Inveja. As mil faces da inveja.

 

 

Derivada do latim, a palavra inveja vem da junção de in e vedere, que significa “não ver”. Logo, quando reconhecido e olhado de frente, esse sentimento pode ser racionalizado e convertido em impulso para autorrealização
Em seu ensaio “Inveja e gratidão” (1947), a psicanalista Melanie Klein faz uso de uma fábula para descrever a inveja. Conta a história de um homem que recebe um presente de uma fada: desejar qualquer coisa que queira, mas com a condição de que seu vizinho irá receber o dobro. O homem pensa e por fim decide o que quer: perder um olho.
Segundo a psicanálise, a inveja é um afeto que indica que uma parcela muito significativa de nós mesmos se forma a partir de identificações com os outros, por meio de processos de alienação.
Desde muito cedo conquistamos um sentimento de “ser si mesmo”, devido ao “investimento” que fazemos em pessoas que despertam o nosso interesse, e nos sentimos vivos a partir das experiências que vivemos, ao recebermos o reconhecimento dessas pessoas.
Em um sentido muito radical, ser “eu” só é possível a partir de outros, ou seja, é por meio da observação do outro que o indivíduo percebe a si mesmo. 
A inveja, assim compreendida, é uma forma de laço social muito primária (ou primordial), segundo a qual o desejo pelo outro, pelo reconhecimento do outro e pela satisfação pessoal se confunde com a nossa própria identidade.
Para Jacques Lacan, a inveja é um afeto, com tudo o que isso significa em sua teoria, ou seja, um circuito que forma um laço social próprio à lógica do “eu” e do “outro”. Seu aspecto real é fruto da inexistência de uma relação pré-definida com o outro (relações mãe-filho, por exemplo). 
Entendida em seu aspecto imaginário, a inveja seria um afeto que tenta nos assegurar da relação com outro, tentando transpor essa falta com uma tentativa de ancorar no outro o nosso “eu”, a partir de projeções e introjeções próprias à constituição do “eu”: vejo no outro algo que se torna “eu”, reconheço em mim algo que é proveniente do outro. A inveja seria uma certa fratura nesse processo, no qual a divisão é colocada em questão, sem que um “eu” consiga delimitar seus limites com precisão.
Já em Aristóteles, em sua obra "Retórica", o filósofo grego, na parte II dedicada às paixões, procurou demonstrar quais seriam os meios que emergem e cessam tais afetos e de que forma a inveja surge. Para o pensador, as pessoas sentem inveja, geralmente, de quem é igual ou parecido consigo, mas que eventualmente adquire vantagens que o sujeito julgava somente a si pertencer. 
Os invejosos seriam todos aqueles que possuem quase tudo o que desejam, mas que por sua ambição jamais se bastam, incomodando-se com todos a sua volta. 
Aristóteles pontuou que sentimos inveja de quem por mais variados motivos rivalizamos. Para ele, as pessoas que buscam honra são mais invejosas do que as demais, pois reclamam uma glória que só pertence supostamente a si.  Os sábios (ou os que tentam se passar por um) também estão sujeitos à inveja pela soberba ambição de quererem uma constante reputação que a sabedoria daria. Por fim, a inveja ataca em igual medida o também medíocre, mesquinho, pois no seu nivelamento baixo não admite algo ou alguém acima.
Para Soren KIERKEGAARD,  para o filósofo dinamarquês, a inveja transpõe a mera condição de sentimento negativo. Antes, ela atua como um princípio regulador, que tem a propriedade de estimular não somente um já conhecido afeto de ressentimento e hostilidade entre os homens, mas também o de aprisioná-lo numa negatividade absoluta. 
Em outros termos, a inveja atua como uma forma de balizar ações e pensamentos dos indivíduos, mantendo-os reféns de uma rede de inflexões paralisantes: a inveja retarda ao mesmo passo que invalida uma decisão, enfraquecendo a vontade e mantendo o homem sob seu cativeiro de inércia. Na filosofia, são diversas escolas e pensadores que a representam. 
