De fato, o que marcou o início de Platão como grande filósofo foi a morte de Sócrates, que o impressionou profundamente pela atitude de seu mestre diante daquelas circunstâncias. Em verdade, Sócrates morreu pois se recusou a colocar o senso político e o interesse pessoal em sua sobrevivência acima da verdade, então ao invés de se retratar e insistir na busca da verdade, como os seus acusadores queriam, ou de fugir, foi ao tribunal e os enfrentou com argumentos, desmascarando a farsa das acusações contra ele e indiretamente a farsa da própria democracia em que estavam vivendo.
Condenado à morte como inimigo da democracia e da religião de Atenas (porque acreditavam em vários deuses e, Sócrates apesar de frequentar o templo do deus Apolo, que era o deus do Sol, e de participar de todos os rituais, valorizava muito aquele estranho daimon da superstição popular e, mais do que isso, incomodava os religiosos por buscar sempre o que seria um conceito universalmente válido e mais verdadeiro de "deus", por detrás de todos os deuses.
Acusaram-no, entre outras coisas, de estar querendo introduzir novos deuses que não eram os da Igreja oficial da época, e isso era crime. Acusaram=no de fazer isso quando valorizava tanto o daimon, quase como se fosse um deus, e principalmente quando cogitava no tal deus superior e de valor universalmente válido...
Queriam dizer que os outros deuses eram falsos, já que não eram um só e com mesmo valor superior para todo o mundo. Mas, não queriam condená-lo à morte. Queriam que ele fugisse, para desmoralizá-lo, acusando ainda mais de ser um falso democrata e um inimigo oficial da religião da democracia de Atenas.
Sócrates não fugiu e ainda se declarou como verdadeiro democrata e apesar de todos os seus graves defeitos, a democracia, mesmo assim, era uma democracia real, que existia na prática, aceitou a decisão da Assembleia democrática e tomou a taca de cicuta como o haviam democraticamente decidido que ele deveria fazer.
Sócrates falava a respeito de seu daimon e sabemos que era para o povo ateniense uma espécie de espírito-conselheiro que guiaria a alma de cada pessoa depois, no labirinto de cavernas sombrias do mundo dos mortos.
Platão, ao longo da vida, foi se afastando de seu mestre e passou a desenvolver a sua própria filosofia, em uma obra de maturidade mas, reaproveitou a imagem popular deixada por Sócrates, do mundo dos mortos como sendo um mundo de cavernas cheias de sombras que seriam as nossas alas. E, o texto em que fez isso, se tornou a passagem mais famosa de toda sua filosofia e ficou conhecida como a alegoria da caverna.
Situa-se a alegoria da caverna no sétimo capítulo da obra “A República” que foi escrito na forma de diálogo como quase todas demais obras de Platão, um longo diálogo que ele imaginou com seu mestre Sócrates e outros personagens, especialmente, Glauco.
In litteris: Sócrates — Imaginemos que existam pessoas morando numa caverna. Pela entrada dessa caverna entra a luz vinda de uma fogueira situada sobre uma pequena elevação que existe na frente dela. Os seus habitantes estão lá dentro desde a infância, algemados por correntes nas pernas e no pescoço, de modo que não conseguem mover-se nem olhar para trás, e só podem ver o que ocorre à sua frente. Entre aquela fogueira e a entrada da caverna existe um caminho, ao longo do qual se ergue um pequeno muro, semelhante aos tapumes que os apresentadores de fantoches usam para exibir seus bonecos ao público.
Glauco — Estou vendo.
Sócrates — Imagine também que pelo caminho ao longo do muro passam pessoas transportando sobre a cabeça todos os tipos de objetos: estatuetas de figuras humanas e de animais, feitas de pedra, de madeira ou qualquer outro material.
Como é natural, essas pessoas passam conversando ao longo do muro.
Glauco — Acho isso muito esquisito, assim como os prisioneiros que você inventou.
