Reforma do Código Civil de 2002 - Comparação jurídica das disposições frente às propostas reformadoras

INTRODUÇÃO:

Tem sido objeto de discussão no âmbito legislativo nos últimos meses a proposta de alteração de determinados artigos do atual Código Civil. Foi instaurada uma comissão de juristas por parte do presidente do Senado, cujo trabalho está sob a coordenação do ministro do STJ, Luis Felipe Salomão.

As mudanças propostas têm em vista o aprimoramento para a inclusão de novas disposições que mostraram-se necessárias ante as demandas de uma sociedade que muito se transforma no âmbito civil, e de forma célere, diante de novas concepções sobre direito de família e da superveniência do impacto das inteligências artificiais, entre outros temas.

É discutível ainda se a proposta de revisão do código se refere de fato a uma reforma no sentido amplo do termo ou se seria uma atualização dos dispositivos para sua melhor compatibilização aos tempos contemporâneos, visto que a estrutura principiológica do código civil estaria mantida, embora novos valores tenham suscitado uma extensa mudança normativa que atinge o cerne de muitos artigos até então tidos como nucleares.

A seguir, será analisada a redação do código como atualmente está disposto e sua respectiva proposta de mudança, além da discussão doutrinária e jurisprudencial que tais inovações implicam no âmbito do direito das obrigações:

APRECIAÇÃO NORMATIVA E CONTEXTUALIZADA DA PROPOSTA REFORMADORA:

• Art. 2°

Redação atual: A personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro.

Reforma: A personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro e dos embriões criopreservados.

Discussão: A inclusão dos embriões criopreservados enquanto titulares de direitos indica o progressivo entendimento de que a redefinição de vida passa a ser articulada no âmbito do direito civil tendo em vista os avanços científicos que permitem novos modos de concepção, os quais passam pela reforma como proposta de tutela dos novos métodos.

Essa inclusão foi proposta na emenda n° 20 de 2023-CJCODCIVIL pela jurista Maria Berenice Dias, cujas ideias são bastante pautadas na tutela dos afetos e na revisão bastante contundente acerca das novas propostas para temas concernentes ao direito de família.

Importa pensar neste artigo, vez que o conceito de vida passa por transformações, as quais devem ser devidamente reguladas pelo Código. A proposta subverte a tradicional teoria natalista, que considera que a personalidade jurídica é adquirida somente a partir do nascimento com vida, postulando que o nascituro não é detentor de personalidade jurídica, isto é, não é sujeito de direito. Por sua vez, a teoria condicionalista possui bases natalistas e remete a uma personalidade condicional ou virtual, posto que para essa corrente, a personalidade jurídica estaria condicionada ao nascimento, sendo portanto, bastante controvertida ao se restringir à mera expectativa de direito. Já para a teoria concepcionista, a aquisição da personalidade se dá no momento da concepção, mais especificamente da nidação (implantação do embrião no útero materno), possuindo não apenas direitos patrimoniais, mas sendo igualmente encarado como sujeito de direitos de personalidade.

Pode se dizer então que a inclusão proposta por Maria Berenice avança ainda mais na esfera das teorias supracitadas, pois tem em vista que antes mesmo da concepção, já se poderia conceber que embriões preservados por criogenia, ou seja, material genético passível de armazenamento em baixas temperaturas para fecundação futura, seja considerado desde já, titular de direitos de cunho personalíssimo.

Tem-se o entendimento de que os embriões excedentários, que são aqueles que sobram em fecundação in vitro. O Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo assim os define: “aqueles produzidos pela fertilização in vitro e não utilizados no respectivo procedimento”. Vale ressaltar que o embrião intrauterino tem proteção resguardada, mas ainda não há um entendimento consolidado acerca dos embriões fora do corpo da mulher, de modo que prevalece a seguinte acepção nos tribunais:

O embrião resultante da fertilização in vitro, conservado em laboratório:

a) não é uma pessoa, haja vista não ter nascido;

b) não é tampouco um nascituro, em razão de não haver sido transferido para o útero materno.

As normas e categorias tradicionais do direito civil não se aplicam à fecundação extracorporal”.

(BARROSO, Luis Roberto. “Gestação de fetos anencefálicos e pesquisas com células-tronco: dois temas acerca da vida e da dignidade na Constituição”, p.690, Rio de Janeiro, Renovar, 2006).

