário, ou seja, o tratamento do indivíduo, tido como agressor tomado a partir de uma análise pouco usual em direito sobre o cometimento do ato criminoso, ou ainda, o estabelecimento de uma agressão ou ameaça que, na verdade, talvez nunca tenha acontecido de fato.
Melhor explicando: um rol de exemplificativo de condutas cuja conceituação encontra-se excessivamente aberta, permitindo ao interprete da lei uma versão desproporcionalizada que, na maior parte das vezes, causará seqüelas na direção de um tido agressor que assim não se portou. Ou seja, a esposa pode proferir denúncia contra abusos cometidos pelo marido, estabelecendo uma acusação cuja formalidade carece de fundamento de verdade real e transformando o dito agressor em “vítima” de suas próprias ações, sejam estas inocentes ou não. E se isto não se parece como uma forma discreta de discriminação, que me digam os discordantes como tal problemática poderá ser solucionada sem prejuízo para uma relação humana.
12. BREVES CONCLUSÕES
De tudo que foi acima exposto, gostaríamos de salientar a importância da análise inicialmente considerada acerca da discriminação: qualquer preconceito socialmente disseminado pode, necessariamente, descambar para o universo da discriminação, estabelecendo um tratamento diferenciado entre seres humanos originalmente iguais em qualquer instância que se tome como referencial. O tratamento discriminatório além de nocivo ao meio social também é uma forma de estabelecimento do poder pela força, como demonstrou a história pouco recente da humanidade (Segunda Guerra Mundial), bem como é o que demonstra a história recente (racismo nos Estados Unidos da América), e ainda o que comprova a atualidade (guerra contra o terrorismo praticado em nome de Alá), cujos métodos e práticas demonstram às escâncaras que inserido na ação discriminatória sempre há um interesse escuso, uma ameaça contra a ordem e a paz estabelecidas, um conluio de forças cujo único intuito, além de a consagração do caos é a plena satisfação de interesses pessoais, de um pequeno grupo que almeja ser dominante e que é capaz de qualquer meio para atingir tal fim.
Todavia, não se trata apenas disso. Existe um componente mais odioso que compõe a discriminação e que grassa em todo o meio existencial da raça humana: trata-se de uma simples e absurda utilização do homem pelo homem, o tratamento destinado à menosprezar, diminuir, submeter e, por fim, estagnar a alma e a dignidade de outrem, avantajando seu propósito inicial de conduta orientada pelo poder em direção à submissão e deterioração do potencial humano, lançando a humanidade em uma era de escuridão, medo e incerteza.
O colóquio que aqui se tentou construir demonstra o trabalho hercúleo do judiciário em especial quando da análise de problemas discriminatórios, posto que a única forma de eliminação desta ameaça é o combate à toda e qualquer forma de discriminação, não perdendo de vista que a lei deve, sempre e eternamente, valorizar a alma do indivíduo acima de seu status social, sua cor de pele, sua profissão religiosa, e qualquer outra particularidade relativa à forma como as pessoas vêem o mundo. Cabe exclusivamente ao judiciário, quando provocado, não apenas eliminar esta ou aquela forma de discriminação, mas assegurar ao cidadão que práticas como aquelas não deverão repetir-se vinculando o fato à norma da maneira mais precisa possível.
Recentemente, tivemos notícias da manifestação do Excelentíssimo Senhor Presidente da República sobre colocação feita pela ilustre Magistrado Presidente do Tribunal Superior Eleitoral, Ministro Marco Aurélio de Mello, alegando, em outras palavras, que cada um deve cuidar do que é seu e não meter o bedelho nos assuntos dos outros.
Lamentavelmente, olvidou-se Excelentíssimo Senhor Presidente de averiguar que sua manifestação, além de imprópria e inoportuna, deflagra uma aura discriminatória de um poder sobre outro, vilipendiando o ilustre pensador francês MONSTEQUIEU em sua obra o “O ESPÍRITO DAS LEIS”, que estabeleceu que os poderes públicos devem relacionar-se de forma independente, porém harmônica, harmonia esta que o Chefe Supremo do Executivo Nacional não apenas deixou de lado, mas tolheu qualquer possibilidade de diálogo, discriminando a manifestação do Nobre Ministro como se fosse ele um incurso de primeira hora na disputa eleitoral. Aquele de profere tais palavras age como se ignorasse não apenas a representatividade formal do Ministro, mas também, e principalmente, sua representatividade material, deitando por terra qualquer resquício de harmonia e independência.
Ademais, o caráter notadamente eleitoreiro do PAC (Plano de Aceleração do Crescimento), tem sido amplamente demonstrado pelas ações do Executivo Nacional, ampliando planos em um momento inoportuno e também impróprio. E tenha-se em vista que a manifestação do Senhor Ministro deu-se dentro da mais plena e consentânea atmosfera de cordialidade e de seriedade necessária à um membro do Judiciário, não havendo por parte dele de trazer para a sua esfera algo que não lhe competisse não apenas como Ministro do Superior Tribunal Federal e atual Presidente do Tribunal Superior Eleitoral, mas sim como cidadão dotado de poder-dever, aquele mesmo amplamente descrito nos compêndios de Direito Administrativo, compêndios aos quais o Senhor Presidente da República parece não demonstrar qualquer espécie de reverência ou consideração.
