A teoria da incerteza do excesso na legítima defesa: uma nova perspectiva jurídica sobre o excesso

O instituto da legítima defesa permite ao indivíduo proteger, a si mesmo ou a terceiros, de uma agressão injusta. No entanto, o exercício da legítima defesa não é absoluto. Ele possui, dentre seus requisitos, a moderação, que representa um verdadeiro limitador da reação de autodefesa. Assim prevê nosso Código Penal, em seu artigo 25:

Art. 25 - Entende-se em legítima defesa quem, usando moderadamente dos meios necessários, repele injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem.

Assim, em determinadas situações, aquele que em um dado momento estava amparado pela excludente de ilicitude, no outro, pode responder pelo excesso, se ultrapassar os limites necessários para repelir a agressão.

O objetivo deste artigo é propor uma nova perspectiva de análise para o excesso na legítima defesa. Essa concepção, que aqui será chamada de "incerteza do excesso na legítima defesa", reconhece a possibilidade da presença de uma dúvida razoável inerente a determinados contextos de legítima defesa, distinta das formas dolosa, culposa e exculpante, já tratadas pela lei e pela doutrina.

Portanto, inspirado pelo princípio da incerteza de Heisenberg, este artigo propõe uma nova perspectiva na análise do excesso, na qual se analisa a repercussão jurídica quando da existência da dúvida razoável sobre cessação da agressão.

Excesso na legítima defesa: doloso, culposo e exculpante

No contexto jurídico, o excesso na legítima defesa vem sendo classificado pela doutrina em três categorias: dolosa, culposa e exculpante.

O excesso doloso ocorre quando o agente tem plena ciência de que a ameaça cessou, mas continua a agir de forma deliberadamente desproporcional, excedendo os limites da defesa necessária. Francisco de Assis Toledo ensina que o excesso doloso:

"Ocorre quando o agente, ao se defender de uma injusta agressão, emprega meio desproporcionadamente desnecessário (exemplo: para defender-se de um tapa, mata a tiros o agressor) ou age com imoderação (exemplo: depois do primeiro tiro que fere e imobiliza o agressor, prossegue na reação até a morte do agressor). Esse excesso, que como se viu pode ser de variada natureza, será doloso quando o agente consciente e deliberadamente vale-se da situação vantajosa de defesa em que se encontra para, desnecessariamente, infligir ao agressor uma lesão mais grave do que a necessária e possível, impelido por motivos alheios à legítima defesa (ódio, vingança, perversidade e assim por diante).

No excesso doloso, portanto, o agente tem plena consciência de que irá causar um dano além do necessário para cessar o ataque, e mesmo assim prossegue. Não há dúvida que neste caso o agente responde pelo resultado, dolosamente.

Há também o chamado excesso culposo, onde o agente, por imprudência, negligência ou imperícia, ultrapassa os limites da defesa. Nesse caso, o agente não tem a intenção de causar um dano maior, mas o causa por displicência. O excesso não é intencional, mas resulta de uma falha do dever objetivo de cuidado.

No caso de excesso culposo na legítima defesa, o autor do fato responde pelo crime na modalidade culposa, caso haja essa previsão legal. No caso de um homicídio, por exemplo, quem excede na sua autodefesa, com inobservância do cuidado no uso moderado dos meios necessários, deve ser condenado pela prática de homicídio culposo.

Tanto o excesso doloso como culposo, são expressos no Código Penal, no parágrafo único do artigo 23:

Art. 23 - Não há crime quando o agente pratica o fato:

I - em estado de necessidade;

II - em legítima defesa;

III - em estrito cumprimento de dever legal ou no exercício regular de direito.

Excesso punível

Parágrafo único - O agente, em qualquer das hipóteses deste artigo, responderá pelo excesso doloso ou culposo.

Há ainda o excesso exculpante. O excesso exculpante já esteve previsto no ordenamento jurídico brasileiro no Código Penal de 1969, denominado excesso escusável e ocorria quando o excesso resultava de medo, surpresa, ou perturbação de ânimo. Atualmente, não há previsão legal para essa modalidade.

Nesse último tipo de excesso, o agente, sob forte emoção ou perturbação de ânimo, reage de maneira desproporcional à agressão, sem que tenha controle pleno de suas ações. Para essa teoria, a reação, embora excessiva, é considerada desculpável devido à situação psicológica do agente.

A doutrina, atualmente, não vê o excesso exculpante como uma causa de exclusão da ilicitude, mas sim, uma causa supralegal de exclusão da culpabilidade pela inexigibilidade de conduta diversa.

A teoria da incerteza na legítima defesa: uma quarta categoria

A teoria da incerteza na legítima defesa propõe uma nova categoria de excesso, que se distingue das outras três formas citadas. Esta perspectiva reconhece que, em determinadas situações de legítima defesa, o agente pode enfrentar uma incerteza razoável sobre a real cessação da ameaça.

A teoria é inspirada no princípio da incerteza de Heisenberg, formulado pelo alemão Werner Heisenberg em 1927, Nobel de Física em 1932. Esse princípio defende que, quanto mais precisamente se determina a posição de uma partícula, menos precisamente se pode conhecer seu momento. E vice-versa. Ele pode ser exemplificado na tentativa de medição da posição exata de um elétron.