A redação da relatoria-geral, no entanto, permanece a seguinte, com a pequena modificação que define não apenas o início da personalidade civil, mas também o seu término, de modo que não acolheu a proposta da ex-desembargadora Maria Berenice Dias. Resta o seguinte: “A personalidade civil do ser humano começa do nascimento com vida e termina com a morte encefálica; a lei põe a salvo, desde a concepção, para os fins deste Código, os direitos do nascituro”.

• Art. 189

Redação atual: Violado o direito, nasce para o titular a pretensão, a qual se extingue, pela prescrição, nos prazos a que aludem os arts. 205 e 206.

Reforma: Há duas propostas para votação

1) Proposta da jurista Rosa Maria Andrade Nery:

Violado o direito, nasce para o titular a pretensão que se extingue pela prescrição, nos prazos a que aludem os arts. 205 e 206.

§ 1.º A contagem do prazo prescricional inicia-se a partir do momento em que o titular do direito tem conhecimento ou deveria ter, do dano sofrido e de quem o causou.

§2.º Quando a pretensão nascer da violação a direito absoluto ou a obrigação de não fazer, a contagem do prazo prescricional inicia-se imediatamente a partir da data da ocorrência do ilícito.

2) Proposta do doutrinador Flávio Tartuce:

A pretensão se extingue pela prescrição, nos prazos a que aludem os arts. 205 e 206. §1ºO início do prazo prescricional ocorre com o surgimento da pretensão, que decorre da exigibilidade do direito subjetivo.

§2º Nos casos de responsabilidade civil extracontratual, a contagem do prazo prescricional tem início da ciência do dano e de sua autoria.

Discussão: A prescrição tem sido objeto de discussão na proposta de reforma, visto que a atual redação pressupõe que a contagem do prazo prescricional dá-se após a violação de um direito, o que já não é o mais adequado, tendo em vista que nem sempre a prescrição dependerá da lesão a um direito. Quanto a isso, tanto Rosa Nery quanto Tartuce concordam. A título de exemplo sobre a desnecessidade de violação a um direito: quando se está diante de uma prescrição em decorrência de aquisição.

Pode-se, nesse ínterim, fazer uma comparação com o direito processual em seus institutos, visto que nem sempre é necessário um prejuízo efetivo a um bem jurídico, por vezes, pode ser ajuizada uma ação meramente declaratória.

O mesmo se visualiza na proposta reformadora quanto a esse artigo, visto que revela a superação do entendimento de que é imprescindível a violação de um direito para que nasça a pretensão, e por conseguinte, sua extinção pela via da prescrição.

No âmbito do direito das obrigações, buscando-se uma analogia com a disciplina estudada, observa-se a presença incisiva do instituto da prescrição quando, diante do inadimplemento de uma obrigação, recorre-se ao Poder Judiciário para a devida providência. Cabe aqui diferenciar a prescrição, que é a perda da pretensão e da possibilidade de postular em juízo o cumprimento de uma prestação, da decadência, que é a própria perda do direito material pelo seu não exercício.

A teoria da actio nata é adotada pelo STJ no enunciado 278 e caminha harmonicamente no sentido da reforma. Vislumbrar o prazo prescricional à luz da teoria objetiva remete ao entendimento que a atual redação do código adota, sendo profícuo o debate acerca da prescrição enquanto objeto de análise na reforma, tendo em vista que ela se configura como importante instrumento de segurança e estabilidade jurídica.

Quanto às propostas de reforma, tem-se a dissidência no que tange às propostas para o §1.º acerca do início da contagem do prazo prescricional, por um lado com a defesa de que se inicia do momento do conhecimento do dano sofrido, o que é questionável, visto que nem sempre haverá um dano necessariamente.

Na contramão dessa proposta, entende o STF:

A PRESCRIÇÃO COMEÇA NO DIA EM QUE SE DÁ A VIOLAÇÃO DO DIREITO. TENDO-SE OBRIGADO A DAR AOS OPERÁRIOS TRABALHO CORRESPONDENTE A 6 DIAS POR SEMANA, A EMPRESA VIOLOU, COM A ALTERAÇÃO DO CONTRATO, A NORMA DO ART. 468 DA CONSOLIDAÇÃO DAS LEIS DO TRABALHO. (STF - RE 19918 - Rel. Min. Hahnemann Guimarães - 2ª T. - DJ 24-11-53 - grifei)

Pode-se observar então, que a proposta de F. Tartuce é mais compatível com a jurisprudência dominante, ao entender como marco inicial do prazo prescricional o surgimento da pretensão, sendo este o cerne principal da discussão, mas sem desconsiderar o que as propostas versam sobre o §2.º, incluído como propositura de pretensão decorrente de ato ilícito e de disposições sobre a responsabilidade extracontratual.

