A busca pela verdade é tema que vem a intrigando toda a humanidade, especialmente, os filósofos ao longo do tempo. Afinal, o que é mesmo verdade? Será possível alcançá-la?
O conhecimento é uma construção social e histórica, além de que a realidade é interpretada de diferentes formas por diferentes pessoas, culturas, etnias e crenças. Lembremos que a subjetividdade e os preconceitos poderão influenciar na interpretação da realidade.
Precisamos enfrentar o fato que a busca pela verdade é importante para o desenvolvimento pessoal e social e, o diálogo e o respeito às diferenças são fundamentais para a evolução da humanidade. Inicialmente, a verdade poderá ser definida como a correspondência entre uma afirmação e a realidade. Algo que é verdadeiro quando correspodente aos fatos. A importância fundamental do conhecimento para a construção da realidade e, nem sempre é algo confiável.
Russell afirmou que nosso conhecimento de verdades é diferente de nosso conhecimento de coisas, tem um contrário, ou seja, o erro. Afinal, quanto às coisas, podemos conhecê-las ou não conhecê-las, mas não existe um estado de espírito positivo que possa ser descrito como conhecimento falso das coisas. Diante de uma ilusão de ótica, se percebemos a ilusão, o conhecimento da coisa foi privilegiado. Porém, se não percebo a ilusão e, passo a acreditar na ilusão, fui ludibriada pela falsa coisa... ou talvez, o falso sentido.
Existe um dualismo no conhecimento das verdades. Podemos crer no falso como se fosse verdadeiro. E, ainda, tem nosso inconsciente que trapaceando nos faz acreditar naquilo que nem existe. O detalhe interessante é que as crenças falsas são frequentemente sustentadas de forma tão firme como as crenças verdadeiras, torna-se um problema difícil saber como distingui-las de crenças verdadeiras. Como poderemos saber se uma crença é verdadeira ou falsa, mas o que significa a questão? É muito relevante manter estas diferentes questões inteiramente separadas, visto que alguma confusão existente entre estas seguramente produziria uma resposta que na realidade não se aplicaria nem a uma nem a outra.
Existem três pontos a observar, segundo Russell, na tentativa de descobrir a natureza da verdade, três requisitos que qualquer teoria deve satisfazer, a saber:
1. Nossa teoria da verdade deve ser tal que admita o seu oposto, a falsidade. A grande maioria dos filósofos tem fracassado por não satisfazer adequadamente esta condição: eles têm construído teorias de acordo com as quais todo nosso pensamento deve ser verdadeiro, e têm então uma grande dificuldade de encontrar um lugar para a falsidade. Nossa teoria da crença deve diferir de nossa teoria do conhecimento direto, visto que no caso do conhecimento direto não era necessário levar em conta o oposto.
2. Parece completamente evidente que se não houvesse nenhuma crença não haveria falsidade, nem verdade, o sentido de que a verdade é mutuamente dependente da falsidade. Se imaginarmos um mundo de pura matéria, neste mundo não haverá qualquer espaço para a falsidade, e embora contenha o que poderíamos denominar de "fatos", não conterá algo verdadeiro, no sentido de que o verdadeiro é da mesma espécie que o falso.
De fato, a verdade e a falsidade são propriedades das crenças e dos enunciados; portanto, um mundo de pura matéria, dado que não conteria crenças nem enunciados, não conteria tampouco verdade ou falsidade.
3. Mas, contra o que acabamos de dizer, deve-se observar que a verdade ou a falsidade de uma crença sempre depende de alguma coisa externa à própria crença. Se eu acredito que Carlos I morreu no cadafalso, minha crença é verdadeira, não por causa de alguma qualidade intrínseca à minha crença, que poderia ser descoberta simplesmente examinando a crença, mas por causa de um evento histórico que aconteceu há mais de três séculos atrás. Se eu acreditar que Carlos I morreu em seu leito, minha crença é falsa: nenhum grau de vivacidade em minha crença, ou de cuidado ao alcançá-la, impedem que ela seja falsa, novamente por causa do que aconteceu no passado, e não por causa de alguma propriedade intrínseca à minha crença.