Sócrates — Pois eles se parecem conosco. Mas continuemos com a nossa comparação. Naquela situação, você acha que os habitantes da caverna, a respeito de si mesmos e dos outros, consigam ver outra coisa além das sombras que o fogo projeta na parede ao fundo da caverna?
Glauco — Com a cabeça imobilizada por toda a vida, só podem ver as sombras!
Sócrates — E também com relação aos objetos transportados que ultrapassam a altura
do muro?
Glauco — Exatamente a mesma coisa!
Sócrates — Se eles pudessem conversar entre si, não lhe parece que pensariam nomear de objetos reais as sombras que vissem?
Glauco — Certamente.
Sócrates — Além disso, se a caverna tivesse um eco, quando alguém falasse lá fora os prisioneiros pensariam que os sons fossem emitidos pelas sombras projetadas.
Glauco — Não resta a menor dúvida.
Sócrates — Portanto, os habitantes daquele lugar só poderiam pensar que a realidade
seria as sombras dos objetos.
Glauco — É claro!
Sócrates — Imagine agora o que aconteceria se os habitantes fossem libertados das cadeias e curados da ignorância em que viviam. Se libertassem um dos prisioneiros e o forçassem a se levantar de repente, a olhar para trás, caminhar dentro da caverna e olhar para a luz, ao fazer isso ele sofreria e, ofuscado, não conseguiria ver os objetos dos quais só tinha visto as sombras. Que pensa você que ele diria se alguém afirmasse que tudo o que ele tinha visto até então não passava de sombra e que a partir de agora ele estaria mais perto da realidade e poderia ver os objetos mais reais?
Não ficaria confuso se lhe mostrassem algum dos objetos transportados ao longo do muro e o obrigassem a dizer o que era? Você não acha que ele pensaria serem mais reais as sombras de antes do que os objetos de agora?
Glauco — Acho que sim.
Sócrates — E se o forçassem a encarar a própria luz? Você não acha que seus olhos doeriam e que, virando de costas, voltaria para junto das coisas que podia ver, e continuaria pensando que elas eram mais reais do que os objetos que lhe mostravam?
Glauco — Exatamente.
Sócrates — E se o arrastassem para fora da caverna, forçando-o a escalar a subida íngreme, e não o soltassem antes de alcançar a luz do Sol, não seria normal que ele ficasse aflito e irritado por ser arrastado daquele modo, e, chegando à luz do Sol, com os olhos ofuscados, nem conseguisse distinguir as coisas que lhe diriam ser verdadeiras?
Glauco — É certo que não conseguiria. pelo menos de súbito.
Sócrates — Precisaria habituar-se se quisesse ver as coisas que existem na região superior. No início veria melhor as sombras, em seguida, veria as imagens dos homens e dos objetos refletidas na água, e, por último, conseguiria ver os próprios objetos.
Depois disso, poderia contemplar o que há no céu e o próprio céu, durante a noite, olhando para a luz das estrelas e da Lua, com muito mais facilidade do que se olhasse o Sol à luz do dia.
Glauco — Não poderia ser diferente.
Sócrates — Penso que, finalmente, ele poderia olhar diretamente para o Sol e contemplar, não mais a sua imagem refletida na água ou em outra superfície, mas o
próprio astro lá no céu, tal como ele é.
Glauco — Também penso assim.
Sócrates — A partir daí, ele compreenderia que é o Sol que produz as estações e os anos e que governa todas as coisas no mundo visível, e que, de certo modo, é a causa de tudo o que ele tinha visto na caverna.
Glauco — Certamente chegaria a essas conclusões.
Sócrates — Você não acha que, quando ele se lembrasse da antiga habitação, dos conhecimentos que lá possuíra e dos antigos companheiros de prisão, ele se alegraria com a mudança e lamentaria a situação dos outros?
Glauco — Decerto que sim.