De acordo com o filósofo inglês Bertrand Russell, a inveja teria uma potência para além de sua carga negativa, inoportuna e geradora de infelicidade: ela também seria um tipo de força motriz por trás das economias e de sistemas políticos.
A inveja segundo Melanie KLEIN está presente na organização e no desenvolvimento psíquico desde os primeiros dias de vida de uma criança. Nesse caso, primordialmente, o sentimento é dirigido ao seio materno, objeto ora tomado como objeto bom (que nutre, suporta e o acolhe), ora como mau, que é quando a criança sente a sua ausência. 
É nessa falta, no querer e não ter o peito da mãe, que surge a inveja e a criança experimenta a angústia e a agressividade em sua forma mais destrutiva. Essa dualidade faz com que a criança assegure e preserve a existência do objeto bom e volte a sua agressividade para o objeto mau. Quando por algum motivo essa divisão não é possível, a criança terá dificuldades de proteger ou preservar o objeto bom dos ataques do objeto mau.
Quando olhamos para as obras de William Shakespeare, temos a história de Iago e Otelo. Nesse contexto, assistimos a inveja causando destruição e morte através da intriga. Otelo, personagem principal em “O mouro de Veneza”, peça escrita em 1603, é um general que promove Cássio a tenente. Seu suboficial Iago sente-se traído, já que desejava ter sido o funcionário promovido.
No entanto, ele não parou para refletir na razão pela qual o outro veio a ser promovido e não ele. Não observou sua falta e foi fazer justiça pelo caminho instintual, o que é usual para muita gente. A partir daí, Iago, em seu ódio por Otelo e por Cássio, começou a semear a discórdia entre o casal Otelo e Desdêmona.
Assim, o homem começou a conceber um terrível plano de vingança que tinha como objetivo arruinar seus inimigos.
Iago tratou de fazer com que Otelo acreditasse que Cássio e sua esposa Desdêmona estavam tendo um romance. Por ciúme, outro problema terrível, Otelo estrangula sua esposa em uma atitude insana. 
Em seguida, sabendo do erro e injustiça que cometeu, Otelo crava um punhal em seu próprio peito. Assim, Iago concebe e leva a cabo sua trama delirante e letal.
Para Platão, a inveja era um vício que surgia da incapacidade de apreciar o bem-estar alheio. Ele argumentava que a inveja poderia levar a ações imorais e à desarmonia social, uma vez que as pessoas se tornavam obcecadas pelo que os outros possuíam.
Na filosofia romana, a inveja continuou a ser um tema relevante, com pensadores como Cicerão e Sêneca explorando suas implicações sociais e pessoais. 
A inveja era frequentemente discutida em relação à moralidade e à ética, refletindo preocupações sobre a natureza humana e a vida em sociedade.
Cicerão via a inveja como um mal social. Cicerão, um dos mais proeminentes oradores e filósofos romanos, que poderia corroer as relações interpessoais. Em suas obras, ele argumentava que a inveja não apenas prejudicava o indivíduo que a sentia, mas também afetava negativamente a comunidade. 
Cicerão via a inveja como um obstáculo à convivência pacífica e à justiça, enfatizando a necessidade de cultivar virtudes que pudessem superar essa emoção destrutiva.
Sigmund Freud, o fundador da psicanálise, trouxe uma nova perspectiva sobre a inveja, integrando-a em sua teoria da dinâmica psíquica. 
Enfim, para Freud, a inveja não era apenas uma emoção isolada, mas parte de um complexo sistema de desejos e conflitos internos que moldam o comportamento humano. 
Sua análise da inveja abriu caminho para uma compreensão mais profunda das emoções humanas e suas interações com a personalidade.
A inveja como parte da dinâmica psíquica e  Freud propôs que a inveja é uma emoção que pode emergir de experiências infantis e da dinâmica familiar. Ele sugeriu que a inveja pode estar ligada a sentimentos de inadequação e rivalidade, especialmente em relação a figuras parentais. 
Essa perspectiva enfatiza a importância das relações interpessoais na formação da psique e como a inveja pode influenciar o desenvolvimento emocional ao longo da vida.
A percepção da inveja tem evoluído significativamente ao longo da história, refletindo mudanças culturais, sociais e psicológicas. Antigamente, a inveja era frequentemente vista como um vício moral, associado a fraquezas de caráter. 
