Reforma Tributária
Uma brilhante apresentação organizada pela Escola da Magistratura de meu estado propôs na manhã do dia 05/07/2024 aos estudantes algumas reflexões importantes sobre a reforma tributária, desmistificando-a e expondo suas projeções mais realistas para o futuro, as quais eu gostaria de compartilhar a seguir.
Da análise do diagrama da reforma constitucional tributária brasileira, observa-se que a Emenda Constitucional 132/2023 representou uma mudança de paradigma no sistema de tributação, de modo que antes de seu advento, o direito tributário deparava-se com críticas em relação à sua inoperância, às deduções de que o Brasil dispunha de uma elevada carga tributária e à falta de transparência imperante no sistema.
Uma comparação proposta por um dos professores me chamou a atenção e foi a seguinte: a esfinge quando pretende decifrar um enigma, mira o horizonte para refletir sobre ele, o mesmo ocorre com a reforma tributária, no sentido de que faz-se mister estudar um fenômeno sem apartar-se de suas consequências para o amanhã, ainda mais no que se refere a um tema desta monta. Como um jurista sério, é preciso buscar o entendimento quanto à plasticidade metodológica que o legislador utilizou, mergulhando em sua expectativa jurídica quando regulamentou o assunto orçamentário e entrou no mérito da confecção de um Código Tributário Nacional.
Entretanto, em caso de uma reforma como a que nos encontramos, não há uma metodologia estruturante que justifique solidamente as razões de ser de um projeto reformador. Mas ainda assim, alterar uma lei por vezes é praticar o que há na legislação, vez que as leis podem prever matérias relativas à sua própria revisão ou alteração, de modo que não se trata de uma reforma fora do sistema. Para se obter o exemplo mais nítido dessa situação não é necessário buscar legislações longínquas, vez que até mesmo na Constituição Federal existem previsões quanto ao seu emendamento, sua supressão e sua modificação. No âmbito do direito tributário, as leis discorrem sobre a possibilidade e o procedimento de sua própria mudança, significando uma tutela dos arquétipos legais do sistema tributário sem o absolutismo totalizante que obstaria uma reforma substancial de seu conteúdo.
Quando nos debruçamos sobre o pacto federativo, costumamos compreendê-lo como um preceito constitucionalmente petrificado e um dos critérios básicos para a mantença da ordem democrática em um Estado Federal composto de poderes que se sobrepõem, de modo que o ponto de vista sobre isso frequentemente recai no nível geográfico de repartição de competências, talvez por ser de visualização facilitada. Cabe, contudo, observar outro viés do pacto federativo, que se relaciona à imprescindível autonomia financeira para que se possa afirmar a posição de autonomia federal imbricada no poderio econômico com suas respectivas classificações que lhe são inerentes. Portanto, compreender algo que nos é tão caro, como o Estado Federal, passa antes de tudo pelo sistema de tributação, daí a sua relevância.
Em razão das crises inflacionárias atravessadas pelo Brasil, nunca se soube verdadeiramente a carga tributária que o País compreende. Porém, certamente duas falácias que cercam o direito tributários são as seguintes:
• A legislação tributária goza de completude.
• O Brasil detém alta carga tributária.
Este último tópico é superado pela constatação de que o Brasil dispõe de uma baixa carga tributária, quantificada inicialmente em cerca de 25% a 27%, passando-se posteriormente para 32% a cerca de 34%.
Já quanto ao primeiro mito supracitado, não se admite entender que o CTN encerra em si toda a regulamentação tributária ou que a Constituição traça seus princípios genéricos de forma exclusiva. Observou-se a necessidade de uma lei a fim de complementar a Constituição, fornecendo-se ao CTN o status de lei complementar, assim situado em suas relações de subsidiariedade com a Lei Maior. E assim como não se pode incriminar alguém em ato anterior à tipificação legal (nullum crimen, nulla poena sine praevia lege), igualmente não se pode exigir determinado tributo sem lei prévia que discorra sobre o seu recolhimento.
Voltando no tempo, em 1992 realizou-se uma comissão de reforma tributária, e municípios e estados começaram a criar suas próprias leis referentes aos tributos. A partir destes movimentos, os professores compararam o sistema tributário brasileiro com o modelo espanhol de tributação, apontando a diferença de que neste último inexiste competências tributárias centralizadas na União, de forma que cada ente pode instituir seu tributo, visto que a União atrai para si a prerrogativa sobre tributos que não possuem requisitos quanto à repartição de receitas.
Por alguns motivos, pode-se dizer que a reforma veio em boa hora, proporcionando o aumento da carga tributária em favor da União ao passo em que incrementou as obrigações aos municípios, que têm em vista uma maior proximidade com os tributos a serem pagos pelos habitantes. Um dos principais objetivos que, na prática, a reforma tributária visa é à diminuição da ação do consumo e o aumento da renda oriunda de serviços, o que se caracteriza como outro perfil de arrecadação, realidade que é facilmente observada nos EUA, com o barateamento de produtos e o aumento no preço dos serviços.