Portanto, embora a verdade e a falsidade sejam propriedades das cren ças, elas são propriedades que dependem das relações das crenças com outras coisas, não de alguma qualidade interna das crenças.
Esse terceiro requisito nos leva adotar a opinião que geralmente tem sido a mais comum entre os filósofos, segundo a qual a verdade consiste em uma forma de correspondência entre crença e fato.
Não é tarefa fácil descobrir a forma de correspondência contra a qual não existam objeções irrefutáveis. Assim, a verdade consiste numa correspondência do pensamento com algo exterior ao pensamento. A mais relevante tentativa para definição da verdade é a teoria segundo a qual a verdade consiste na coerência. Afirma-se que o indício da falsidade é não ter coerência coma o corpo de nossas crenças e, que a essência da verdade é formar parte do sistema totalemente acabado que é a verdade.
Em muitas questões científicas é certo que existem frequentemente duas ou mais hipóteses que explicam todos os fatos conhecidos sobre algum assunto, e embora em tais casos os cientistas tentem encontrar fatos que excluam todas as hipóteses exceto uma, não existe razão alguma para que sempre sejam bem-sucedidos.
A outra objeção a esta definição da verdade é que ela supõe que sabemos o significado de “coerência”, enquanto, na realidade, a “coerência” pressupõe a verdade das leis da lógica.
Duas proposições são coerentes quando ambas podem ser verdadeiras, e são incoerentes quando uma, pelo menos, deve ser falsa. Mas, a fim de saber se duas proposições podem ser ambas verdadeiras devemos conhecer verdades como a lei de contradição. Por exemplo, as duas proposições, “esta árvore é uma faia” e “esta árvore não é uma faia” não são coerentes, por causa da lei de contradição. Mas, se a própria lei de contradição fosse submetida ao teste da coerência, descobriríamos que, se escolhêssemos supô-la falsa, não poderíamos mais falar de incoerência entre diversas coisas.
Assim, as leis da lógica proporcionam o esqueleto ou estrutura dentro da qual se aplica o teste da coerência, e elas mesmas não podem ser estabelecidas por este tese.
Há alguma confusão em Bertrand Russell sobre este tema. O verdadeiro e o falso não são apenas propriedade das crenças e das asserções. A verdade não se restringe ao juízo, à asserção, à afirmação ou negação de algo. A verdade está já contida, de forma originária ou embrionária, nas intuições intelectuais ou conceitos que compõem o juízo. O clarear da verdade será o juízo - definição de um conceito, asserção ligando dois ou mais conceitos- ou o raciocínio - articulação lógica e inferencial de dois ou mais juízos.
Mas, há um anoitecer ou uma noite da verdade, anterior ao juízo, que é as essências das coisas ou as próprias coisas,que são verdades em si mesmas, intuitíveis. Exemplo: o número dois é um conceito - ou um arquétipo para os platónicos - automaticamente verdadeiro, sem dar lugar a falsidade.
Se digo «Hoje há nuvens no céu» já há «grãos» de verdade nos conceitos de nuvem, céu e hoje, - e esses «grãos» não admitem nenhuma falsidade em si mesmos - mesmo que a afirmação seja falsa, no contexto histórico. Neste caso, a falsidade está na oposição entre a essência-frase e a existência-referente/ situação real.
Se identificarmos o termo verdade com realidade e o termo falsidade com irrealidade, é óbvio que não há terceira via, isto é, não há coisas que não são verdadeiras nem falsas.
A suspensão do juízo de existência é uma suspensão do conhecimento da verdade, mas não é, no plano eidológico, estar fora da dicotomia verdade-falsidade. No plano das essências, formas estáveis ou imóveis desligadas da existência, por posição ou por abstracção, não há falsidade: a matéria é tão real como a anti-matéria; o comunismo igualitário e portador de liberdades individuais é idealmente, eidéticamente, real, ainda que seja falso no plano existencial, isto é, impossível de colocar em prática. Dito de outro modo: há ideias que são verdades no plano ideal e mentiras, irrealidades, no plano existencial, físico-social.
