Resenha sobre "A grande transformação" - Karl Polanyi
A obra “A Grande Transformação”, é uma obra que investiga o fenômeno da autorregulação do mercado no estudo da formação de um modelo econômico capitalista, e a conquista de sua autonomia diante de outras instituições, considerando-se a produção de mercadorias pelas vias da terra, do trabalho e do dinheiro. O autor Karl Polanyi tem um significativo arcabouço de conhecimentos históricos, dos quais se vale para analisar as revoluções e o momento em que escreve, durante a Segunda Guerra Mundial, o que explica o impacto temporal exercido em seu pensamento, diante de uma situação fervilhante no ocidente, buscando reiterar que o seu enfoque se situa no presente do tempo em que escreveu.
De forma declarada, o seu objetivo consiste em ressaltar as implicações sociais da economia de mercado no entendimento da supressão de um sistema por outro, de caráter ideal no entremeio dos processos econômicos da civilização moderna, de forma a defender a ideia de que somente a sociedade é capaz de garantir uma ordem social. Figura entre outros objetivos, a interdisciplinaridade do livro ao propor o contato com outras áreas do conhecimento e o autor define que inicialmente discutirá o colapso do sistema internacional e da economia mundial no cenário de uma abrupta ruptura com a ordem anterior.
A primeira parte de sua obra tem como título “O Sistema Internacional” e é composta por dois capítulos que serão apresentados a seguir, sendo que o primeiro deles versa sobre a queda da civilização do século XIX e as origens política e econômica desse acontecimento, bem como com a grande transformação que daí decorreu. Polanyi postula que tal civilização comportava quatro instituições reciprocamente relacionadas (duas de caráter político e as outras duas de cunho econômico): equilíbrio de poder, padrão internacional do ouro, mercado autorregulável e o Estado liberal. A tese que fundamenta o seu pensamento é a de que o mercado autorregulável trata-se de uma utopia, visto que retira o elemento humano de seu contexto. Haveria, portanto, uma autodestruição civilizacional pelas instituições.
Sua hipótese se refere à queda da civilização em razão do fracasso da economia mundial, não se podendo falar em uma relação causal direta entre os dois eventos, posto que Polanyi tem como sugestão acerca da origem da queda o surgimento do mercado autorregulável na Europa, aludindo à Revolução Industrial. Desse modo, o autor centraliza suas considerações na definição da condição atual do homem em termos de origens institucionais da crise. É evidente que a motivação de Polanyi em sua escrita está para muito além de um economicismo, uma vez que traz elementos sociológicos, históricos e
antropológicos que enriquecem contextualmente a sua obra centrada em aspectos da economia, apresentando o declínio de paradigmas e sua substituição por outros, tanto do ponto de vista civilizacional e institucional, quanto com um viés econômico.
Ainda na discussão sobre o mercado autorregulável, Polanyi atenta para a quebra de um esquema de mercados interconectados, que cedeu espaço para um modelo de autorregulação, dissociado de outras instituições de controle, a fim de fixar-se como dominante na ordem econômica internacional. Os aprofundamentos do autor sobre a temática do mercado autorregulável, tão prezada na obra de Polanyi, será posteriormente discutida com maior enfoque nos capítulos subsequentes, sendo que em sua primeira parte, o autor fornece um maior detalhamento ao panorama internacional do sistema econômico e de conceitos importantes de serem retomados enquanto legados que esclarecem as continuidades.
A paz é caracterizada não pela ausência de conflitos, mas sim como consequência de um equilíbrio de poder, o que suscita um forte apreço pela paz, não por ela mesma, mas sim porque o equilíbrio consolidou-se como mecanismo de manutenção do poderio. A ideia de uma paz geral seria indissociável da finança internacional. Outrossim, internacionalmente, afirma o autor, há um equilíbrio, que pode ser desestabilizado de acordo com as taxas populacionais e com a produção de riquezas, de forma que o equilíbrio interno é refletido no externo.