Para determinar a posição exata do elétron, é necessário que ele interaja com algum tipo de instrumento de medição, como a luz. Quando se ilumina o elétron com fótons (partículas de luz) para tentar ver onde ele está, esses fótons colidem com o elétron e afetam seu movimento. Essa interação, inevitavelmente, "perturba" o elétron, alterando sua velocidade e direção. Quanto mais você tentar aumentar a precisão na medição da posição do elétron, usando luz de maior energia, mais significativa será essa perturbação. O princípio da incerteza não é apenas uma limitação dos nossos instrumentos de medição, mas uma característica intrínseca do comportamento dessas partículas no nível quântico.

Inspirado nesse conceito, é possível abordar a incerteza também nas complexidades inerentes às reações humanas em situações de perigo real ou iminente. Em determinadas situações de legítima defesa, o agressor busca atingir a vítima, que, por sua vez, tenta repelir a ameaça, usando moderadamente dos meios necessários. O agressor, quando repelido (justamente) pela vítima, esboça uma reação. Essa reação pode ser das mais variadas formas: com medo, surpresa, raiva, violência, reflexos. Diante disso, a vítima, que age em legítima defesa, em fração de segundos, deve analisar e interpretar as reações do agressor e concluir se houve ou não a inércia do comportamento agressivo, para fazer cessar também a sua reação, cumprindo o requisito da moderação.

Assim como no princípio da incerteza de Heisenberg, onde o processo de medição em si de uma partícula influencia seu estado, na legítima defesa, o processo de análise da vítima em medir o perigo pode ser afetada pela imprevisibilidade das ações e reações naturais do agressor frente a própria reação de autodefesa. A decisão de cessar ou continuar a autodefesa deve ser tomada em frações de segundos e sem a possibilidade de uma avaliação por outro ângulo de visão. Essa incerteza cria um paralelo com a impossibilidade de medir simultaneamente a posição e o momento de uma partícula sem afetar seu estado.

Esse contexto de legítima defesa, em que o agente tem dúvida se a agressão cessou ou não, e decide por continuar, não se confunde com excesso doloso, culposo ou exculpante.

A simples existência da dúvida sobre o fim da agressão associada e a ponderação sobre a necessidade ou não de manter a agressão, afasta o dolo deliberado no excesso.

Da mesma forma, não se trata de imprudência, negligência ou imperícia no excesso, pois não houve desatenção, afastando-se a culpa.

Por fim, também não age sob uma limitação significativa de seu discernimento (excesso exculpante), pois analisou logicamente a situação.

A incerteza do excesso na legítima defesa ocorre em situações onde o fim da ameaça não é claro, ou seja, há dúvida razoável sobre a continuidade do perigo e o agente, analisando o contexto de crise, opta, pela manutenção da autodefesa, pois considera que a ameaça ainda pode estar presente.

A incerteza é uma característica intrínseca de muitos confrontos violentos, onde a percepção do risco é subjetiva e depende das circunstâncias concretas enfrentadas pelo agente. Nesse contexto, a continuidade da ação defensiva, mesmo que eventualmente excessiva, deve ser compreendida e, em certos casos, justificada, visto que se baseia na preservação de um bem jurídico maior: a vida.

Por ausência de previsão legal, não se pode aplicar a exclusão pela legítima defesa nesse contexto. Entretanto, nos casos de competência do tribunal do júri, há a previsão constitucional de plenitude de defesa (art. 5º, XXXVIII,”a”, CRFB), podendo então utilizar-se a defesa de argumentos mesmo sem a previsão expressa em lei.

Sendo assim, mostra-se plenamente possível a alegação da incerteza do excesso na legítima defesa, que também pode ser entendida como uma hipótese supralegal de exclusão da culpabilidade, pois, nas circunstâncias em que se encontrava, não seria possível exigir-se um comportamento diferente (inexigibilidade de conduta diversa).

Sendo assim, este artigo introduz uma quarta categoria, distinta das formas dolosa, culposa e exculpante, reconhecendo a presença de uma dúvida razoável sobre a cessação do perigo. Essa categoria não se baseia na perda momentânea de discernimento, na imprudência ou negligência, nem na intenção deliberada de causar dano ciente da ausência de risco, mas sim na incerteza sobre o fim da injusta agressão, inerente à situação de defesa. O estudo sobre a existência da dúvida razoável sobre cessação da agressão oferece uma nova abordagem para entender e julgar o excesso na legítima defesa.

BAYER, Diego Augusto. Defesa legítima: a linha tênue entre o excesso doloso e o excesso exculpante. JusBrasil, 2024. Disponível em: https ://www .jusbrasil .com .br /artigos /legitima -defesa -a -linha -tenue -entre -o -excesso -doloso -e -o -excesso -exculpante /121943186 . Acesso em: 04 out. 2024.

HOSTI, B. P. O que é o princípio da incerteza de Heisenberg?. Espaço-Tempo, 2024. Disponível em: https://www.espacotempo.com.br/o-que-e-o-principio-da-incerteza-de-heisenberg. Acesso em: 2 out. 2024.

TOLEDO, Francisco de Assis. Princípios Básicos de Direito Penal. 3ª ed., São Paulo: Editora Saraiva, 1987.