No entanto, com o avanço da psicologia moderna, essa visão tem sido desafiada, levando a uma compreensão mais nuançada da inveja como uma emoção humana universal, que pode ter tanto aspectos negativos quanto positivos.
As transições culturais também desempenham um papel crucial na forma como a inveja é percebida. Em sociedades mais individualistas, a inveja pode ser vista como um sinal de ambição e motivação, enquanto em culturas coletivistas, pode ser considerada uma ameaça à harmonia social. 
Essa dualidade na percepção da inveja reflete as normas sociais e os valores predominantes em diferentes contextos culturais.
Nietzsche considerava que a inveja pode ser observada como uma forma de reconhecimento do valor alheio. Entendia que “a inveja é a consciência da inferioridade”.
Para o filósofo alemão a inveja indica a percepção de falta em nós mesmos em comparação com os outros.
Tendo em vista as teses defendidas por esses estudiosos, a inveja surge em relação àqueles que percebemos como nossos iguais, que compartilham nossas ambições e competem pelos mesmos objetivos. 
Como consequência, não invejamos aqueles que possuem interesses e vivem em circunstâncias distintas das nossas. Aristóteles esclarece ainda que invejamos aqueles que triunfam facilmente onde nós fracassamos ou onde nossos sucessos exigiram grandes sacrifícios.
A inveja é fruto da insegurança. Essa é a tese do psicólogo Umberto Galimberti, segundo a qual somos inseguros, não nos conhecemos bem e, por isso, somos invejosos. Para o sociólogo austríaco Helmut Schoeck, a inveja faz parte da natureza humana e pronto. Não há nada a fazer. 
Os grandes sistemas mitológicos do passado, dos mitos gregos à Bíblia, fazem referências aos invejados e aos invejosos e parecem comprovar a opinião de Galimberti.
A história bíblica de Caim e Abel é um desses exemplos: Caim sente ciúmes da atenção que Deus dá a Abel. Sentindo inveja por acreditar que seu irmão é o preferido do Senhor, Caim assassina Abel. 
Zeus, o deus supremo da mitologia grega (Júpiter para os romanos), era muito veemente: de tal modo invejava a felicidade e a plenitude do homem que decidiu dividi-lo em dois. Assim, a partir disso, cada um de nós está condenado a procurar sua outra metade.
Segundo Platão, Sócrates foi condenado pelos democratas que estavam no poder por pura inveja, apenas porque ele tinha conquistado a felicidade completa que advém da sabedoria
Vá para o inferno O maior pecado de Lúcifer foi a inveja: queria ser Jesus e, por isso, acabou no inferno.
O estadista, orador e filósofo romano Marco Túlio Cícero (106 a.C. – 43 a.C.) sustentava que a inveja é o pior dos males. O filósofo Friedrich Nietzsche disse que o mundo todo invejava Napoleão Bonaparte por sua grandeza. 
Famosíssima também é a inveja que o compositor italiano Antonio Salieri sentia de Mozart – alguns afirmam, inclusive, que a inveja que ele nutria pelo compositor austríaco o levou a assassiná-lo. Mesmo que essa história de envenenamento seja apenas um boato, o poeta e escritor russo Alexander Sergeevich Pushkin (1799-1837) acreditou nela e, em 1830, escreveu o pequeno drama em versos Mozart e Salieri (originariamente intitulado Inveja). 
Na obra, Salieri, tomado de inveja do jovem músico, encomenda para o rival um réquiem, com a intenção de roubar a obra e depois envenená-lo.
Segundo Nietzsche, a inveja é a base da sociedade igualitária. Em Humanos são humanos, ele escreveu: “O invejoso, quando enaltece a ascensão social do outro, acima da ação comum, pretende rebaixá-lo ao máximo.” 
Segundo muitos sociólogos, a inveja é um dos pilares básicos da revolução proletária: não gosto da sua riqueza, mas é justo que todos possuam os mesmos bens que você possui. Melhor tudo igual, mesmo que tudo fique nivelado por baixo.