Chama a atenção no primeiro capítulo a ênfase dada para a “haute finance”, de caráter sui generis e que, transcrevendo as palavras do autor: “foi o núcleo de uma das mais complexas instituições que a história do homem já produziu”, funcionando como o elo principal entre a organização política e a econômica do mundo, e fornecendo os instrumentos para um sistema internacional de paz. Perseguia a lucratividade, o que acidentalmente a conduziu para a defesa da paz. Ademais, ressalta o autor: “sua independência se originava das necessidades da época, que exigia um agente soberano, digno da confiança tanto dos estadistas nacionais como do investidor internacional”.
Como o sistema precisava de paz para funcionar, o equilíbrio de poder era organizado para servi-lo. Caso se retirasse esse sistema econômico, o interesse pela paz desapareceria da política. Polanyi ainda menciona os entes que colaboraram para que a paz perdurasse, como foi o caso de organizações internacionais e do Concerto da Europa. A preocupação com a
possibilidade de a economia ser prejudicada caso uma guerra entre as Potências interferisse no sistema monetário, notadamente indica a predominância de uma mentalidade liberal sobre a dinâmica dos fluxos e dos papéis exercidos na ordem internacional. Por fim, as rivalidades e competições massacraram a paz internacional, e com a queda do equilíbrio de poder, a paz também se extinguiu, indicando os prenúncios de um novo tempo.
O segundo capítulo de sua obra busca ilustrar a passagem da década de 1920 à década revolucionária de 1930. Para tanto, o autor inicia suas divagações atentando-se ao colapso do padrão ouro internacional, o que significou o desmantelamento da economia mundial e uma transformação que atravessou o entendimento de civilização na virada do século. É somente a
partir desse colapso que a sociedade passou a perceber a verdadeira natureza do sistema internacional sob a qual se vivia. O sistema monetário internacional, portanto, cumpre uma função política. Polanyi é bastante enfático em suas explicações sobre o padrão ouro enquanto único pilar remanescente da economia mundial tradicional. Além disso, predomina na obra uma perspectiva crítica, o que diz muito sobre a finalidade do autor ao se voltar às outras possibilidades que a discussão suscita e seus outros alcances. Um exemplo é a crítica acerca dos economistas liberais, que não enxergaram o padrão ouro como parte do mecanismo social. Os acontecimentos culminaram em uma transformação abrupta, com uma guerra que agravou a crise e a dificuldade de os países democráticos compreenderem a “catástrofe”- nas palavras do ator, e de reagirem a ela.
A dissolução do sistema econômico está substantivamente atrelada a uma tensão política. Surge no contexto analisado pelo autor, a Liga das Nações, com o fito de estabelecer uma ordem internacional imbuída de um poder organizado que pudesse transcender a soberania nacional. O autor sustenta que um sistema de equilíbrio de poder restabelecido com sucesso só trabalharia pela paz se fosse restaurado o sistema monetário internacional, o que demonstra a consistência da Política de Genebra na pressão pela restauração da economia mundial como via de defesa da paz.
Para os interesses internacionais do passado, verifica-se a comparação feita por Polanyi no sentido de que o governo de várias nações não prezavam pela paz nem viam-se estimulados a lutar por ela enquanto a paz não fosse imprescindível para seus interesses maiores. Esse modelo sofreu um abalo com Woodrow Wilson, que observou a interdependência entre a paz e o comércio, inaugurando um modelo que marcou a década de 1930, por trazer à tona um elemento inteiramente novo no padrão da história do ocidente. Outros marcos foram: o abandono do padrão-ouro pela Grã-Bretanha, os Planos Quinquenais na Rússia, o lançamento do New Deal, a Revolução Nacional-Socialista na Alemanha, e o colapso da Liga em favor de impérios autárquicos.