Sócrates — Suponhamos que os prisioneiros concedessem honras e elogios entre si, e atribuíssem prêmios a quem fosse mais rápido em distinguir os objetos que passavam, se lembrasse melhor da sequencia em que eles costumavam aparecer e fosse mais hábil em predizer o que aconteceria. Você acha que o prisioneiro libertado sentiria saudades dessas distinções e teria inveja dos prisioneiros mais honrados e poderosos? Não lhe parece que ele preferiria estar a serviço de um pobre lavrador ou padecer tudo no mundo do que voltar às ilusões de antes e viver daquele modo?
Glauco — Suponho que ele preferiria sofrer qualquer coisa a viver daquela maneira.
Sócrates — Imagine ainda que o homem liberto descesse à caverna e voltasse ao seu antigo lugar: não ficaria temporariamente cego em meio às trevas ao voltar subi tá mente da luz do Sol?
Glauco — Com certeza.
Sócrates — E se, estando ainda ofuscado, tivesse de julgar aquelas sombras em competição, por acaso não provocaria risos nos prisioneiros que tivessem permanecido na caverna? Não diriam que a subida para o mundo superior lhe prejudicara a vista e que, portanto, não valia a pena tentar subir para lá? Você não acha que, se pudessem, os prisioneiros até matariam quem tentasse libertá-los e
conduzi-los para cima?
Glauco — Certamente fariam isso.
Sócrates — Toda esta história. caro Glauco, aplicada ao que dissemos anteriormente, é uma comparação entre o que é visível aos olhos e o que se vê na caverna; entre a luz da fogueira que ilumina o interior da caverna e a força do Sol. É também uma comparação entre a subida ao mundo superior e a visão do que lá existe, e o caminho da alma em sua ascensão ao mundo inteligível. Se você fizer esta comparação, certamente saberá o que pretendi dizer com ela, ainda que só Deus saiba se tudo isso é verdade. Em todo caso, o sentido da comparação é o seguinte: no mundo das realidades que podemos conhecer, a ideia do bem é a que se vê por último e a muito custo. Mas, uma vez avistada, compreende-se que ela é a causa de tudo o que há de justo e de belo. Compreende-se que no mundo visível ela é geradora da luz do senhor da luz, e no mundo inteligível ela dá origem à verdade e à inteligência. Além disso, compreende-se que é preciso vê-Ia para agir com sabedoria, tanto na vida particular quanto na tida pública.
Glauco — Concordo plenamente com você. pelo menos na medida em que consegui entender a sua comparação.
No meio da história, uma crítica indireta aos sofistas e ao mundo da democracia grega, do modo como era cultivada e levada adiante por Péricles, que seguia bem de perto o modo de pensar dos filósofos sofistas (deixei a passagem assinalada em negrito na citação). O pensamento, neste mundo dominado pela democracia e pelos sofistas, era supervalorizado, mas sem que as pessoas se preocupassem com uma verdade superior, porque tudo era apenas uma questão de opinião… e isso, segundo Platão, dificultava a busca e a descoberta da verdade pelas pessoas.
É que o verdadeiro sábio (e curiosamente, a palavra que usavam na época para sábio era a palavra “sofista”, que Platão foi o primeiro a usar em tom pejorativo, como se os “sofistas” fossem falsos sábios!), o sábio realmente digno desse nome, não é aquele que se interessa pelos prêmios e honrarias que pode ganhar com a sua forte argumentação e suas belas ideias, mas aquele que é capaz de sair da caverna e contemplar a verdade lá fora.
E o filósofo, acima do verdadeiro sábio, é aquele que não se contenta com isso e desce de volta para a caverna para tentar “despertar” os demais para essa realidade superior fora do mundo cavernoso das sombras, tentando convencê-los a saírem para a luz.
Podemos perceber que, para Platão, o mundo das cavernas onde estamos todos perdidos, o mundo das sombras, o mundo dos mortos, é este aqui em que estamos vivendo no nosso dia a dia e que é tão bem descrito na filosofia de Heráclito. Só que Heráclito não percebia que a verdade estava lá fora. Parmênides percebeu. Sócrates, depois de Parmênides, também percebeu, mas nunca conseguiu levar as pessoas até lá.