Em 43 a.C., outro poeta, um latino de nome, Públio Ovídio Naso nasce na cidade de  Sulmo a leste de Roma. Ele escreveu várias obras
Dentre suas obras, cito para este momento, o segundo livro de seu complexo trabalho,  Metamorfosis (Metamorfoses) e encantou grandes poetas futuros como  Dante, Milton, Shakespeare, dentre outros. 
Ovídio teve uma educação esmerada, estudou retórica e fez de sua poesia a portadora de temas éticos. Ao longo da vida, obteve prestígio na famosa Urbe, mas foi desterrado pelo imperador Augusto que o acusou de imoral. Morreu em Tomos, na Romênia no ano 17.  
 Na riquíssima narrativa da mitologia grega, conta-se que certa vez, a deusa Atena que descreve um dos mais terríveis sentimentos, sendo este, portador do germe da destruição humana. Tema, também descritos nos poemas de Homero e Hesíodo, e que foi redimensionado por Ovídio, ao mergulhar nas águas de seus antecessores e trazer à tona, um novo contexto imbuído de outro tempo histórico, dotado de personagens divinos da mitologia, caracterizados pela natureza humana. O capítulo, “A casa da deusa Inveja” é o substrato, a narrativa poética que somará ao assunto. foi perseguida e desejada por Hefesto que tentou possui-la. Agarrou-a, e ela se defendeu. O sêmen do agressor molhou a Terra. Dessa relação, nasce Erictônio.
 Daremos continuidade a esta narrativa, mas agora, atendo à obra de Ovídio. O poeta, narra que Aglauro não suporta a curiosidade e viola o segredo. Vê então, a criança deitada na caixa, protegida por uma serpente.   fecundado pela Terra. 
Atena, a virgem, ao ver a criança, o acolhe e protege como filho às escondidas dos deuses. 
Coloca-o dentro de uma caixa de madeira e a entrega a três jovens (Aglauro, Herse e  Pandroso), filhas do Rei de Atenas Actaio e de Cécrope e pede-lhes para que não olhassem o conteúdo da caixa, pois deveriam guardar segredo. 
Minerva (Atena) Certa vez, o deus Mercúrio (Hermes) atenta tudo viu lá das alturas ao sobrevoar a cidade de Atenas, viu Herse, a mais bela jovem, a mais graciosa de todas as moças, e por ela apaixonou-se  desesperadamente. 
Na calada da noite, ele adentrou a casa da jovem. Aglauro de sono leve acorda, e ao vê-lo interpela-o querendo saber seu nome e a razão de tal intromissão. Ele rapidamente diz ser o mensageiro de seu pai, o todo poderoso Júpiter ou Jove (Zeus) e justifica-se dizendo, que estava ali por causa de Herse que havia-lhe tocado o coração. 
Desesperado, pede ajuda a Aglauro. A jovem, com uma ligeira inveja, pede-lhe uma grande quantidade de ouro por qualquer feito que os unisse. 
Rapidamente, a deusa Minerva se dirigiu às profundezas dos umbrais da casa da deusa  Inveja. Lugar lúgubre, manchado de sangue, situado num vale profundo, onde jamais entrou a  luz do sol, onde não há vento, tudo é névoa, frio e umidade.
A deusa Inveja fica tremendamente aborrecida por ser perturbada, pior ainda, por  cumprir ordens, ou seria melhor dizer: por prestar ajuda?
 Resmunga e se retorce toda, mas  veste seu manto negro, pega seu cajado feito de espinhos e sai para cumprir a missão.
Logo, esta deusa dos recônditos se encontra nos aposentos de Aglauro. Vai até a moça  e deposita suas mãos ulceradas sobre o peito da jovem e, ... enche seu coração de espinhos,  assopra pestilência pelas suas narinas, espalha veneno  negro pelos seus ossos. Para justificar, apresenta  a feliz união de sua irmã com o deus   e injeta nela o desejo de ter tudo aquilo (OVÍDIO, 2003). 
Aglauro enlouquece pelo sentimento da inveja, pensa na felicidade de sua irmã e isso lhe corrói o coração, prefere a morte, a ver sua irmã feliz. A deusa Inveja lança gargalhadas escárnias, que por toda a Grécia pôde-se ouvir.  