Sabe-se, por conseguinte, que a causa primordial da crise foi o trágico colapso do sistema internacional, cujo primeiro choque ocorreu no interior das esferas nacionais, de modo que as crises internas associadas à moeda posteriormente tenderiam a levantar graves problemas externos. Esse evento foi caracterizado pela “fuga do capital” e pela queda dos
governos liberais. Outrossim, a moeda tornou-se o pivô da política nacional e o dinheiro alcançou estabilidade a partir da consciência de seu significado como necessidade humana. A noção de soberania ganhou novos contornos e o valor das moedas entre países vitoriosos e decadentes no pós-guerra definiu os rumos econômicos dos fluxos financeiros internacionais, bem como criou relações de dominação pela via econômica diante da capacidade de empréstimos. Os esforços para proteger o valor externo da moeda como meio de comércio exterior levaram os povos a uma economia autárquica com propósitos conservadores do livre comércio, e o mundo vinha se preparando inconscientemente para o tipo de esforço e o tipo de organização necessários para se adaptar à perda do padrão ouro, o que representou também a queda do interesse pela paz, resultando em revoluções, destruições, ditaduras e mudanças sociais.
Encaminhando-me para o final das disposições concernentes ao segundo capítulo, cabe ater-se à distinção estabelecida por Polanyi entre as duas guerras mundiais: enquanto a primeira era fiel ao seu tempo e limitou-se a um simples conflito de poderes, a segunda já fez parte do levante mundial. O autor correlaciona essa diferenciação com a tese defendida e que
ainda precisa ser provada: as origens do cataclisma repousam na tentativa utópica do liberalismo de estabelecer um sistema de mercado auto-regulável - o equilíbrio de poder, o padrão ouro e o estado liberal, esses elementos fundamentais da civilização do século XIX, em última análise, foram todos eles modelados por uma matriz comum: o mercado auto-regulável.
É com base nisso que Polanyi chega à conclusão na primeira parte de sua obra que a peculiaridade da civilização cujo colapso testemunhamos foi, precisamente, o fato de ela se basear em fundamentos econômicos, uma vez que todos os tipos de sociedades têm limitações econômicas, mas somente a civilização do século XIX foi “econômica” em um sentido distinto, pois ela escolheu basear-se no lucro, por meio do qual o sistema de mercado autorregulável derivou, e que se consolida como um motivo muito raramente reconhecido como válido na história das sociedades humanas e, nunca antes elevado ao nível de uma justificativa. Prenunciando o desenrolar de sua análise, o autor brevemente afirma que a ideia de lucro amadurece na Inglaterra, com a Revolução Industrial e a sociedade de mercado.
Retornando a um ponto anterior à primeira parte da obra, antes da adentrar em sua parte inicial, há inclusive, uma rápida introdução da obra de Polanyi que nos permite contextualizar seus estudos com base nos acontecimentos que atravessaram a Inglaterra revolucionária em uma ilustração geopolítica que contrasta nitidamente com os modelos de sociedade arcaica e primitiva, o que denota a multidisciplinaridade de suas fontes e concepções. É por intermédio de uma análise comparativa que o autor enfatiza as particularidades e o poder destrutivo da moderna economia de mercado, ao demonstrar exemplos de eventos históricos que se relacionam de forma direta com os eventos econômicos, abstendo-se, contudo, de lançar um olhar nostálgico ao passado.
Sob meu ponto de vista, pode-se verificar uma conexão simbólica que se concretiza na realidade fática das exposições de Polanyi no que se refere à lógica da destruição, por exemplo, é feito de forma muito singular um comparativo entre a violência das nações no ambiente bélico e a capacidade compartilhada de destruição, declínio e de novas referências
na esfera da economia. É curioso notar que o livro sofreu interferências em razão das limitações trazidas pela Segunda Guerra, o que dificultou o processo final de sua revisão e produção. Observo que isso conduz a uma reflexão que permite um ponto de contato com a disciplina de Direito Internacional Econômico, uma vez que não é possível desvencilhar os
fenômenos políticos que ocorrem em nível exterior das implicações intelectuais, históricas e econômicas às nações, o que corresponde à conclusão teórica de Polanyi acerca da necessidade de adotar uma perspectiva rica em pluralidades e intersecções dos macro fenômenos sem perder de vista o contexto regional dos eventos político-econômicos e a consideração de suas tendências.