Falar sobre um rearranjo tributário envolve problematizar a ideia clássica de tributos e expandi-la para temas em voga, como a tributação ambiental e a alimentar. Há uma tendência de aprimoramento de meios como compliance, arbitragem e até mesmo o melhor aparelhamento dos insumos tecnológicos que reformem a noção superada de um direito tributário sancionatório. Poderia se dizer, que se trata de uma realidade orçamentária que vem se tornando multidimensional e fragmentada, já que tem como pauta inclusive, extinguir determinados tributos, como o ISS, o COFINS, o IPI, o PIS e o ICMS.
Cumpre salientar que o CTN data de 1966 e é coetâneo da Constituição brasileira de 1946. Isto é, regula-se por uma legislação antiga que vive até os tempos atuais, enfrentando os desafios de tributar na era da globalização. Um ponto que me chamou a atenção e que foi suscitado pelos professores diz respeito à comparação entre a participação popular na reforma do Código de Processo Civil de 2015, ante a qual, a reforma no âmbito cível foi “uma perda de oportunidade”, nas palavras de nossos mestres, visto que não foi oportunizada ao povo a devida participação no projeto reformador.
De maneira similar, essa situação se repete no que tange à reforma tributária, observando-se que as mudanças decisivas à coletividade vêm sendo discutidas hermeticamente por um grupo seleto de pessoas que abarca para si o papel de definir os rumos da tributação brasileira, de forma que o povo observa de fora e com poucas informações que chegam até o público leigo, que diante da reforma, está dividido entre otimistas, neutros, pessimistas e aqueles que não sabem o que está se passando. Assim, é incorreto inferir que houve um envolvimento nacional na reforma, de forma que esta se restringiu basicamente aos prefeitos em suas prerrogativas suplementares quanto ao assunto, aos membros da Confederação Nacional da Indústria (CNI), e logicamente, aos empresários.
É comum que fôssemos acometidos por alguns questionamentos das seguintes naturezas: é necessária uma reforma ou alguns ajustes já sanariam as lacunas orçamentárias que subsistem apesar do código e que merecem revisão? Ou então há quem alegue que a reforma tem o intuito primordial de aumentar a arrecadação, frente a isso pode-se perguntar se seria preciso para tanto uma reforma tributária ou o efeito almejado poderia ser alcançado por outros mecanismos? O que se pode afirmar com certeza é que uma reforma deve ser, sobretudo, útil ao cidadão e prezar por objetivos com os quais o projeto se compromete, como a simplicidade, a equidade e a transparência.
Já é sabido que reforma grande parte dos conflitos são definidos por lei complementar, visto que não há um molde definitivo na Constituição Federal. Seguindo-se a risca cada meta traçada e considerando-se exitosa para aquilo a que se presta, tem-se a previsão de que a reforma tributária terminará apenas em 2097. Uma informação que é bastante básica mas indispensável à compreensão, é a diferenciação entre impostos diretos e indiretos. Os primeiros são aqueles devidos à determinada instituição financeira, enquanto que os últimos fazem referência ao prelo que já vem embutido no preço das mercadorias, e que, portanto, não são de todo visíveis.
Ademais, alguns desafios que parecem intransponíveis persistem, como a amplamente conhecida desigualdade material que assola o Brasil e que seguramente se reflete no poder aquisitivo e no sistema financeiro. Em um país em que as alíquotas deveriam ser progressivas, elas regridem, e onde 0,1% da população concentra 12% da renda declarada no Brasil, sendo que somente na região sudeste, a renda nacional está concentrada sob o manto do percentual de 51%, 10% capitalizam a metade e os 50% mais pobre corresponde a 15% da renda. Destes ilustrativos dados numéricos, pode-se extrair que o princípio norteador da reforma no que toca à equalização não se materializou.
Não se pode desconsiderar também as demandas das classes sociais cuja renda volta-se em grande medida à subsistência. Por exemplo, ao fazer uso de medicamentos básicos à saúde aplica-se um imposto, o que, proporcionalmente, significa um custo elevado à população. É nítido que incide muita discussão e judicialização sobre a reforma tributária brasileira, que tem se caracterizado por sua interdisciplinaridade ao abranger em seu projeto o olhar técnico de contadores, economistas, juristas e administradores.
Por fim, existe um subjetivismo que reina no direito tributário, sendo crucial que sejam esboçados princípios gerais a fim de conferir um norte de aplicabilidade ao situar o hermeneuta em um molde de tributação que segue um efeito cascata, além de que sejam seguidos os preceitos da neutralidade e da não cumulatividade, como já bem preleciona o Código de Defesa do Contribuinte. Ainda, convém ressaltar que há dúvidas a serem respondidas, como o motivo da fixação de alíquota zero ao IPI ao invés da extinção da referida taxa, mas até 2097 dispomos de bastante tempo para acompanhar o desenrolar deste projeto, tendo a ciência de que é competência do STJ as matérias inerentes ao comitê gestor do ambicioso projeto.