O custo social da discriminação não pode ser medido por qualquer outra escala que não aquela da dor, do sofrimento, da diminuição, do perdimento total da dignidade, estabelecendo que aquele ou este indivíduos não são tão dignos quanto os demais, que este ou aquele indivíduo não merece a mesma atenção dispensada aos demais, que este ou aquele indivíduo não possa ter acesso aos meios socialmente disponíveis, porquanto estar ele situado em nível inferior aos demais de seu grupo.
Aliás, tenhamos em mente que, no mundo moderno inexiste maior demonstração da capacidade discriminatória do ser humano sobre aqueles da sua espécie que não seja a forma pela qual esta mais se manifesta: a da exclusão social, que nada mais é que uma forma de discriminação baseada na incapacidade de todos de trazer para próximo de si aqueles indivíduos desafortunados que, por absoluta ausência de políticas inclusivas de um Estado exclusivo, vivem à margem de tudo que os cerca e que diuturnamente sofrem os efeitos da incapacidade do Estado e de seus representantes em exercer políticas e ações programáticas cujo fim se destine à maior parcela da sociedade e não à apenas uns poucos cidadãos que, por sua vez se sentem responsáveis pela necessidade de incluir seus semelhantes, rumando em direção oposta àquela que lhes foi orientada pelo Estado e pelos membros de seu corpo político.
A nosso ver, as considerações expendidas no parágrafo anterior não possuem qualquer condão da elaboração de um discurso socialista utópico, ou mesmo de fortuita ação com caráter eminentemente político. A intenção refere-se “exclusivamente”, ao tema tratado. A discriminação é um ação que se inicia pela busca e conquista de poder baseada na criação de um estereotipo pré-concebido que, à medida que avança em sua intenção escusa, cresce qual um câncer, uma doença que irá alastrar-se pelo corpo social, estabelecendo uma nova ordem que existe apenas para a sustentação do interesse original proposto pelas pessoas (ou pessoa) que age no sentido único de dividir para vencer, discriminar para dominar e controlar.
Acreditamos sem qualquer sombra de dúvida, que a aplicabilidade do artigo 5º da Constituição Federal vigente é um dispositivo auto-aplicável em sua essência interpretativa, posto que “Todos os brasileiros são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza...”, dicção constitucional através da qual pode o legislador analisar a discriminação sob qualquer de suas formas, inclusive com a agregação do constante no parágrafo primeiro do inciso LXXVIII que dá aplicabilidade imediata às normas garantidoras fundamentais, permitindo que juristas, advogados e demais operadores do direito saibam sentir os efeitos de sua ação imediata no combate a qualquer forma de discriminação.
Por fim, é necessário que tenhamos plena consciência de que nossa existência neste planeta não é nossa, não é de nossos filhos, nem mesmo de nossos netos. A nossa existência nos foi dada para vivermos em comunidade, em harmonia e com pleno respeito aos nossos semelhantes. Respeitar as diferenças é respeitar a nós mesmos, pois cada vez que conservamos nosso meio ambiente, cada vez que percebemos que é na diferença dos seres humanos que se encontra a maravilha da vida, cada vez que sentimos fluir em nossos espíritos o sopro da mesma vida que sopra em nossos filhos, amigos e parentes, e não apenas nestes momentos, é que percebemos como somos uma realização fantástica que não pode e não merece ser discriminada, vilipendiada, maltratada ou eliminada de forma tão simplória e por razão tão incoerente quanto a de mera sede de poder.
13. BIBLIOGRAFIA.
(1) - Ivair Augusto Alves dos Santos é assessor especial e secretário executivo do Conselho Nacional de Combate à Discriminação (CNCD). O CNCD é ligado à Secretaria Especial de Direitos Humanos do Ministério da Justiça.
(2) - Direitos Humanos: instrumentos internacionais – Senado Federal. 1997, p. 304.
(3) – Projeto de Lei do Senado nº. 16, de 1995.
(4) – In: http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=2990.
(5) - Diniz, Maria Helena, Dicionário Jurídico, vol. 3, São Paulo, Editora Saraiva, 1998, p. 122.
(6) - Noronha, E. Magalhães, Direito Penal, vol. 3, 20ª ed., São Paulo, Editora Saraiva, 1992, p. 99.
(7) – In DAL BOSCO, Maria Goretti. Assédio sexual nas relações de trabalho . Jus Navigandi, Teresina, ano 6, n. 52, nov. 2001. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=2430>. Acesso em: 03/03/2008.
(8) In VECCHIATTI, Paulo Roberto Iotti. Da constitucionalidade e da conveniência da Lei Maria da Penha. Jus Navigandi, Teresina, ano 12, n. 1711, 8 mar. 2008. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=11030>. Acesso em: 08 mar. 2008.
(9) Ibidem ao anterior.