A verdade sofre níveis distintos de oposição:
A) No plano da essência ideal, como verdade-essência ou eidética, é sempre verdade, apesar de possuir contrários que não a anulam, mas que com ela coexistem (exemplo: o belo ideal é real nesse plano, não é anulado pelo feio ideal, e vice-versa). É o reino do imutável, perene.
B) No plano da existência ou essência materializada, como verdade ontológica, existencial, é em curtos períodos, ou mesmo a cada instante negada, alterada, ou falsificada pelo seu contrário eidético-ontológico ( exemplo: o político incorruptível cede a pressões de um lobby, isto é, deixa de ser incorruptível; a saúde dá lugar à doença, etc.).
A verdade jurídica é, essencialmente, ato de valor, o que não significa que dependa do arbítrio ou mero capricho do sujeito que a propaga. Portanto, há de se referir a um discurso coletivo em que o consenso se torna a pedra angular. A verdade esbarra na enorme dificuldade em se definir a Ciência do Direito, pois o conhecimento científico se constrói a partir de constatações certas, cuja evidência, em certa época, nos indica em seu elevado grau que são verdadeiras.
Para alguns estudiosos, a Ciência do Direito é interpretativa e restrita ao estudo lógico-formal dos fenômenos jurídicos sem a preocupação com seu conteúdo social e axiológico, tem-se que o jurista e o operador do direito não se limitem a conhecer o normativo, mas são forçados a fazerem escolha entre duas ou mais realidades para melhor interpretar e aplicar a norma como o enunciado de comportamento obrigatório.
Até mesmo nas Ciências naturais, o valor da verddade não possui a áurea inqueestionável da universalidade e da imutabilidade. Questiona-se qual seria o alto grau de certeza na ciência jurídica?
Sem dúvida, o apelo à linguagem pois somente através desta que o sujeito tem contato com o mundo externo, percebendo e criando a realidade e, por consequência, desffazendo o mito da verdade absoluta.
Segundo Miguel Reale o entendimento da verdade e das soluções universalmente válidas nos conduz ao esstudo das condições últimas dos primeiros princípios que governam a realidade natural e o mundo moral, ou a compreensão crítico-sistemática do universo e da vida.
Por Aristóteles temos que o processo de conhecimento iniciava-se pela sensação e, não pela exatidão de afirmações universais e necessárias sobre os fenômenos.
Para Aristóteles o conhecimento científico e cada ciência particular apresentam a natureza de um conhecimento de verdade demonstrada. As verdades afirmadas pelas ciências deveriam ser verdades que se referissem aos fenômenos tal como realmente são.
No pensamento de Santo Agostinho, Deus é o criador de todas as coisas: é bom, sábio, eterno, fonte do inteligível e fonte da verdade. Ele está presente em todos os campos da ação humana. Deus tem o poder de decidir sobre a salvação do homem (mediante a graça), e tem também o domínio sobre a possibilidade do conhecimento (mediante a iluminação).
Esse conhecimento deve ser imutável e essa exigência de imutabilidade só pode ser proveniente de algo superior, que dá fundamento à verdade: Deus. É por meio da iluminação divina que o homem, por um processo interior, chega à verdade; não é o espírito, portanto, que cria a verdade, cabendo-lhe apenas descobri-la e isso se dá via Deus. O conhecimento verdadeiro provém, portanto, de fonte divina – eterna e imutável – e não humana.
Graças à influência de Aristóteles, o pensamento de São Tomaz representa certo distanciamento com o pensamento dominante no mundo católico cristão da idade média, pois como bem ressalta Michel Villey (2008), uma das características pessoais de sua teologia é a de reconhecer o valor da filosofia pagã. Trata a cultura dos pagãos como sendo em si mesma carregada de verdades.
Nesse sentido, São Tomaz de Aquino divulga a ideia de que uma das funções da alma humana, a mais perfeita, é a intelectiva. É por meio da atividade intelectiva que se pode chegar ao conhecimento. Defende a existência de verdades decorrentes do uso da razão e dos sentidos, obtidas pelo chamado “conhecimento conceitual”.