Para Platão, estamos vivendo todos como se estivéssemos mortos, e não conhecemos a verdadeira vida, não conhecemos o que é sermos verdadeiramente nós mesmos, e o que é sermos verdadeiramente humanos. Vivemos a vida superficialmente, e em contato com o mundo de maneira também superficial, porque ó ficamos nas aparências das coisas, ou seja, na “superfície” delas. Vivemos como se fôssemos uma sombra de nós mesmos, e num mundo de coisas das quais também só enxergamos as sombras, e não as suas essências mais profundas e verdadeiras.
Platão era como se fosse uma espécie de “filho” filosófico de Parmênides, e que ele cometeu um “parricídio” (assassinato do próprio pai), em sentido figurado, é claro — na verdade ele nem chegou a conhecer Parmênides pessoalmente. Dizemos que ele “matou” Parmênides no sentido de que “matou” a ideia parmenidiana de que a única coisa que vale e que tem alguma verdade é uma grande verdade que é uma só, perfeita, eterna e imutável, e que é superior a tudo isso que estamos vivendo no dia a dia.
Platão “matou” essa ideia porque trouxe a ideia de que as coisas podem ser mais verdadeiras (se estiverem mais próximas da sua essência mais profunda) ou menos verdadeiras. E ao fazer isso, introduziu também a noção de que as coisas neste mundo se movem em direção à verdade, aproximando-se cada vez mais de suas essências e do que existe de comum entre elas, ou na direção contrária, afastando-se cada vez mais de suas essências e se tornando cada vez mais diferenciadas umas das outras.
Platão considerava muito bom que as coisas se aproximassem de suas essências, e muito ruim que se afastassem delas, e de qualquer modo, com isso assumia que as coisas estão em movimento, seja em uma boa direção, seja em uma direção ruim, e com isso, se aproximava pelo menos um pouquinho de Heráclito, embora continuasse muito mais próximo de Parmênides. Platão se aproximou muito mais de Parmênides e menos de Heráclito do que Sócrates. Se Sócrates se dizia democrata, Platão era assumidamente contrário à democracia.
Era um aristocrata, palavra que vem de aristoi (os melhores) e kratos (poder), e que significa o poder nas mãos dos melhores, e não de todo o povo. Normalmente, os aristocratas são gente da nobreza, herdeiros de riquezas que estão em suas famílias há
séculos (em geral, são famílias de donos de terras).
Essa gente, em todas as épocas, costuma considerar-se “melhor” e por isso com direito de governar os outros. E na época de Platão havia uma aristocracia desse tipo que não estava nada contente com o regime democrático. Mas engana-se quem pensa que Platão defendia os interesses desse grupo: a aristocracia que ele imaginava era bem diferente.
Em primeiro lugar, os aristoi (os “melhores”), para Platão, não eram os herdeiros de terras, que nasciam com “sangue azul”, como se costuma dizer. Os aristoi eram aqueles que, ao longo da vida, aprendessem a reconhecer o Bem, a Verdade, a Beleza, e afastar o Mal, o Falso, o Feio, e que fossem capazes de ensinar isto aos outros, ajudando-os a reconhecerem também o Bem. Mas se Sócrates mantinha essas três noções como se fossem três faces de uma coisa só, Platão concorda com ele, mas considera o Bem como a face mais importante.
Na alegoria da caverna, quem era capaz de reconhecer o Bem (o mundo da luz fora da caverna) e de voltar para tentar ensinar o caminho aos outros, era o filósofo. Para Platão, os aristoi são aqueles que se tornam filósofos, e eles é que devem governar, porque saberão governar de acordo com o Bem, e não de acordo com interesses privados de quem quer que seja.