Não tardou para que o deus apaixonado chegasse à procura de Herse. Mas a porta não  se abriu, pois impedida estava pela irmã invejosa. 
Após incessantes súplicas, Mercúrio  golpeia a porta com seu bastão e esta, escancara lançando Aglauro ao chão. Consumida de  raiva, pelo ódio e pela inveja, Aglauro vê suas veias ficarem azuis, as unhas escurecem, um  frio adentra seus pulmões e seu coração, o pescoço petrifica, as feições enrijecem e a  metamorfose acontece, torna-se uma estátua escurecida por este espírito maligno, o  sentimento da inveja
Dando um salto enorme no tempo histórico, chega-se ao século XX, quase dois mil anos depois de Ovídio, quando um desconhecido professor de uma universidade americana aparece no cenário mundial, com uma importantíssima obra filosófica do âmbito da filosofia política. 
Era chamado John Bordley Rawls (1921- 2002). Ele ficou conhecido como o Rousseau de Harvard, sendo considerado um dos mais importantes filósofos contemporâneos da filosofia política e moral. 
Sua obra prima A theory of Justice (1971), foi traduzida para o alemão (1975), para o francês (1987) e depois para vinte e cinco países, tornando-se o maior best-seller filosófico das últimas décadas. 
Esta obra constituiu-se de vinte anos de trabalho investigativo e mais 30 anos de revisão, devido às interlocuções com muitos estudiosos. 
Proferiu várias palestras, conferências e debates com os maiores especialistas de diversas áreas interdisciplinares. Só na Teoria da Justiça, várias pessoas inspiradas por Rawls receberam mais tarde, o Prêmio Nobel. 
 É um livro complexo, “uma obra teórica de difícil leitura devido às suas elaborações abstratas e formais, “Uma Teoria da Justiça” tem sido igualmente enaltecida pela precisão de abrilhantaram os estudos nas ciências jurídicas, sociais e comportamentais. 
David Archard (2002) afirma que Rawls significa o início de uma nova era: “Uma teoria da justiça (1972), revelou-se como um divisor de águas modificando radicalmente o caráter da filosofia política do mundo de língua inglesa”. 
Robert Nozick anuncia: “Os filósofos políticos precisam agora trabalhar dentro da teoria de Rawls, ou então explicar por que não o fazem” (Archard, 2002).  
Suas formulações, clareza de suas exposições e coerência sistemática de seus argumentos” (Oliveira, 2003). A obra de Rawls é constituída de nove capítulos com oitenta e sete parágrafos “numa divisão arquitetônica, assaz e proporcional” (Oliveira, 2003).  
Esta obra é fruto de um contexto histórico, que permeia desde os tempos em que Rawls, convocado durante a Segunda Grande Guerra Mundial, participa nas manobras militares no 
Pacífico, perde vários amigos, lastima os bombardeios em Hiroshima e Nagasaki. Logo, escreve um artigo polêmico e faz conferências sobre o The Law of Peoples (Direito dos povos) que se transformou em livro. Trabalhou temas como a guerra justa, justiça social e a tolerância. 
Nos anos sessenta, fez parte de movimentos contra a guerra do Vietnã e depois, entregou-se aos profundos estudos que culminaram neste monumental tratado que também alude o problema da inveja, pois seria incompleto, se não visse com olhares de aedo este sentimento que se esconde no véu da ambígua condição humana. 
Rawls trata da temática da inveja quando verifica que esta põe em risco o andamento de uma well-ordered society (sociedade bem ordenada) em específico, e de acordo com sua teoria, que pretende uma Justice as fairness (justiça como equidade). Ele sabe que a inveja deve ser evitada, então tece o argumento sobre a “posição original”. 
Trata-se de uma posição inicial  na qual as pessoas não deverão ser movidas por certas inclinações psicológicas, pois são “racionais” e não conhecem a “concepção de bem”, ou seja, seus interesses particulares estão sob a condição hipotética do “véu da ignorância”, pode-se dizer, de um “Estado de Natureza”. Portanto, na medida do possível, não devem ser afetadas pelas contingências acidentais. 