Diversos outros artigos que tratam da prescrição também têm passado por reformas. Cabe aqui mencionar o art. 198 acerca das situações em que não corre a prescrição, sendo este um artigo que se preocupa com a contagem do prazo em detrimento da incapacidade absoluta ou relativa, que é tema central no Código Civil, tal importância pode ser vista pelo olhar de outros juristas, como Pablo Stolze, que tem como ponto de partida para a concepção de incapacidade as disposições trazidas pela Convenção de Nova York, que tanto influenciou o Estatuto da Pessoa com Deficiência (Lei 13.146) no Brasil.

Há ainda propostas que pretendem a redução do prazo de 10 para 5 dias para ajuizamento de ação quanto a direito convencionado em contrato, o que se aprovado, deve causar um impacto prático significativo tanto para o sistema de justiça quanto para o jurisdicionado em um curto lapso temporal.

• Art. 263

Redação atual: Perde a qualidade de indivisível a obrigação que se resolver em perdas e danos.

§ 1 o Se, para efeito do disposto neste artigo, houver culpa de todos os devedores, responderão todos por partes iguais.

§ 2 o Se for de um só a culpa, ficarão exonerados os outros, respondendo só esse pelas perdas e danos.

Propostas de reforma:

1) Rosa Nery: Perde a qualidade de indivisível a obrigação que se resolver em perdas e danos.

§ 1º. Se, para efeito do disposto neste artigo, o fato for imputável a todos os devedores, responderão todos por partes iguais.

§ 2º. Se o fato não for imputável a todos, respondem os imputados pelo equivalente e por perdas e danos; os outros, apenas pelo equivalente.

2) Flávio Tartuce: Perde a qualidade de indivisível a obrigação que se resolver em perdas e danos.

§ 1º Se, para efeito do disposto neste artigo, houver culpa de todos os devedores, responderão todos por partes iguais.

§ 2º Se a culpa for de apenas um dos devedores, todos respondem pelo equivalente, mas só o culpado, pelas perdas e danos.

Discussão: O artigo 263 está situado no capítulo V do primeiro título do livro do direito das obrigações e versa sobre o ponto de mutação de uma obrigação indivisível que se torna divisível por se resolver pela via pecuniária das perdas e danos, ou seja, com a presença do elemento de culpa.

É válido ressaltar que o entendimento deste dispositivo é bastante dissidente na doutrina, visto que há a corrente de juristas como Tepedino e Flávio Tartuce que defende ser unicamente o culpado quem responde pela prestação equivalente e pela indenização por perdas e danos, enquanto que há uma segunda corrente que entende pela responsabilização de todos os devedores pelo equivalente mas não por perdas e danos, pela qual responde apenas àquele sobre o qual recai a culpa.

Tal divergência se reflete na proposta de reforma, sendo que o Enunciado 540 do Conselho da Justiça Federal (CJF) segue a linha da segunda corrente supramencionada, bem como a I Jornada de Direito Civil, dispondo que a maioria da doutrina (Álvaro Villaça Azevedo, Maria Helena Diniz, Sílvio de Salvo Venosa, Nelson Rosenvald e Cristiano Chaves de Farias) são adeptos desse entendimento. Tem-se, por outro lado, a versão de Flávio Tartuce, que é o relator-geral da comissão de reforma do Código Civil juntamente com a jurista Rosa Nery, e o manualista discorda sob o seguinte argumento: “Entendemos que a exoneração mencionada no parágrafo em análise (§2°) é total, eis que atinge tanto a obrigação em si quanto a indenização suplementar” (Direito Civil, 4ª ed. São Paulo: Método, v. 2, p. 115). Trata-se, portanto, de uma diferença de interpretação quanto ao §2°.

