A sabedoria de Polônio.

A sabedoria da História.

 

Os conselhos de Polônio para seu filho Laertes na peça Hamlet[1] de William Shakespeare nunca foram tão contemporâneos e úteis. E que foram tão brilhantemente sintetizado pelo Professor Leandro Karnal.

O primeiro é uma homenagem à prudência. "Não dê voz ao que pensares, nem transforme em ação um pensamento tolo." Esse conselho nos ensina a importância do silêncio e, ao mesmo tempo, um cultivo ao diálogo e a temperança.

O segundo conselho de cunho mais ético: Seja amistoso, sim, jamais vulgar. Eis o enorme desafio em conhecer bem os limites em ser amistoso, sem recair em vulgaridades e pieguices.

O terceiro conselho: "Os amigos que tenhas, já postos à prova. Prende-os na tua alma com grampos de aço; mas não caleja a mão festejando qualquer galinho implume Mal saído do ovo."

Aprenda valorizar amigos testados, mas não oferecer a amizade a cada um que aparecer a sua frente. Em outras palavras, seja seletivo e cuidadoso.

O próximo conselho é: Procura não entrar em nenhuma briga; “Mas, entrando, encurrala o medo no inimigo”. Traduzindo deve-se mesmo evitar qualquer briga ou litígio, mas caso seja forçado a entrar numa, que seus inimigos o temam.

Ainda persistindo na linha do comedimento, o conselho de Polônio é precioso e exato: "Presta ouvido a muitos, tua voz a poucos. Acolhe a opinião de todos – mas você decide."

No trato social, esse conselho é muito pertinente, in litteris: "Usa roupas tão caras quanto tua bolsa permitir. Mas, nada de extravagâncias – ricas, mas não pomposas. O hábito revela o homem, E, em França, as pessoas de poder ou posição. Se mostram distintas e generosas pelas roupas que vestem."

Deve-se usar as roupas conforme sua renda, sem jamais ser extravagante.

O sétimo conselho, in litteris: “Não empreste nem peça emprestado: Quem empresta perde o amigo e o dinheiro; quem pede emprestado já perdeu o controle de sua economia".

Em síntese: Não emprestar dinheiro a amigos, para não perder amigos e dinheiro.

E, o oitavo conselho ratifica: Sê fiel a ti mesmo. E, jamais serás falso para ninguém.

Em verdade, a humanidade caminha há milhares de anos sobre a terra, numa extensa saga onde que o mais relevante é prover a sobrevivência, em sua máxima amplitude, tanto nos bons momentos como nos maus momentos. Enfim, é o somatório de tais vivências que constitui um patrimônio inestimável. A esse patrimônio chamamos história. 

O verdadeiro tesouro do homem é composto de seus erros empilhados, um sobre o outro, como pedra sobre pedra, ao longo do tempo, enfim, querer começar novamente é mesmo a humilhação mais vulgar do homem e o plágio do orangotango.

O homem nunca é o primeiro homem, pois já existiu certo nível de passado acumulado. Eis o único tesouro do homem, seu privilégio e marca indelével. A maior riqueza não consiste naquilo que parece ser certo e digno de ser conservado, mas é ter a memória dos erros, que tanto nos permite não os cometer para sempre.

Por essa razão, Nietzsche definiu o homem superior como o ser da mais longa memória. Isso é ser um povo de homens, poder hoje continuar em seu ontem, sem por isso deixar de viver para o futuro, poder existir no autêntico presente, uma vez que o presente é somente a presença do passado e o porvir, o lugar onde o pretérito e futuro efetivamente existem.

O profano se coloca diante de uma obra de arte desprovido de preconceitos, mas também esta, e a postura de um orangotango. E, assim não pode formar juízos. Ortega Y Gasset derrubou os alicerces  hipócritas de quem defende, como sendo sinônimo de maior autenticidade e naturalismo, o populismo e o imediatismo.

Afinal, toda cultura é artifício, resultante de uma cadeia de ideias, práticas, pontos de vista e, principalmente, tomadas de decisão. No fundo, não existe diferença entre realismo e idealismo, pois o realismo já é um realismo.

Adão, da escrituras sagradas foi o primeiro ser que, vivendo, senti a si mesmo viver. Então, a vida existe como um problema. Eis o que o diferencia do orangotango. Afinal, não existe arte sem reflexão.

E, da tragédia da ciência nasce a arte. E, os métodos científicos nos abandonam e, começam os métodos artísticos. As artes são parte do mistério. O enorme mistério da natureza humana.

O que leva uma turba a destruir o patrimônio cultural, artístico e histórico de uma nação, a falta de amor à pátria. A falta de identificação como cidadão, atuando como um gado onipotente e selvagem a devastar tudo e todos.