No livro “A República”, Platão procura descrever o que seria uma república ideal, o que seria uma república dirigida para o Bem. Em sua República ideal, ele sugere que deveríamos selecionar entre as crianças aquelas que tivessem mais propensão para a
Filosofia, e educá-las neste sentido a vida toda para serem os futuros governantes da cidade.
Já adultas, essas pessoas governariam todas em conjunto. E há uma coisa curiosa a respeito da formação que Platão propõe para essas pessoas: elas deveriam ser acostumadas desde pequenas a uma vida simples, em que nada lhes faltasse, mas ao mesmo tempo não haveria para elas nenhum luxo.
Nenhuma dessas pessoas do governo poderia “ter” alguma coisa, e menos ainda “ter mais” do que as outras. Teriam não só o mesmo poder, mas as mesmas coisas. Entre eles, não haveria propriedade privada: todos seriam donos de tudo. Curiosamente, essa aristocracia que Platão descreve é a primeira imagem mais organizada que surgiu por escrito do que poderia ser uma sociedade comunista. Mas na República de Platão, só os governantes-filósofos vivem nesse regime comunista, e todos os outros vivem suas vidas normalmente.
A cidade está construída como se fosse a imagem de uma alma bem organizada. Para Platão, uma alma bem organizada deveria ser dirigida pela razão, e os governantes de sua cidade ideal representam precisamente a razão, por isso precisam necessariamente ser filósofos. Outra coisa curiosa na República ideal de Platão é que, para ele, os artistas não deveriam existir nessa cidade.
Para Platão, vivemos num mundo de ilusões, porque tudo o que existe neste mundo (inclusive nós mesmos) é imperfeito, incompleto, e nos enganamos tratando tudo isso como se fossem coisas perfeitas e completas. É fácil perceber que as coisas são imperfeitas, porque neste mundo tudo está em constante transformação (como dizia
Heráclito), mas se algo fosse perfeito, por que mudaria?
Podemos perceber, então, que existem graus de imperfeição, e que as coisas podem ser menos imperfeitas ou mais imperfeitas, mas só a forma pura da coisa é perfeita (e a forma pura, ou ideia de uma coisa é e uma forma sem a matéria, porque a matéria sofre os efeitos do tempo, se desgasta, muda, não dura para sempre... então não é perfeita).
Tudo o que existe, para Platão, é uma imitação de alguma outra coisa, e no fundo, todas as coisas acabam sendo imitações dessas formas puras ou ideias, e por isso é que as coisas são imperfeitas: uma imitação nunca pode ser tão boa quanto o modelo que ela imita, ou não seria “imitação”. Se não imitar o modelo, é uma má imitação (muito imperfeita), ou então está imitando algum outro modelo, alguma outra ideia pura, e não esta que parecia estar imitando. — Mas as coisas não poderiam ser imitações de várias ideias diferentes ao mesmo tempo?
Podem, e isto acontece o tempo todo: mas é justamente por isso que as coisas são imperfeitas. Não se pode imitar perfeitamente e ao mesmo tempo duas coisas que são diferentes. Por que não? Porque ela só pode imitar as duas coisas ao mesmo tempo naquilo em que elas tiverem de igual entre elas, mas se as duas coisas que servem de modelo a ser imitado são diferentes, então, quando a imitação for imitar essas diferenças vai ter que se dirigir ou para um lado ou para o outro, porque se imitar as características de uma que não estão na outra, não vai estar imitando bem essa outra, e vice-versa.
Se realmente imita o seu modelo, a imitação pode imitá-lo pior ou melhor, mas quanto melhor ela imitar o modelo, mais parecida com ele ela será. O raciocínio de Platão é bastante claro quanto a isto: se a imitação for absolutamente perfeita, então ela já não será mais uma imitação — terá se transformado na própria coisa que estava imitando.
Por isso, a partir de um certo ponto fica impossível uma imitação qualquer (uma coisa qualquer deste mundo) se aperfeiçoar mais, se ela não imitar exclusivamente uma coisa, porque para se aproximar da perfeição é preciso começar a tornar-se essa coisa imitada (esse “modelo”) e começar a deixar de ser uma mera imitação. E não é possível a imitação se tornar o que o modelo é e ao mesmo tempo o que o modelo não é (ou seja, outro modelo).