Observa-se que em sua versão sobre o artigo, Rosa Nery opta por substituir o vocábulo “culpa” por “imputação” o que também pode suscitar a discussão no âmbito da responsabilidade civil. Quanto a essa pontual modificação, observa-se que Rosa Nery igualmente propõe essa substituição em alguns artigos subsequentes, como o 279 e o 280, enquanto que Tartuce pugna pela mantença destes últimos, e em relação ao art. 263, o doutrinador mantém a noção de culpa já veiculada pela redação original, ainda que tenha a compreensão de exoneração completa dos não culpados.

A importância da reforma do referido artigo reside especialmente quanto à necessidade de readequação escrita do segundo parágrafo, visto ser necessário especificar a ideia de exoneração, como bem propuseram ambos os relatores, no sentido de tornar expresso que os devedores respondem ao equivalente ainda que não estejam munidos de culpa, não bastando a disposição atual sobre a exoneração, sendo imperioso aprofundá-la com o novo texto, especificando se ela ocorre em relação ao equivalente ou à indenização suplementar por perdas e danos, esta última incidindo sobre o devedor. Vale ressaltar, entretanto, a posição contramajoritária seguida por Tartuce, ao entender que a exoneração dos demais que não tivessem culpa, caberia não somente em relação às perdas e danos, mas também quanto ao equivalente.

Já as subcomissões entendem quanto ao §2° que se for de um só a culpa, ficarão exonerados os outros quanto às perdas e danos, respondendo todos pelo equivalente. Tal foi o entendimento adotado no relatório final na busca por sanar as presentes lacunas.

• Art. 317

Redação atual: Quando, por motivos imprevisíveis, sobrevier desproporção manifesta entre o valor da prestação devida e o do momento de sua execução, poderá o juiz corrigi-lo, a pedido da parte, de modo que assegure, quanto possível, o valor real da prestação.

Proposta de reforma:

Rosa Nery: Se, em decorrência de eventos imprevisíveis, houver alteração superveniente das circunstâncias objetivas que serviram de fundamento para a constituição da obrigação e que isto gere onerosidade excessiva, excedendo os riscos normais da obrigação, para qualquer das partes, poderá o juiz, a pedido do prejudicado, resolver o contrato ou corrigir a prestação, de modo que assegure, tanto quanto possível, o reequilíbrio do contrato e o valor real da prestação.

Parágrafo único. Para os fins deste artigo devem ser também considerados os eventos previsíveis mas de resultados imprevisíveis.

Flávio Tartuce: Se, em decorrência de eventos imprevisíveis, houver alteração superveniente das circunstâncias objetivas que serviram de fundamento para a constituição da obrigação e que isto gere onerosidade excessiva, excedendo os riscos normais da obrigação, para qualquer das partes, poderá o juiz, a pedido do prejudicado, corrigi-la, de modo que assegure, tanto quanto possível, o valor real da prestação.

Parágrafo único. Para os fins deste artigo devem ser também considerados os eventos previsíveis, mas de resultados imprevisíveis.

Discussão: Da análise das propostas, observa-se que ambas são bastante semelhantes, com o adendo de que o professor Tartuce indica como consequência apenas a correção da prestação, enquanto que Rosa Nery inclui a possibilidade de resolução do contrato, o que incorre em uma maior aproximação entre os arts. 317 e 478, o primeiro tratando da teoria da imprevisibilidade e o segundo, da teoria da onerosidade excessiva, com implicações recíprocas, restando cristalina que os artigos em questão se aproximaram com a proposta de reforma. Outrossim, ambos inserem em sua proposta o parágrafo único, que se demonstra uma novidade que complementa o caput do artigo.

Já da comparação das propostas com a própria redação atual do artigo, extrai-se o uso do termo “eventos imprevisíveis” em detrimento do termo em vigor “motivos supervenientes”, visto que ao usar o termo “motivos”, tem-se um entendimento prevalecente de intenção em detrimento de um fato que não seria previsto.

A quebra de contrato embasada na teoria imprevisibilidade, isto é, a resolução contratual por motivo fortuito ou de força maior, dialoga fortemente com a onerosidade excessiva, o que é tema de discussão no Webinar sobre a teoria da imprevisibilidade frente ao COVID-19, em que participaram os professores Noronha e Sílvio Venosa. Pode-se até mesmo pensar em situações semelhantes a partir de uma retrospectiva histórica, no que diz respeito às guerras mundiais, com a análise caso a caso. Portanto, quanto à quebra contratual, é questionável a necessidade de haver as duas condicionantes na hipótese, tanto a prevista no art. 317 quanto no art. 478, e a rescisão do contrato ao invés de sua possível revisão. Quanto ao desequilíbrio cambial em relação à desvalorização do real (R$) em decorrência da pandemia, o professor Noronha afirma que não se aplica a tese da teoria da imprevisibilidade, ainda que tal tese possa ser bastante controvertida entre juristas e economistas.

