Oportunas reflexões sobre o Direito - Congresso UFSC 2024
Diante das paralisações na Universidade Federal, parte de minhas esperanças renasceram nesta semana que passou, quando me deparei com um evento de alto nível organizado integralmente pelo centro acadêmico do curso de Direito, verdadeira expressão do movimento estudantil. Resistir apostando na educação é a forma mais sofisticada de mobilização discente, porque em um cenário de negação da ciência e de rechaço à educação formal pela baixa ideologia, a mais nobre revolução se faz nos espaços públicos que nos são tão caros.
Trouxemos ao ambiente universitário grandes nomes e intelectuais, ressalto especialmente as palestras de Fredie Didier Jr., grande nome da dogmática processual civilista, e de Lênio Streck, egresso da casa e um dos maiores expoentes da teoria jurídica crítica no Brasil. Tempos críticos exigem medidas críticas, e a universidade permanece aí para que não nos esqueçamos.
Entre tantos temas importantes discutidos, entre tantas ideias suscitadas pela provocação sócio-jurídica, adveio o debate sobre a prática frequente de diversas faculdades de direito Brasil afora em realizar visitas aos estabelecimentos prisionais. Não posso deixar de comentar a brilhante fala do professor do Largo de São Francisco, Maurício Stegemann Dieter em sua exposição sobre o ensino das ciências criminais após o Carandiru: entre a criminologia e o direito penal, a qual propôs uma aproximação efetiva entre a ciência penal e a ciência criminológica.
Compartilho com o professor a posição que se opõe a tal exercício, que consiste em mobilizar os estudantes de direito para o contato próximo com os estabelecimentos prisionais. O problema dessa prática reside na impressão de que essas visitas são permeadas pelo sentimento de que se está visitando um zoológico de gente humana, onde os corpos encarcerados mostram-se como um espetáculo de horrores em um país cuja tradição não é abolicionista e onde são gritantes as violações aos direitos fundamentais, as irregularidades ilegais e a indiferença quanto ao suprassumo da dignidade humana.
Mas há aqueles que defenderão a seguinte tese: “visitar a realidade da penitenciária brasileira cria sensibilidade e permite um olhar mais atento e preocupado sobre o assunto”. Certo que a visita pode sim mudar algumas percepções, desmistificar inverdades e propor uma perspectiva mais humana. Mas nos perguntemos: se for necessário visitar uma cadeia para compreender o próximo e sensibilizar-se com a sua dor, erramos como seres humanos, erramos como operadores do direito. Se para que possamos pensar com seriedade sobre o assunto precisamos sentir o “cheiro da prisão”, já nos falha a empatia, se for preciso olhar a concretude da inconstitucionalidade das condições com os próprios olhos, nos falta a capacidade de abstrair, inerente às ciências jurídicas.
Uma das soluções propostas pelo professor é a interdisciplinaridade da criminologia, enquanto base teórica para as próprias ciências penais, de cunho dogmático. E por que as ciências criminais são comumente as mais difíceis? Por que os estudos são tão custosos e dispendiosos? O que explica isso é a sua pretensão totalizante, a sua tentativa de revelar as respostas e teorias capazes de satisfatoriamente resolverem tudo aquilo que o direito penal tutela. Não nos esqueçamos que o direito penal deve ser encarado como ultima ratio. Isto é, aplicado somente após o exaurimento dos litígios por outras vias.
Lênio Streck, por sua vez, uma das figuras mais mencionadas nos estudos de Filosofia do Direito, nos presenteou com sua fala cristalina e instigante sobre a crise do ensino jurídico e as implicações da juspandemia. Com o avanço massivo da inteligência artificial, o jurista reforça sua inquietação sobre o lado negativo do aperfeiçoamento das tecnologias digitais nas salas de aula para a formação jurídica, tendência que também se expressa na busca incessante e fortemente criticada por Lênio em adquirir conteúdos do direito e aprendê-los adequadamente por meio de manuais simplificados, esquematizados e que tanto têm feito sucesso entre aqueles que optam por uma leitura mais rápida, porém, pouco proveitosa.
A natureza do direito não é simples, e a sua apreensão, por conseguinte, igualmente não o é. Aquele que tem o objetivo de se embrenhar nas ciências jurídicas deve ter em mente a faina intelectual da leitura constante em boas fontes, deve sobretudo, afinar-se com as doutrinas e manuais, subvertendo a propensão do império da jurisprudência que nos acomete. Diferentemente da questionável estruturação de tantas petições iniciais que se organizam de início em “Dos fatos” e posteriormente em “Do direito”, o bom jurista deve superar esta errônea dicotomia que se presta a diferenciar fatos e direito, como se o direito não pertencesse ao plano fático, ainda que sob uma égide teórica que nem sempre logra êxito em adaptar-se concretamente. Sua matéria-prima, pode-se dizer, é encontrada na realidade e é nela que o direito se manifesta.
Não posso deixar de tecer minhas críticas pessoais ao Congresso, sem que isso lhe retire sua intenção edificante ou sua admirável qualidade. Minha apreciação se dá, sobremaneira, acerca de algumas confusões bastante comuns mas que podem ser comprometedoras, ainda mais àqueles que consideram a seriedade do direito. Não pude deixar de notar na solenidade de abertura o forte apelo político norteado pela ideologia da direita. O curso é tradicionalmente conservador e muito de sua pompa e de sua inerente arrogância é nutrida por essa ideologia. Na ocasião, no entanto, tais comentários não procedem, visto ser um evento que, em tese, deveria prezar pela cientificidade jurídica sem entremeios políticos. Certo que o direito e a política se imiscuem, ambos não se dissociam e têm o poder em vista, mas por tais manifestações terem ocorrido no ambiente universitário, posso dizer que me senti um tanto surpreendida. Surpresa que não me abalaria se o evento ocorresse em qualquer outra instituição da esfera jurídica, desde a civilística em entoar o hino nacional brasileiro, até a menção inequívoca de políticos do estado.
Não obstante o episódio, o evento cumpriu com excelência a sua proposta de qualidade e de acesso democrático ao conhecimento jurídico aos estudantes, operadores do direito e curiosos da área de forma gratuita. É esse o espírito que deve prevalecer nas universidades públicas, nas motivações acadêmicas. É a abertura dos espaços de instrução que deve reinar em um território já tomado pela classe grevista. Não me oponho a eles em seu movimento legítimo e constitucionalmente respaldado, mas não me identifico com a generalidade de suas pautas nem com sua precária estrutura, com nítidas contradições. Enquanto alguns sustam o acesso às universidades com suas reivindicações, outros mantêm-se nela a qualquer custo e a compreendem como um direito conquistado após duras reprimendas.