Cada ideia é uma só, é pura, perfeita, e não se mistura com outras. Por isso é que são ideias puras, e perfeitamente ideais. É por isso, também, que Platão procura descrever o que seria uma República ideal. É um sonho, uma utopia irrealizável e ele sabe disso. Mas não importa: essa utopia mostra uma direção para onde podemos caminhar, e quanto mais caminharmos nessa direção, que é a direção da perfeição, mais estaremos nos aperfeiçoando.
Segundo Platão, é por isso que Sócrates estava certo quando dizia que o mal está
na ignorância: se não conseguirmos descobrir (aprender, usando nossa inteligência) qual é a ideia essencial, pura e perfeita de cada coisa, sem confundi-la com outras ideias, não conseguiremos fazer essas coisas imitá-la melhor, e portanto, não conseguiremos nos aperfeiçoar essa coisa que continuará sendo uma má imitação, e talvez cada vez pior, porque a empurraremos no sentido de imitar a coisa errada, ou uma confusão de coisas.
E o mesmo vale para nós mesmos: é preciso que cada um procure descobrir qual é a sua própria essência e não se afastar dela, e também descobrir como é a essência comum a todos que está por detrás das essências de cada um, que é a essência (ou ideia pura) de “ser humano”, a humanidade— por isso os jovens governantes-filósofos da República ideal precisariam ter uma vida sem luxos: para se acostumarem ao que é essencial em cada coisa com que têm contato no mundo, e terem mais facilidade para buscar o essencial também em si mesmos, enquanto pessoas e, num nível mais profundo, enquanto seres humanos.
Se as coisas materiais são imitações imperfeitas de ideias puras, as obras de arte são imitações imperfeitas dessas imitações. Para a arte, as coisas materiais é que são o modelo a ser imitado. O problema é que os artistas não apenas imitam ainda mais imperfeitamente as coisas que já são imperfeitas, como fazem isso de uma maneira bonita, sedutora, atraente — e o resultado é que as pessoas tendem a valorizar essas imitações das coisas mais do que as próprias coisas!
Uma belíssima pintura de cadeira é mais sedutora e atraente do que uma simples cadeira, e no entanto, ela não passa de uma imagem de cadeira, e portanto, muito imperfeita (por exemplo: não serve para nos sentarmos). O problema com a arte, em resumo, é que ela deseduca as almas, faz as pessoas se sentirem atraídas pelo que é mais imperfeito, e por isso piora as pessoas!
Mas toda obra de arte é necessariamente assim? Toda obra de arte nos desvia da verdade? — segundo Platão, não. É perfeitamente possível imaginar uma exceção: quando a obra de arte é educativa e procura despertar a pessoa para a busca de um bem superior, ela é perfeitamente válida, mas só neste caso.
Uma obra de arte, então, pode ser realizada de uma tal maneira que acabe nos provocando e nos estimulando a avançar ainda mais em direção à perfeição? — Segundo Platão, sim. E neste caso, naturalmente, ela não seria excluída da república ideal. E Platão chega a explicar como seria essa obra de arte “educativa”? Não.
Mas ele faz mais do que isso: ele nos dá um exemplo prático realizando ele próprio uma pequena obra de arte educativa, uma historinha de ficção... aquela mesma alegoria da caverna que vimos acima, e que é uma bela imagem para descrever uma ideia e torná-la mais atraente: a própria ideia de que devemos buscar o caminho da perfeição, mesmo que ele seja bastante difícil, e de que os filósofos são pessoas que procuram nos ajudar nisto, e nunca desistem de tentar nos ajudar, mesmo quando os ridicularizamos e agredimos (é o que acontece na alegoria da caverna quando o filósofo tenta convencer as pessoas a se libertarem da caverna: riem dele e o chamam de louco). Continuam sempre tentando nos ajudar porque já estão em um plano superior a essas agressões e ridicularizações.