A teoria da imprevisibilidade aliada à possibilidade de revisão contratual é amplamente conceituada pela via jurisprudencial, da qual se colhe:

RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE OBRIGAÇÃO DE FAZER. PRORROGAÇÃO DO VENCIMENTO DE PARCELAS DE CONTRATO DE MÚTUO PARA FOMENTO DA ATIVIDADE EMPRESARIAL. SUSPENSÃO DAS ATIVIDADES DE TRANSPORTE INTERMUNICIPAL E COLETIVO DE PASSAGEIROS. MEDIDA DETERMINADA POR ENTES FEDERATIVOS PARA CONTER O AVANÇO DO CORONAVÍRUS. NEGATIVA DE PRESTAÇÃO JURISDICIONAL. AUSENTE. CONTRATO DE CAPITAL DE GIRO. INAPLICABILIDADE DO CDC. PRECEDENTES. CONTRATOS PARITÁRIOS. REGRA GERAL. PRINCÍPIO DO PACTA SUNT SERVANDA. POSSIBILIDADE DE REVISÃO. HIPÓTESES EXCEPCIONAIS. PREVISÃO DO ART. 317 DO CÓDIGO CIVIL. TEORIA DA IMPREVISÃO. ART. 478 DO CÓDIGO CIVIL. TEORIA DA ONEROSIDADE EXCESSIVA. PANDEMIA DA COVID-19 QUE CONFIGURA, EM TESE, EVENTO IMPREVISÍVEL E EXTRAORDINÁRIO APTO A POSSIBILITAR A REVISÃO DO CONTRATO, DESDE QUE PREENCHIDOS OS DEMAIS REQUISITOS LEGAIS. HIPÓTESE DOS AUTOS. (REsp n. 2.070.354/SP, relatora Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 20/6/2023, DJe de 26/6/2023.- grifei).

Nitidamente verifica-se que a alteração do artigo tem fundamento em fenômenos recentes, de modo que a sua reforma está estreitamente relacionada às demandas dos acontecimentos que não estavam de todo previstos pelo ser humano, como a pandemia, por exemplo. Por outro lado, o parágrafo único assume que não basta voltarmos-nos à imprevisibilidade do evento, mas também às inesperadas consequências, especialmente no direito das obrigações. Pode-se pensar, estabelecendo-se um vínculo com o direito ambiental, na hipótese das últimas enchentes que acometeram o Rio Grande Sul, que não eram de todo inimagináveis, tendo em vista os estudos meteorológicos e os desequilíbrios do antropoceno. No entanto, as drásticas consequências ocasionadas em razão da magnitude do evento não eram previsíveis.

• Art. 389

Redação atual: Não cumprida a obrigação, responde o devedor por perdas e danos, mais juros e atualização monetária, segundo índices oficiais regularmente estabelecidos, bem como por valores devidos à guisa de honorários de advogado.

Proposta de reforma: Acréscimo do Art. 389-A ao caput:

Salvo disposição diversa em convenção ou contrato, os honorários de advogado referidos no artigo anterior abrangem os contratualmente fixados entre as partes, tanto para as condenações proferidas nas ações judiciais, quanto para as que se derem em procedimentos arbitrais.

§ 1º. Nas ações judiciais, desde que haja efetiva prova do pagamento de honorários contratuais e desde que conste da inicial ou da contestação, pedido específico de reembolso, os honorários contratuais serão ressarcidos sob os seguintes critérios, a depender da natureza da ação:

I - nas sentenças condenatórias, até 20% do proveito econômico obtido com a procedência; se improcedente a pretensão, até 20% do valor que o autor buscava obter se tivesse vencido a demanda;

II - nas sentenças de outra natureza, a fixação se dará em favor de quem venceu a demanda, até o valor que corresponda a vinte vezes o mínimo fixado pela tabela de serviços instituída pela Ordem dos Advogados do Brasil.

Discussão: A inexecução inclui a mora e o inadimplemento absoluto, cabendo ao devedor reparar os danos resultantes de forma integral. É-lhe assegurada indenização por todo o prejuízo ocasionado pela não realização de prestação acordada.