Um selvagem não entende a democracia e, muito menos, a república. E, sequer admite que o outro pense de forma diferentemente. Esse selvagem não conhece educação, família, cidadania e, muito menos, pátria.  Vive em hordas regada apenas de comida, água e ódio.

O conselho de Polônio, por vezes, relaciona-se ccom o sentimento de vingança e, conforme aparece em quatro obras diferentes, a saber: Titus Andronicus, Othello, Macbeth e Tímon de Atenas.  . Em

Titus Andronicus, Demetrius, filho de Tamora, aconselha a mãe contra Titus por causa da morte do outro filho – tal estímulo ao conflito provocará a morte do trio futuramente; Tamora  aconselha Saturninus contra Titus afirmando a desonra que este provocou àquele pelo fato de  não conseguir cumprir o compromisso de casar a filha – o conselho à discórdia de ambos determinará a morte de Titus pelas mãos de Saturninus e a morte de Saturninus pelas mãos de

Lucius para vingar seu pai; Aaron (amante de Tamora) aconselha Chiron e Demetrius (filhos de Tamora) a executarem o estupro de Lavínia (filha de Titus) – o conselho não somente causa  danos à Lavínia, como violência sexual e mutilação, como também promove o assassinato de Chiron e Demetrius pelo ato de vingança de Titus; Tamora aconselha os filhos a praticarem  perversidades contra Lavínia – o ato marcará os três com a vingança de Titus, assassinando-os.

Na peça Othello, o Mouro de Veneza Shakespeare apresenta um personagem que apresenta maior complexidade no  ato de dar conselhos – por estar a vingança sempre disfarçada no comportamento de Iago. Iago  é movido pelo desejo de vingança pelo fato de Othello tê-lo preterido para o cargo de capitão e  ter colocado Cássio no lugar.

Iago aconselha Rodrigo (apaixonado por Desdêmona) a juntar  dinheiro e a fornecê-lo para separar Othello de Desdêmona com presentes – em verdade, Iago  quer tomar dinheiro de Rodrigo; Iago aconselha Cássio a procurar Desdêmona para intermediar  o conflito de Othello com ele – o que Iago intenta é usar tal prática para simular uma aproximação  erótico-afetiva entre os dois para Othello; Iago aconselha Othello a ter cuidado com o ciúme – no  caso, ele intenta plantar tal ideia na cabeça de Othello; Iago aconselha Rodrigo a assassinar Cássio  para obrigar Othello e Desdêmona a ficarem em Veneza – por trás desse conselho, Iago planeja  o assassinato de Cássio e de Rodrigo ao mesmo tempo. Todo conselho de Iago disfarça uma  maldade contra o próprio aconselhado, e a tamanha maquinação volta-se contra o próprio  conselheiro quando Othello descobre suas reais intenções.

Já em Macbeth, dá-se um conselho pautado na justiça que indicará a catástrofe da tragédia. Banquo, uma vez alvejado mortalmente, aconselhou o filho a escapar para também não ser morto e para poder vingá-lo no futuro.

Trata-se do cumprimento de profecia, o mal necessário para que a verdade, ainda que seja ambígua, que fora dita pelas feiticeiras impere, apesar das palavras pré- mortis de Banquo.

Em “Timon de Atenas”, o conselheiro é uma figura impotente, vulnerável, enlouquecido e rejeitado pelo endividamento excessivo. Estando como elemento desprezado pela ordem social,

Timon tenta vingar-se dela aconselhando os mais desprivilegiados a produzirem um caos na  sociedade romana. Timon aconselha os subalternos a cortarem as gargantas dos credores e a  roubarem seus amos; Timon aconselha as amantes de Alcebíades a espalhar doenças para  infectar os cidadãos com seu sexo; Timon aconselha os ladrões a roubarem tal como é a natureza  dos seres e a lógica da organização social – um dos bandidos desiste da profissão depois de  ouvir tanta maldade.

“Eu sou eu, e minha circunstância”, já afirmava Ortega Y Gasset. E, circunstância passa a ser tudo o que me rodeia, a saber: a realidade cósmica, a corporalidade, a vida psíquica, a cultura onde se vive, e nesta está incluída as experiências acumuladas no tempo.

Segundo Ortega y Gasset: “O tigre de hoje tem que ser tigre como se jamais houvesse existido tigre algum: não tira proveito das experiências milenares por que passaram seus semelhantes no profundo fragor das selvas. “Todo tigre é um primeiro tigre: deve começar desde o princípio sua profissão de tigre”.

O filósofo espanhol[2] era um conservador tanto que condenava as tentativas de reformar o mundo pelas revoluções e guerras que tanto rompem violentamente com a tradição sem superá-las, fadando-as ao fracasso e à violência.

O que distingue o homem do animal é a sua capacidade de reter memória e, romper a continuidade com o passado é o querer começar de novo, é aspirar a descer e plagiar o reles orangotango.