Na Idade Média, a religião serviu de marco referencial para todas as ideias da época, impondo um sistema ético subordinado a uma ordem transcendente.
Com o advento do iluminismo, o homem coloca-se no centro do universo e passa a questionar a origem de tudo aquilo que o cerca, buscando resposta para o universo político, jurídico e natural, segundo dados estritamente humanos, sem intervenção dos dogmas metafísicos, dos preconceitos morais e das crenças religiosas.
No Prefácio à primeira edição da Crítica da Razão Pura (2005), Immanuel Kant define sua época como de crítica dizendo:
"A nossa época é por excelência uma época de crítica à qual tudo deve submeter-se. De ordinário, a religião, por sua santidade, e a legislação, por sua majestade, querem subtrair-se a ela. Mas, neste caso provocam contra si uma justa suspeição e não podem fazer jus a uma referência sincera, referência esta que a razão atribui exclusivamente àquilo que pode sustentar-lhe o exame crítico e público".
Assim, a filosofia iluminista se apresenta extremamente otimista por acreditar no processo do conhecimento por meio do uso crítico e construtivo da razão.
Tal modo de pensar provoca significativa influência no mundo político – contribuindo decisivamente para a Revolução Francesa – e no mundo jurídico – abrindo caminho para a construção de sistemas jurídicos em códigos de lei e o surgimento do positivismo jurídico.
O positivismo lógico ou empirismo lógico surgiu no início do século XX com o Círculo de Viena, liderado por Moritz Schlick. Esse era um grupo de discussão constituído por cientistas e filósofos com o objetivo de criar uma nova filosofia da ciência com uma rigorosa demarcação do científico e do não-científico.
O manifesto do Círculo de Viena, publicado em 1929, trouxe as seguintes medidas: a) colocar a linguagem do saber contemporâneo sob rigorosas bases intersubjetivas; b) assumir uma orientação absolutamente humanista, no sentido de que “o homem é a medida de todas as coisas”; c) todo o conhecimento fica circunscrito ao domínio do conhecimento empírico; d) a reivindicação do método e da análise lógica da linguagem como instrumento sistemático da reflexão filosófica.
Os positivistas exigiam como pressuposto do estudo científico que cada conceito presente em uma teoria deveria fazer referência a algo observável. As sentenças que não pudessem ser verificadas estariam fora da fronteira do conhecimento. Apesar de a teoria atômica ganhar consistência no início do século XX, alguns positivistas se recusavam a aceitá-la como científica alegando que os átomos não poderiam ser observados direta ou indiretamente pelos sentidos.
Para o positivismo, o conhecimento factual ou empírico deveria ser obtido a partir da observação, pelo método indutivo. A indução, assim, representa o cerne do pensamento positivista, constituindo-se no processo pelo qual a partir de certo número de observações e experimentos chega-se à conclusão de um conceito mais amplo. Sai-se de casos individuais e chega-se no geral: obtenção e confirmação de hipótese e enunciados gerais a partir da observação de situações concretas e específicas.
O método indutivo era justificado com o argumento de que na ciência haveria um progresso cumulativo de conhecimentos de modo que as novas leis e teorias seriam capazes de explicar um número cada vez maior de acontecimentos considerados exatos e verdadeiros. Entretanto, no sistema filosófico proposto por Karl Raimund Popper para a epistemologia, o progresso do conhecimento ocorre com base nas conjecturas e refutações e não na cumulação progressiva.
A busca pela verdade científica inicia-se com formulação de hipóteses, de soluções, que procuram resolver problemas. Tais hipóteses são submetidas a testes que se fundam em observações e experimentos. Se a hipótese de solução passar pelos testes, ela é admitida como solução provisória para o problema ante sua corroboração.
A verdade pragmática é também chamada de verdade como utilidade. Considera verdadeiro um enunciado quando houver efeitos práticos para quem o sustenta.
Para essa corrente filosófica, a verdade não seria um valor teórico, mas apenas expressaria a utilidade para a conservação da vida e das relações de poder. Nega-se caráter de cientificidade a esse pensamento, ante a restrição do conceito de verdade ao pragmatismo.