Essa proposta, com o acréscimo de 389-A, introduz uma regulamentação detalhada sobre a ressarcibilidade dos honorários advocatícios contratualmente fixados entre as partes, de modo que a inclusão de disposições específicas sobre a recuperação desses honorários em ações judiciais e arbitrais pode gerar implicações significativas.

O artigo menciona os honorários fixados contratualmente, tanto em ações judiciais quanto em procedimentos arbitrais, sendo válido pontuar que os critérios de ressarcimento se baseiam na tabela de serviços instituída pela OAB, permitindo ressarcimento até o valor correspondente a vinte vezes o mínimo fixado.

A proposta inclui os procedimentos arbitrais no escopo dos honorários contratuais ressarcíveis, o que pode elevar os custos associados à arbitragem. Isso poderia desestimular algumas partes de optarem por um meio consensual devido ao potencial aumento dos custos de litígio. Pode-se notar que há mais vantagens, na medida em que propicia maior previsibilidade quanto aos honorários advocatícios e incentiva a formalização do vínculo advogado-jurisdicionado, além de seu potencial para reduzir discordâncias sobre honorários, vez que os critérios para o seu ressarcimento serão claramente definidos.

Porém, mesmo com as suas vantagens, advêm desafios que merecem atenção, tendo em vista a onerosidade excessiva que pode recair à parte que sucumbe. A comissão de reforma caminha no sentido de que os honorários devem participar da indenização a ser paga ao credor sem que isso afete os honorários sucumbenciais, que não são pagos ao advogado, mas sim à parte vitoriosa em sua demanda judicial.

É crucial, portanto, considerar meticulosamente os benefícios e desvantagens dessa mudança para garantir que ela atenda aos objetivos pretendidos sem gerar impactos adversos no sistema jurídico, sendo que a discussão e possível implementação devem abarcar as diversas perspectivas dos atores envolvidos no processo e que se fundamentam nos lídimos princípios de proporcionalidade e razoabilidade.

• Art. 391

Redação atual: Pelo inadimplemento das obrigações, respondem todos os bens do devedor, suscetíveis de penhora.

Proposta de reforma: acréscimo do Art. 391-A ao caput:

O patrimônio mínimo existencial da pessoa, da família e da empresa é absolutamente intangível por ato de excussão do credor.

§ 1º Considera-se patrimônio mínimo, guarnecido por bens impenhoráveis:

a) a casa de morada onde habitam o devedor e sua família, se única em seu patrimônio;

b) o módulo rural, único do patrimônio do devedor, onde vive e produz com a família;

c) a sede da pequena empresa, guarnecida pelos bens que a lei processual considera como impenhoráveis, se coincidir com o único local de morada do devedor ou de sua família;

d) o salário mínimo, a qualquer título recebido;

e) os valores que a pessoa recebe do Estado, para os fins de assistência social.

§ 2º Considera-se bem componente do patrimônio mínimo da pessoa deficiente ou incapaz, além dos mencionados nas alíneas do parágrafo anterior, também aqueles que viabilizarem sua acessibilidade e superação de barreiras para o exercício pleno de direitos, em posição de igualdade.

§ 3º A casa de morada de alto padrão pode vir a ser excutida pelo credor, até a metade de seu valor, remanescendo a impenhorabilidade sobre a outra metade, considerado o valor do preço de mercado do bem, a favor do devedor executado e de sua família.

Discussão: Não somente nas ciências jurídicas, mas igualmente nas ciências humanas deve-se ter cuidado ao utilizar termos absolutos. O art. 391 limita a possibilidade de compelir o devedor a satisfazer a obrigação somente até o limite de seu patrimônio, considerado integralmente. A redação atual é o exemplo claro de um erro semântico ao fazer uso da palavra “todos”, visto que há ressalvas a se considerar. A grande maioria dos dispositivos são dotados de diversas exceções, a lei 8.009/90, por exemplo, dispõe sobre a impenhorabilidade do bem de família, mas prevê exceções, como a transcrita no inciso III do art. 3º, em relação à possibilidade de penhora pelo credor de pensão alimentícia, resguardados os seus direitos.

Sendo assim, a proposta de reforma visa a abarcar algumas condicionantes necessárias à totalidade do patrimônio, protegendo-se o mínimo existencial necessário à manutenção da subsistência, com amparo no princípio norteador da dignidade da pessoa humana, conforme entendimento do professor Flávio Tartuce sobre o tema: “deve-se assegurar à pessoa um mínimo de direitos patrimoniais, para que viva com dignidade”.