O caminho do nosso aperfeiçoamento em direção à ideia pura de ser humano é aquele caminho de saída da caverna para o mundo da luz. Quando nos aperfeiçoamos, quando nos iluminamos chegando ao mundo das ideias puras fora da caverna começamos a iluminar (aperfeiçoar) tudo mais ao nosso redor, porque saindo da caverna das ilusões materiais, aprendemos como enxergar não só a nossa própria essência, mas também as essências (ou ideias puras) de cada coisa que existe, e assim podemos melhorar as coisas aperfeiçoando-as na direção de suas ideias puras, ou seja, melhorando cada coisa para que ela chegue mais perto do seu ideal, e esse ideal começa a aparecer cada vez mais e melhor, cada vez mais nitidamente nas coisas que vão sendo aperfeiçoadas por nós e que, por isso, vão se confundindo cada vez menos com outras coisas.
O que Platão quer é que as coisas sejam mais bem aquilo que elas são, que algo seja bem aquilo que pretende ser (aquilo que imita). E com relação a todas as coisas que são feitas pelos homens em vista de alguma utilidade (e que por isso se tornam o que os economistas chamam de “bens”), ser melhor aquilo que pretende ser significa cumprir melhor com a sua função, tornando-se mais útil.
A teoria da imitação — segundo a qual tudo neste mundo são imitações que funcionam do modo como descrevemos neste item da apostila — e a teoria da ideia, segundo a qual para cada coisa há uma ideia pura distinta de todas as outras (ou seja, não-confundida com nenhuma outra), se complementam, uma vez que o que uma imitação procura imitar é a ideia pura de algo, e é na direção desse ideal que a imitação pode se aperfeiçoar (e afastando-se dele que ela pode decair e piorar).
Se a ideia, ou o ideal de cada coisa não pode ser efetivamente realizado no mundo material (porque a ideia não tem as imperfeições da matéria), não significa que não possamos conhecer as ideias Podemos conhecê-las porque uma parte de nós também é ideia pura: a nossa essência, no fundo de nossa alma, pode captar as ideias puras. Mas aquando tentamos expressá-las, acabamos distorcendo aquilo que captamos, porque para exprimir uma ideia precisamos utilizar algo que não é uma ideia: por exemplo palavras.
Uma descrição por escrito de uma ideia já distorce essa ideia, porque essa descrição é
apenas uma forma de imitar a ideia, e então, o que estamos passando para a outra pessoa quando tentamos comunicar a ideia que captamos é, mais uma vez, uma mera imitação dessa ideia. Para captá-la realmente, assim como nós a captamos, é preciso que a pessoa chegue até ela por si mesma, usando sua própria cabeça (como Sócrates queria).
Segundo a teoria da ideia de Platão, nós não estamos criando a ideia pura de uma coisa dentro da nossa mente, quando pensamos nela: estamos captando, percebendo aquilo que está por detrás do possível aperfeiçoamento da coisa, estamos captando o que seria o ideal mais puro e perfeito daquela coisa.
E por isso é que Platão usou o termo “idea” ou “eidos”, que hoje traduzimos como “ideia”: “eidos” ou “idea”, em grego antigo, queria dizer “imagem”. O que Platão queria dizer era que as ideias “puras” de como as coisas seriam em seu estado “ideal” não é algo que nós construímos com o nosso pensamento (por isso é algo diferente
daqueles “conceitos universais” que Sócrates levava as pessoas a “construírem”, usando o raciocínio e as palavras). É algo que nós “captamos”, mais ou menos como se capta uma imagem.
As ideias puras das coisas, segundo Platão, são algo real, que já existe independentemente de nós, e que nós apenas podemos “captar” com os olhos da alma, por assim dizer, passivamente, assim, como captamos passivamente as imagens do mundo físico à nossa volta usando os olhos da cara.