A verdade resultaria do consenso ou acordo entre os indivíduos de determinada comunidade ou cultura. Baseia-se na communis opinio. A verdade por consenso também pode ser vista como algo constituído pelo sistema em que se insere.
Essa corrente filosófica defende a impossibilidade da verdade absoluta, pois o consenso prestigiaria a sua contextualização social, relativizando as opiniões comuns ou dominantes com o passar do tempo em busca de novos consensos.
Durante décadas a filosofia, notadamente a Teoria do conhecimento, dedicou-se a investigações acerca do conhecimento, preconizando a existência de um sujeito cognoscente e um objeto cognoscível. Grosso modo, podemos dizer que toda a discussão que envolvia o conhecimento estabeleceu-se nos moldes desse quadro dualístico, e que alguns representantes depositavam mais confiança e importância no objeto, outros, no sujeito cognoscente.
Com o surgimento da Filosofia da Linguagem, inaugurada com a obra “Tractatus lógico-philosophicus” de Wittgenstein, a teoria do conhecimento, inicialmente centrada no caráter exclusivamente descritivo da linguagem, sofreu profunda alteração: a linguagem passou a ser considerada como algo independente do mundo da experiência, convertendo-se em algo capaz de criar tanto ser cognoscente quanto a realidade.
É que o ser humano se encontra inserido no “cerco inapelável da linguagem” e só por meio dela é que mantém contato com o mundo físico, sem, entretanto esgotá-lo completamente, afinal a linguagem apta para falar do mundo é inesgotável.
Nesse sentido, todo conhecimento é produzido pela linguagem. Assim, como pondera Del Padre (2012), “sendo produzido pelo homem, o conhecimento apresenta-se condicionado ao contexto em que se opera, dependendo do meio social, do tempo histórico e até mesmo da vivência do sujeito cognoscente”.
Existir para o sujeito cognoscente não significa estar no mundo. A realidade não é senão uma forma de perceber o mundo. Afinal, a linguagem não reflete as coisas como elas são, ao contrário a linguagem precede os objetos, constituindo-os para o ser cognoscente.
O valor verdade opera no âmbito “do dizer sobre”, por meio do qual o jurista, o julgador, o intérprete, constroem as suas afirmações em relação a outros enunciados. A verdade, desse modo, exsurge no espaço entre linguagens; na relação entre enunciados.
Dentro da teoria do construtivismo-lógico semântico, encontra-se reiteradamente a defesa de que a verdade estaria vinculada ao mundo da lógica. É o caso da Professora Aurora Tomazini, que adota a magna premissa do construtivismo-lógico de que a verdade não se descobre – pois não há essências a serem descobertas, pelo contrário ela é construída linguisticamente - indica a lógica como parâmetro para a verdade no âmbito do direito.
Diz Tomazini (2012) que “a melhor que se enquadra no modelo adotado neste trabalho é a verdade como valor em nome do qual se fala, característica lógica de qualquer discurso descritivo (verdade lógica)”.
Nesse mesmo sentido, é o entendimento da professora Florence Haret (2010), que sustenta dois postulados, com duvidosa precisão, a saber:
(i) “não se deve buscar a verdadeira correspondência do real”, pois o “o ser do discurso jurídico não se refere diretamente ao mundo em sua concretude, e sim, às próprias leis discursivas a que se submete” e, ainda,
(ii) “a verdade juridicamente aceita é tão somente aquela que se submete à lógica do sistema, às formas prescritas”.
Para os defensores dessa corrente de pensamento, “o direito cria sua própria realidade, sem necessariamente ter de coincidir com seu referente social”. Porém, deve-se ter redobrada cautela para evitar o entendimento de que o direito estaria desgarrado do mundo cultural e imune às influências dos valores, vivendo apenas da companhia da atividade lógica.
Atualmente, ninguém imagina que mesmo o mais ferrenho defensor da exegese ortodoxa, defenda a ideia de que a interpretação seja uma atividade a-temporal, universal, objetiva, em sociedades marcadas indelevelmente pela pluralidade e pelas diversidades culturais e econômicas.