Rawls distingue dois tipos de inveja: uma “geral” e a outra “particular”. A primeira refere-se à inveja dos menos favorecidos em relação aos melhores situados pelos seus tipos de bens, e não pelos objetos particulares. Isto, dentro do enfoque social das “instituições”. 
Então, inveja-se pela riqueza do outro num sentido de melhores oportunidades e vantagens semelhantes, para que também alcancem tais metas. 
Já a “particular”, como próprio nome diz, é destrutiva, verte-se pela rivalidade e competição pessoal. 
“São aqueles  que saem perdendo na luta por cargos públicos e honrarias, ou pelas afeições dos outros, tendem a invejar o sucesso de seus rivais e a cobiçar aquelas mesmas coisas que eles conquistaram” (Rawls, 2003). 
Os invejados podem tornar-se hostis e ciumentos, tendenciosos ao revide. A partir de então, a inveja é coletivamente desvantajosa. Assim Rawls (2003), citou Kant ao discutir o tema sobre a inveja, “como um dos vícios que  expressam ódio à humanidade”.
Mas, haverá uma inveja boa geral? Ou como disse Rawls, “desculpável” em uma sociedade bem organizada? Ele retorna à fonte kantiana e filtra este assunto. Acredita que exista uma “invejável harmonia”, que ele a chama de “benigna”, aquela em que não existe a má-fé. Aquela que afirma valores para aqueles que não os possuem e, serve de exemplo. 
É digna, não há hostilidade, compele o invejante a perseguir com entusiasmo o seu caminho, a sua busca, portanto, serve de norte é “emulativa”. O invejado recebe-a como elogio, por gozar, por exemplo, do convívio de uma família harmoniosa, da felicidade do casamento, dos negócios, dentre outros. Já a outra, a inveja maligna está marcada pela derrota e pelo senso do fracasso que se transforma em “rancor” e que prejudica ambas as partes.
Para Rawls, não se deve dar “voz a inveja” para “nutrir seu rancor” e nem confundir “sentimento moral” com esta. A inveja fere, magoa, destrói e gera hostilidades. Portanto, não contribui para o social e muito menos para uma igualdade. 
Entretanto, o “ressentimento” que é um sentimento moral, permeia o “princípio do justo”. “Se ressentimos o fato de termos menos que outros, deve ser porque pensamos que sua melhor situação é o resultado de ‘instituições injustas’ ou de uma conduta errada da parte deles”(Rawls, 2003). 
Constatada a situação, devem os ressentidos demonstrar tais injustiças com argumentações criteriosas, para que, o “ressentimento” não se disfarce e se torne o “rancor”. 
Sua tese é que a inveja existirá, mas tenderá a diminuir diante das condições de uma sociedade “justa e ordenada” que afirma que à tendência a igualdade nos movimentos sociais modernos, advenha da inveja. Rawls é contrário a Freud, ao menos, sobre o princípio de que a inveja e o ciúme se transformem em sentimento social de igualdade. 
Insere também na sua lista, com os quais não concorda (em menor ou maior grau), Karl Marx, quando este classifica a inveja como o primeiro estágio de reação do comunismo.
Nietzsche também atento escreveu sobre este assunto.38 Conta que quando Pausânias visitou o Monte Hélicon, mostraram a ele uma Estela de pedra inscrita de forma contrária aos exemplares usuais de Os trabalhos e os dias que iniciavam com a “invocação”. Esta escrita começava com o esclarecimento: “há sobre a Terra duas deusas Éris” (NIETZSCHE, 2005). 
Para o pensador alemão, esta frase é digna de ser gravada no portal ético dos helenos. Lógico que a Erís má devia e deve ser repudiada, pois a ela concerne o “Rancor” e a “Inveja” no sentido de aniquilação e não de disputa. Nietzsche aponta que a inveja boa para esse povo grego, possuía o germe de uma qualidade positiva, um sentido muito forte de superação, de busca à perfeição, de objetivos alcançáveis, porém com limite, ligado ao “temor divino”.