A importância da lição vislumbrada pelo autor se situa na necessidade de despertar para problemas de grandes dimensões que envolvem a ordem internacional, mas cuja solução ou análise deve ir além de um discurso superficial das divergências clássicas entre liberais e progressistas com as suas respectivas fórmulas, é necessário expandir os rumos de
possibilidades, ao passo que as sociedades não devem desconsiderar o seu papel no enquadramento político e as consequências advindas de fenômenos que abrem brechas para a mudança.
Após a minuciosa leitura da primeira parte da obra “A Grande Transformação”, dedico-me a responder de maneira mais sistemática e concisa as perguntas que nortearam a leitura, cujas respostas podem ser encontradas ao longo deste resumo, mas que consistem especificamente nas seguintes:
● Qual é o assunto tratado?
K. Polanyi trata na parte inaugural de seu livro sobre o sistema internacional, ao analisar o conteúdo histórico, político e econômico de uma transição paradigmática que envolveu a autorregulação do mercado na ascensão do capitalismo com os seus encadeamentos na ordem social e debruça-se sobre a colisão entre a adesão das nações a modelos de pacificação de conflitos e os seus interesses de cunho econômico, realçando a relevância de não dissociar a política internacional na compreensão da economia global.
● O que o autor quer demonstrar?
Adotando um olhar crítico sobre os eventos que estão prestes a se erguer em sua frente, Polanyi pretende demonstrar que o estudo meramente econômico da sociedade é insuficiente para entender suas complexidades e deficiências. Além disso, é bastante sólida sua perspectiva sobre a realidade, o que permite a demonstração de que as sociedades se construíram por meio de modelos violentos de dominação, determinando o futuro de seu poder. Demonstra, sobretudo, que a alternativa não é retroceder ao passado para reconstruir a história da dominação e das instituições de outro modo, mas sim sanar a problemática das sociedades que colocam o êxito econômico como um imperativo categórico e finalidade última.
● Que argumentos ele utiliza para provar seu ponto?
Os argumentos empregados pelo autor atravessam uma escolha pela metodologia comparativa, adentrando em fenômenos históricos que não somente contribuem para a compreensão dos conflitos, mas também possibilitam entender a perspectiva de Polanyi e seus objetivos. O autor se baseia especialmente no argumento que coloca o ser humano em primazia ao defender a falta de bases sólidas para a concretização de alguns elementos do capitalismo e da autorregulação do mercado. Polanyi é incisivo em seus argumentos e os fundamenta com maestria. Outro ponto é em relação às desigualdades de reação e de privilégios que alguns países obtiveram em detrimento de outros na passagem de um sistema para o outro, com críticas voltadas aos liberais e ao pensamento economicista em geral. Seus argumentos, portanto, se voltam às rupturas e permanências da ordem econômica anterior que permitem uma abordagem de preocupação com o cenário ulterior.
Em síntese, a primeira parte de “A Grande Transformação” explora os meandros da civilização e dos acontecimentos que motivaram a sua jornada rumo a um sistema econômico que seria o reflexo da história humana e dos mecanismos sociais envolvidos para além de uma questão simplesmente técnica. A obra é um despertar para um novo tempo, de novos
conceitos que surgiriam com o modelo capitalista e de novas perspectivas que norteariam o comportamento econômico e os interesses políticos das nações na ordem internacional. Polanyi nos permite compreender que quando se refere à grande transformação, não está dialogando somente com os conflitos de maior alcance em âmbito geopolítico, trata-se sobretudo de uma mudança civilizacional frente a uma nova conjuntura. Isto posto, cumpre entender pela via da crítica a pertinência de analisar o sistema internacional com aporte teórico e com o pensamento fincado no plano da materialidade de suas contradições.
Disciplina: Direito Internacional Econômico