Ao contrário do que o positivismo jurídico possa convencer, mas atualmente, em pleno século XXI, é seguramente mais aceitável o argumento de que a realidade social seja capaz de ajustar a interpretação aos fins do direito, do que a norma jurídica, com sua força imperativa característica, seja aplicada com exclusivo rigor lógico.
A verdade no direito não pode se restringir à verdade lógica. Mesmo no interior do construtivismo lógico, observa-se a necessidade de se estabelecer um vínculo permanente entre o sistema jurídico e os demais sistemas que compõem a cultura humana.
É o que se verifica na doutrina da Professora Florence Haret que, apesar de defender enfaticamente a verdade lógico-jurídica, com o entendimento de que “o verdadeiro para o direito é aquilo que é formalmente verdade para ele” (2009), acaba por aceitar, mais adiante, o elo entre o mundo do direito e a realidade social no qual se encontra inserido ao dizer:
Por verdade lógico-jurídica deve-se entender, portanto, aquela que mantém um mínimo de correspondência como o universo empírico, apta a gerar consenso entre sujeitos de direito, para fins de se tornar útil suficiente para regular condutas e alterar a realidade social.
Verifica-se, desse modo, que no interior do construtivismo-lógico existe uma necessidade inadiável de se estabelecer vínculos com a realidade social. Nesse sentido, tenho que a verdade pelo consenso melhor atende tal necessidade.
No entanto, a verdade lógica encontra-se aquém da verdade pelo consenso. Existe a possibilidade de a verdade lógica ceder espaço à verdade pelo consenso. No mundo jurídico, determinadas verdades constituídas com extremo rigor lógico, vez por outra podem deixar de ser consideradas pela comunidade jurídica em razão das relações sociais exigirem nova configuração na interpretação da norma jurídica.
Apesar da importância inquestionável da lógica no discurso jurídico, tem-se que, por outro lado, a verdade lógica é conservadora, engessa a evolução do direito e se constitui, muitas vezes, em limitação a atuação do julgador. Noutro vetor, a verdade pelo consenso é, em muitos aspectos, inovadora e dispensa as regras da lógica interna do sistema quando necessário para atender as reivindicações sociais. Assim tem ocorrido com a tese da relativização da coisa julgada, no desuso da regra penal relativa ao crime de adultério, no trato das questões sobre homoafetividade e outras.
Para a mudança de paradigmas de compreensão do direito, a doutrina tem desempenhado seguramente relevante função na formação do consenso sobre a matéria jurídica. É através dela que se estabelece na comunidade cientifica um ambiente propício para o desenvolvimento de ideias que irão proporcionar a atualização do direito.
O professor Thiago Matsushita (2012), em sua tese de Doutorado “O Jus-humanismo normativo – Expressão do Princípio Absoluto da Proporcionalidade”, coloca a doutrina como elemento “participante” da aplicação do direito ao lecionar que: "é fato que as decisões judiciais, frequentemente, são embasadas em teorias desenvolvidas na Academia e decorrente de estudos teóricos específicos, por meio de pareceres, que são desenvolvidos por professores para subsidiar os casos práticos".
ressaltamos, mais uma vez, o nosso compromisso em aceitar a verdade por consenso como a corrente de pensamento que melhor expressa a verdade no âmbito do direito, tendo a doutrina importância decisiva na construção desse consenso.
Com a publicação do Tractatus lógico-philosophicus de Ludwig Wittgenstein, no início da década de 20, o processo de conhecimento sofreu verdadeira revolução na sua estrutura, ante o postulado de que a realidade não passa de uma interpretação; do sentido que atribuímos aos dados brutos da realidade.
A verdade por correspondência torna-se, assim, incompatível com o movimento do giro-linguístico inaugurado com a mencionada obra. O sujeito é criador da realidade e a verdade absoluta não mais pertence ao mundo científico, em razão da inesgotabilidade da interpretação. O aplicador do direito produz a verdade a seu modo, ao constituir os enunciados probatórios necessários ao julgamento.