Então, o invejoso percebe a qualidade, não como uma falha, mas algo divino benéfico que: ... ele sente, também no seu excesso de honra, riqueza, brilho e felicidade, repousar sobre si o olho invejoso de um deus, temendo tal inveja; nesse caso recorda-se dela no passado de tudo que é inumano, teme por sua sorte e, oferecendo o melhor, inclina-se diante da inveja divina. 
Essa noção não o torna estranho a seus deuses: cujo significado, pelo contrário, fica de tal modo circunscrito, que o homem nunca pode ousar a disputa com eles, o homem cuja alma se exalta, ciumenta, contra a de um outro ser-vivo (NIETZSCHE, 2005). 
Infelizmente, Nietzsche em seu tempo, aos olhares de seus contemporâneos que conviviam com a presença da outra irmã gêmea, o acusaram impiedosamente, mas ele certamente a viu ao lado de seus rivais rancorosos. Quando se refere ao artista, Nietzsche disse que o homem moderno pobremente “fareja a fraqueza da obra de arte”, enquanto  o heleno procurava a fonte mais elevada de toda força (2005). 
Na arte de viver, Ovídio, ao morar na poderosa e famosa Urbe romana, ao obter prestígio, popularidade e fama, sentiu o peso da mão aniquiladora. Foi então desterrado, desprezado e compôs as suas duas últimas obras (Tristia e Epistulae ex Ponto), obras reflexivas sobre o exílio e a sua apologia. Poeticamente, ele tratou também desse tema capital  sobre a inveja e clamou por justiça.
De acordo com os pensamento judaico, a inveja pressupõe o sentimento de raiva, segundo os ensinamentos do Talmude. Chegamos então a outro livro, o do rabino carioca Nilton Bonder, em sua “A Cabala da Inveja”, obra de alto teor filosófico e existencial, fundada na antiga ética religiosa. 
A obra faz parte da Trilogia lançada pela Editora Rocco e trata da concepção do ser humano contemporâneo a partir da filosofia e dos ensinamentos judaicos que, de acordo com o provérbio talmúdico Kossó, Kissó e vê-Kossó, “Uma pessoa se faz conhecer por seu copo (comida), seu bolso (dinheiro) e sua ira (inveja).”  A Trilogia A Cabala da Comida, A Cabala do Dinheiro e A Cabala da Inveja traz ensinamentos milenares de maneira fácil e acessível.
Na Divina Comédia, de Dante Alighieri, os invejosos não vão para o inferno, vão para o purgatório. O castigo: pálpebras costuradas por fios de arame. 
Para o historiador Leandro Karnal, o castigo faz sentido, já que toda a inveja vem do olhar. Invejamos o que está próximo da gente. “A inveja é um tipo de cegueira, ela é a dor pelo sucesso alheio”, resume Karnal.
Único pecado do qual ninguém se orgulha, a inveja, que segundo o professor não deve ser confundida com a cobiça, atravessa a realidade das pessoas.
Para Karnal, doutor em História Social pela USP, professor da Unicamp e autor de diversos livros, conviver com pessoas que possuem mais bens, são mais bonitas, mais inteligentes ou com mais carisma do que nós constitui a prática dura da sociabilidade. 
A maioria das pessoas se considera invejada, mas não invejosa porque o pecado é quase inconfessável. “A inveja é dolorosa porque é uma homenagem indireta a quem eu invejo”, explica.
Zuenir Ventura escreveu no seu livro “O Mal Secreto” que a inveja é inconfessável, mas ninguém se livra dela, por mais que disfarce. Na sua opinião, por que a inveja é um pecado tão envergonhado?
Na tradição dos pecados capitais, as pessoas se orgulham deles. Elas se orgulham de comer demais, da luxúria, do sexo, da ira e até mesmo da avareza, dizendo que são “contidas”. Mas a inveja é um sinal de impotência, de desejar algo do outro. 
O resultado é um pecado envergonhado porque as pessoas têm de reconhecer que o outro é mais do que elas. Por isso é o único pecado do qual ninguém se orgulha. Ninguém sai por aí dizendo “eu sou invejoso”.

Referências
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GiseleLeite
Enviado por GiseleLeite em 10/11/2024
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