Outro ponto a se destacar sobre o referido artigo além do absolutismo de que trata a expressão “todos os bens”, diz respeito à tentativa da reforma em especificar quais bens não seriam passíveis de penhora, de modo que a proposta do preocupa-se em elencá-los no § 1º.

No âmbito do direito das obrigações, é importante diferenciar penhor de penhora, de modo que o penhor é dado como forma de garantia, enquanto que a penhora é um instituto processual veiculado enfaticamente pelo CPC e se relaciona à apreensão de bens do devedor.

A jurisprudência dos tribunais é vasta quanto à aplicação da teoria do patrimônio mínimo, como se colaciona do entendimento transposto a seguir:

Para o bem de família instituído nos moldes da Lei n. 8.009/1990, a proteção conferida pelo instituto alcançará todas as obrigações do devedor, indistintamente, ainda que o imóvel tenha sido adquirido no curso de uma demanda executiva. (REsp 1.792.265-SP, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, por unanimidade, julgado em 14/12/2021).

Outra inovação proposta reforça a proteção patrimonial estendida quanto às pessoas com deficiência, pela via do § 2º, de modo que verifica-se um tratamento inclusivo não somente quanto à acessibilidade e à maior seriedade da Lei 13.146 e da Convenção de Nova York, mas também à necessária exceção quanto ao patrimônio. Além disso, o § 3º tem a pretensão de codificar um entendimento que já foi assunto de várias discussões jurisprudenciais no que tange à moradia de alto padrão, oferecendo uma definição que torna mais exata o que se considera na referida hipótese.

Observa-se, portanto, que a reforma impactará, sobretudo, os credores das obrigações, tendo em vista que os devedores poderão se valer das novas prerrogativas em relação ao patrimônio que não poderá constar como objeto de prestação sob pena de atingir bens prevalecentes que são constitucionalmente assegurados em detrimento dos recursos materiais.

CONCLUSÃO:

Ante o exposto, pode-se extrair que a proposta de reforma se presta ao objetivo de especificar, tornar claro e suprir determinadas lacunas contra as quais o direito civil vem lutando ao tentar acompanhar a rápida evolução civil da sociedade. É preciso, contudo, um olhar crítico às mudanças previstas e sua aplicação ao caso concreto diante da legislação já consolidada. É indubitável, portanto, a necessidade de reforma em alguns dos artigos, a inclusão de outros ou sua remoção das disposições legais, sendo um momento propício para novas interpretações.

Por fim, o desfecho da atual proposta reformadora não é um projeto fechado em si, visto que tais mudanças contribuem para o entendimento de que o conhecimento jurídico não é estanque e de que as teses e entendimentos jurisprudenciais mudam conforme as circunstâncias. O debate, que sob a regência da comissão de juristas do STJ culminou em um relatório final aprovando diversas atualizações, despertou importantes reflexões sobre o papel do direito das obrigações e do direito civil como um todo, com os pontos positivos e negativos da reforma a serem vislumbrados sob diferentes perspectivas jurídicas.

REFERÊNCIAS:

TARTUCE, Flávio. Manual de Direito Civil, volume único. São Paulo: Método.

CJF- Enunciados (Código Civil 2002 - Lei n. 10.406/2002 ART: 263 PAR:2) cjf.jus.br/enunciados. Acesso em: 08 de junho de 2024.

Link Webinar: https://www.youtube.com/watch?v=xfe6HjrK6g0. Acesso em: 06 de junho

STJ. Recurso especial nº 2.070.354-SP. Disponível em: https://www.stj.jus.br/. Acesso: 08/06

VENOSA, Sílvio de Salvo. Classificação das Obrigações. IN: Teoria Geral das Obrigações e Teoria Geral dos Contratos. 13ª edição. São Paulo: Atlas, 2013.

SCHREIBER, Anderson [et al.]. Código Civil Comentado: doutrina e jurisprudência 2ª ed. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2020

Disciplina: Direito Civil - Obrigações

Isadora Welzel, Trabalho em grupo realizado pelos estudantes do quarto semestre do curso de Direito da Universidade Federal de Santa Catarina e 1° semestre de 2024
Enviado por Isadora Welzel em 02/07/2024
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