A verdade jurídica é, na essência, um ato de valor. Isso, todavia, não significa que a verdade, como ato de valor, dependa do arbítrio ou do capricho do sujeito que a propaga. Por isso, há de se referir a um discurso coletivo, onde o consenso se torna a pedra angular.
A doutrina (acadêmica e jurisprudencial) serve de importante instrumento para alcançar a verdade consensual, que muitas das vezes, rompe com as regras da lógica interna do sistema quando necessário para atender com maior eficiência e presteza o disciplinamento de novas relações sociais. O que tem ocorrido frequentemente no âmbito dos nossos tribunais superiores, ao proferir decisões superando paradigmas já ajustados à lógica interna do sistema.
Merece atenção as pontuações de Maria Gorete Marques de Jesus, em sua tese de doutorado em Sociologia, intitulada "O que está no mundo não está nos autos: a construção da verdade jurídica nos processos criminais de tráficos de drogas." In litteris:
"O que torna possível que narrativas policiais sobre flagrantes de tráfico de drogas sejam recepcionadas como verdade pelos operadores do direito, sobretudo juízes?
Qual verdade jurídica é construída quando a testemunha consiste no próprio policial que efetuou o flagrante? Para responder a essas questões, o estudo apresenta análises dos autos e processos judiciais, de entrevistas com policiais e operadores do direito e dos registros de campo de audiências de custódia, e de instrução e julgamento acompanhadas por observação direta. A variedade de fontes de dados exigiu o uso de multimétodos, tendo como ponto central a análise de fluxo do sistema de justiça criminal.
Constatou-se que a verdade policial, descrita nos autos, resulta de um processo de seleção daquilo que os policiais do flagrante vão considerar adequado tornar oficial. Para descreverem essas prisões, os policiais dispõem de expressões, linguagens e categorias, utilizadas em suas narrativas.
Esse vocabulário policial justifica a abordagem e a prisão, e passa a fazer parte do campo do direito, incorporado em manifestações e decisões judiciais. Contudo, descobriu-se que um repertório de crenças oferece o suporte de veracidade às narrativas policiais: a crença na função policial, acredita-se no agente por representar uma instituição do Estado; crença no saber policial, acredita-se que os agentes apresentam suas técnicas, habilidades e estratégias para efetuarem as prisões; crença na conduta do policial, acredita-se que policiais atuam de acordo com a legalidade; crença de que o acusado vai mentir, acredita-se que os acusados têm o direito de mentir para se defenderem; crença de que existe uma relação entre criminalidade e perfil socioeconômico; crença de que os juízes têm o papel de defender a sociedade e a prisão representa um meio de dar visibilidade a isto.
A crença é apresentada por promotores e juízes como necessária para o próprio funcionamento do sistema de justiça. A crença dispensa o conhecer, não se questiona a forma como as informações foram produzidas e adquiridas pelos policiais. Práticas de violência, tortura ou ameaça não são averiguadas. Como não consideram verdadeiras as narrativas das pessoas presas, sobretudo aquelas acusadas por tráfico de drogas, expressões como violência policial, extorsão, flagrante forjado não aparecem nas deliberações de promotores e juízes.
A crença é central para o exercício do poder de prender e punir dos juízes. A verdade policial é uma verdade que vale para o direito, possui uma utilidade necessária para o funcionamento do sistema, para que os juízes exerçam seu poder de punir, sendo o elemento central para a constituição da verdade jurídica".
Cumpre elucidar sobre o princípio da verdade material que é o mais significativo do processo penal. E, corresponde a um juízo de valor extraído das provas produzidas no processo e que toda a decisão condenatória, para confirmação da sua própria validade, exige essa conformidade com o esclarecimento pleno da verdade. Busca se a verdade com o propósito de ir ao encontro de um Porto seguro e superior ao do território no qual assenta-se a verossimilhança fática. Corresponde que as partes se vinculam a verdade material, a ponto de o juiz e não a elas, é que incumbia definir, segundo sua convicção, os termos da questão como deveriam postular-se e os meios de prova, como haveriam de ser produzidos. Com a adoção desse princípio, pretendia-se reproduzir o fato objeto da acusação, que pertence ao mundo externo, sem artificio, presunção ou ficção, é por meio da aplicação do princípio da verdade material que o juiz passa a conhecer a verdade como ela é, despida de qualquer artificialismo.
