A contemporaneidade de Maquiavel no debate sobre o armamentismo e o desarmamentismo da população
"Jamais existiu um príncipe novo que desarmou os seus súditos; pelo contrário, quando ele os encontrou desarmados, sempre os amou. Isto porque, armando-os, essas armas passam a ser suas, aqueles homens que tinham sua desconfiança se tornam leais, e aqueles que eram fiéis continuam assim, e os seus súditos se tornam seus partidários".
É esse o posicionamento de Maquiavel em sua obra "O Príncipe", considerada um manual de manutenção do poder. Criticá-lo seria um erro anacrônico, é inegável que o livro é uma obra prima que atravessou séculos. Ainda que seja fruto de um tempo específico, o livro possibilita muitas reflexões pertinentes, entre elas, a discussão sobre o porte de armas que continua tão atual.
Para contextualizar o problema, é importante estabelecer uma relação entre o número de armas e o número de mortes causadas por elas. O pesquisador Julio Jacobo Waiselfizs chegou à conclusão de que “a magnitude do arsenal guarda estreita correspondência com a mortalidade que essas armas originam”, trazendo a informação estatística de que de 1980 a 2014 houve um aumento de 415,1% no número de vítimas, enquanto que o crescimento demográfico girou em torno de somente 65%. Há uma heterogeneidade no uso de armas e nas consequências produzidas entre as unidades federativas, dada a dimensão continental do Brasil, sendo que predomina no período analisado a taxa de que aproximadamente 86% foram vítimas sobre as quais incide o dolo do agressor, isto é, trata-se do aumento de casos de homicídio. É válido ressaltar que em razão desses dados, pode-se estabelecer uma relação com a Escola Cartográfica das criminologias, respaldada no estudo geográfico da criminalidade, no mapeamento de crimes e na precisão numérica.
Acerca da seletividade das vítimas de homicídio por arma de fogo, sabe-se que a maioria é jovem entre 15 e 29 anos do sexo masculino, percentual que à época do estudo, abrangia cerca de 26% da população total brasileira. Quanto a cor, não se pode deixar de mencionar que a violência é empregada tanto contra pessoas negras quanto brancas, mas a proporção de vítimas negras por uso de arma de fogo é exponencialmente maior quando comparada com a população de cor branca. O Brasil figura como um dos países que mais mata pelo uso indevido das munições, seja com culpa em razão de imperícia no manuseio, por exemplo, ou então com dolo/intenção
De acordo com Waiselfizs, há duas correntes opostas no cerne do debate. A primeira delas entende que “diante das marcadas deficiências do aparelho de segurança no país, armas de fogo em mãos da população desestimulariam o crime e melhorariam a capacidade de proteção dos cidadãos, dado que a autodefesa armada aumentaria os riscos e os custos para a criminalidade”. Enqaunto que a outra, antagonicamente reitera que “armas de fogo, nas mãos da população, incrementam o risco de assassinato como desfecho de conflitos ou disputas, sem contar com o incremento das mortes acidentais por uso indevido de armas de fogo”.
Daniel Ricardo de Castro Cerqueira e João Manoel Pinho de Mello afirmam que “o efeito causal da prevalência das armas sobre os crimes tem sido objeto de inúmeras investigações ao longo das últimas décadas por economistas, sociólogos, cientistas políticos e criminólogos”.
Um importante avançou se solidificou com o Estatuto do Desarmamento, introduzido em 2003 no Brasil, que foi visto como uma fonte exógena de solução para a problemática ao aumentar os custos de obtenção e de circulação com arma de fogo no território de jurisdição brasileira. Ainda que outros crimes tenham aumentado, como crimes contra o patrimônio, houve uma drástica redução de homicídios causados por armas de fogo e uma estabilidade em relação às taxas de mortalidade. Certamente o número de mortes por armas de fogo continuou a crescer após a implantação do Estatuto, mas a expectativa era de que as taxas do gráfico de mortes fossem muito mais inclinadas, quando na verdade houve um aumento reduzido e muito abaixo do que se esperava, de forma que não se seguiu o ritmo anterior. Assim, os índices se concretizaram abaixo do previsto, o que poupou muitas vidas.