Platão faz mesmo exatamente essa comparação: para vermos objetos sensíveis do mundo material, precisamos de alguma luz que os ilumine, e na presença da luz, nós os captamos passivamente, porque já estão lá, não foram criados por nós.
Há um pouco de “Bem” em tudo o que existe, e através desses pouquinhos de “bem” que podemos captar nas coisas, avançando com o nosso pensamento e usando partes cada vez mais aperfeiçoadas e superiores dele (partes do nosso pensamento cada vez mais próximas da nossa própria essência, que nos distingue de outros animais, que é a de sermos seres racionais), podemos finalmente chegar até a ideia pura de Bem, sem mistura ou confusão com nenhuma outra ideia.
Para Platão, para nos aproximarmos da ideia suprema de Bem, que só existe “em estado puro” fora deste mundo cavernoso e ilusório em que vivemos, precisamos em primeiro lugar parar de nos apoiar na imaginação e passa a efetivamente observar as coisas e opinar a respeito delas. Para ultrapassarmos também a observação e a opinião rumo a um nível superior, precisamos então parar de nos apoiar na observação e nas opiniões, e passar a raciocinar a respeito das coisas, de maneira tão lógica quanto possível, e se possível, matematicamente.
Neste nível já seremos capazes de encontrar muitas “formas puras”, ou “ideias” essenciais das coisas. Platão está falando, neste nível, das formas geométricas das coisas. Imaginemos a forma geométrica de uma cadeira... mas Platão não está falando de uma cadeira em particular, e sim de toda e qualquer cadeira.
Mas se a cadeira muda, a forma geométrica muda, não é? — Não. Esta é uma passagem bastante difícil de se compreender, por isso é preciso muita atenção. (Não é algo que vá cair em prova ou coisa assim, porque é de um nível de detalhamento muito alto quanto à teoria da ideia em Platão, mas é algo que não faria nenhum mal o aluno fazer um esforço para tentar compreender.).
Se fôssemos detalhar ainda mais o assunto, teríamos de esclarecer que para Platão existe toda uma hierarquia de diferentes tipos de ideias. Mas o mais importante é termos a clara noção de que, para ele, existia uma ideia que era superior a todas as outras, que uma vez acessada ajudava (como um Sol) a iluminar a nossa compreensão de todas as outras, que era direta ou indiretamente imitada por todas as outras e que não imitava nenhuma, e que de algum modo participava, em algum grau, de todas as coisas que existiam em todos os níveis de realidade, e que podia ser captada por qualquer pessoa que fizesse todo esse caminho de ascensão, mas que não podia ser jamais completamente exprimida, porque qualquer coisa usada para exprimi-la seria uma imitação incompleta: estamos falando da ideia do que é o Bem — que é a base de todo pensamento ético.
Referências
BORBA, João Prof. Sócrates e Platão. Projeto Quem. 1ª edição.
PLATÃO. O julgamento e a morte de Sócrates (Eutífron, Apologia, Críton e Fédon).O Banquete, A República. (Box Platão). Prefácio de Alberto Pucheu. São Paulo: Editora Nova Fronteira, 2021.
____________. Diálogos III – Fedro (ou Do Belo), Eutífron (ou Da Religiosidade), Apologia de Sócrates. Críton (ou Do Dever), Fédon (ou Da Alma). Tradutor Edson Bini. São Paulo: Edipro, 2019.
_____________. Diálogos II Górgias (ou Da Retórica), Eutidemo (ou da Disputa), Hípias maior (ou Do Belo) e Hípias menor (ou Do Falso). Tradutor Edson Bini. São Paulo: Edipro, 2016.
_____________. Diálogos I. Teeteto (ou Do Conhecimento), Sofista (ou Do Ser), Protágoras (ou Sofistas). Tradutor Edson Bini. São Paulo: Edipro, 2017.
_____________. Diálogos VII. Suspeitos e Apócrifos. Tradutor Edson Bini. São Paulo: Edipro, 2017.