Já o Princípio da Verdade Formal: permite-se ao juiz ser mais condescendente na apuração dos fatos, sem que tenha de submeter-se ao rigor da exigência de diligenciar ex oficio com o objetivo de descobrir a verdade, tal qual sucede no caso de aplicação do princípio da verdade material. Enquanto na verdade material extrai se o aceite a intervenção na colheita de provas por parte do aparelho estatal, já no campo da verdade formal firmou-se a ideia de que a reprodução jurídica do fato exaure-se nas provas e manifestações trazidas aos autos pela parte, esta também é produto da inteligência humana, que pode ou não ser condizente com a realidade.
O descobrimento da verdade deve obedecer rigorosos princípios éticos, com lisura moral e nem prescindir de estrita obediência ao princípio do contraditório. Esse é o preço pago em benefício da preservação de direitos e garantias individuais permanentes. O descobrimento da verdade é um resultado de esforços que provém dos sujeitos que atuam no processo.
Recordemos que a prova é um instrumento da verdade, somente o que esta provado pode ser tido como verdadeiro. A prova judiciária é realizada no sentido de demonstração, ao órgão jurisdicional, da verdade de um dos fatos afirmados pelas partes. E, tal se dá para que o julgador se conheça de sua correspondência com a realidade. A produção de provas passa a ser requisito básico e insubstituível para a própria realização do direito material. E impõe-se que as provas sejam evidentes, seguras e aptas a transmitir a necessária confiança ao julgador. Sublinhandose que a utilização da prova só é válida se obtida nos termos da lei processual.
Na Conferência I, Foucault expõe a pesquisa cujo título “A Verdade e as Formas Jurídicas” é o ponto de convergência de outras realizadas por ele. Esclarece que é uma pesquisa histórica, visando definir como as práticas sociais engendram domínios de saber “que não somente fazem aparecer novos objetos, novos conceitos, novas técnicas, mas também fazem nascer formas totalmente novas de sujeitos e de sujeitos de conhecimento” , no século XIX.
Foucault explica que o aparecimento da prisão tem função mais simbólica e exemplar do que corretiva. Na realidade, esta é uma imagem invertida da sociedade, pois em essência se assemelha a todo o resto. Discorda
taxativamente de Marx e Hegel sobre a visão que têm do termo ideologia, pois considera que não existe
uma ideologia pura, ligada às relações de poder e funcionamento do saber, sendo por esse motivo,
um termo que precisa ser revisto.
Foucault também discorda que a essência do homem seja o trabalho, apregoado por esses dois autores. Ele afirma que esta ideia de “essência do homem é o trabalho” é uma produção discursiva, fruto de um poder político que visava acoplar o sujeito ao seu instrumento de produção.
E quanto à análise marxista de mais-valia, o autor afirma que só houve geração de sobrelucro porque existe um sub-poder – “conjunto de pequenos poderes, de pequenas instituições situadas em um nível mais baixo”–, ou seja, o subpoder é condição e possibilidade do sobrelucro. Este subpoder provocou o surgimento de uma série de saberes, fazendo emergir as ciências humanas e o homem como objeto das ciências.
Concluiu Foucault que, pelo exposto nas cinco conferências, “O ‘inquérito’ e o ‘exame’ são precisamente formas de saber poder que vêm funcionando ao nível da apropriação de bens na sociedade feudal, e ao nível da produção e da constituição do sobrelucro capitalista”
Em "A Verdade e as Formas Jurídicas", Foucault questiona radicalmente o conceito de verdade e analisa sua construção na trama das relações de poder. A partir da proposição do binômio saber-poder, analisa as principais práticas jurídicas engendradas ao longo da história do Ocidente e ainda revela como, no sec. XIX, a criação da sociologia e da psicologia atuaram como novas formas de controle social sobre o indivíduo, tendo a arquitetura do Panopticon como modelo de instituição ideal.
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