Vivemos num mundo extraordinário repleto de avanço científico e tecnológico, no entanto, o homem se interessa cada vez menos pelos princípios da ciência e valores fundamentais. O mundo é civilizado, porém, seu habitante não o é. Nem sequer enxerga a civilização nele, mas a utiliza como se fosse a natureza. De forma predatória e débil.

O perigo do nacionalismo exacerbado é ser um beco sem saída por justamente ir contra o princípio nacionalizador, é exclusivista enquanto esse é inclusivista. Afinal, a formação do Estado repousa na superação de diferenças e, não na separação em razão destas.

O conceito de nação e de herói foram criados pelos detentores do poder da Idade Moderna para servir de sustentação ideológica aos seus Estados.

A heroicização da História fora inicialmente desenvolvida pelos iluministas ao final da Idade Moderna que estavam criticando os monarcas que usavam a imagem do herói e da nação para consolidar o seu poder.

Em nosso pobre país, as contemporâneas demonstrações de patriotismo são mais habituais quando relacionadas ao futebol principalmente, por ocasião da Copa Mundial. Noutras ocasiões, e até em datas comemorativas, não se enxerga e evidencia significativas demonstrações voluntárias de patriotismo.

A grande maioria da população sequer sabe cantar o Hino Nacional por inteiro. E, em toda América Latina quando se aceita tranquilamente que todos seus grandes generais sejam taxados de caudilhos, é o que o saudoso Nelson Rodrigues chamou em meados do século XX, e identificou nosso rotundo "complexo de vira-latas".

Xenofonte afirmou: "Os homens obedecem com a melhor vontade àquele que reputam mais sábio, e por isso capaz de lhes promover seus interesses". O maior dilema da liderança é conciliar as duas situações, a saber: a autopreservação e encabeçar os empreendimentos audaciosos, capazes de garantir não apenas a sobrevivência, mas também o progresso e a vitória.

 

Referências.

ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. Trad. coordenada e revisada por Alfredo Bosi. São Paulo: Mestre Jou, 1982.

ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco: Poética. Os Pensadores. v.2. 4ª.ed. São Paulo: Nova Cultura, 1991.

CÍCERO. Da República. Coleção Mestre Pensadores. São Paulo: Escala, 1990.

GIBBON, Edward. Declínio e queda do Império Romano. Tradução de José Paulo Paes. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.

ORTEGA Y GASSET, José. A Rebelião das Massas. Tradução de Herrera Filho.  São Paulo: Vide Editorial, 2016. Disponível em: http://www.leb.esalq.usp.br/leb/aulas/lce1302/ortega.pdf   Acesso em 11.01.2023.

______________________. O Homem e os Outros. São Paulo: Vide Editorial, 2017.

PRADO, Thiago Martins. A função o conselho na obra trágica de Shakespeare. Revista Linha Mestra n. 36. P. 810-813. Setembro/ dezembro, 2018.

NIETZSCHE, F. Assim falou Zaratustra. Tradução, Notas e Posfácio de Paulo César e Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.

SÁNCHEZ, Juan Escámez. Ortega Y GASSET. Tradução e organização de José Gabriel Perissé. Coleção Educadores. MEC. Fundação Joaquim Nabuco. Pernambuco: Editora Massangana, 2010. Disponível em: https://www.livrosgratis.com.br/ler-livro-online-131581/ortega-y-gasset Acesso em 11.01.2023.

SHAKESPEARE, William. Tragédias e comédias sombrias.(Teatro Completo v. 1) São Paulo: Editora Nova Aguilar,

2016.

XENOFONTE. Ciropedia. Edição digitalizada do livro físico Clássicos Jackson. Volumes XXIII e XXIV. Versão para o português de João Félix Pereira. Disponível em: http://www.ebooksbrasil.org/adobeebook/ciropedia.df . Acesso em 11.01.2023.

 

 


[1] Em Hamlet, Hamlet aconselha Polônio como forma de tripudiar do conselheiro ancião e  a ridicularizar a sua posição. Hamlet também aconselha Ofélia a ir a um convento; essa sua posição agressiva, sarcástica e grosseira implicará o desenvolvimento do comportamento  desviante e na loucura de Ofélia.

[2][2] Ortega y Gasset insistiu na responsabilidade que o homem tem pelos atos e escolhas, e que temos condição de calcular o resultado de nossas ações:

(...) cada um de nossos atos exige que o façamos brotar da antecipação total de nosso destino e o derivemos de um programa geral para nossa existência. E isso vale tanto para o homem honrado e heroico quanto para o perverso ou mesquinho. Pois também o perverso se vê obrigado a justificar seus atos perante si próprio, neles procurando significado e função em um programa de vida. De outro modo, ficaria imóvel, paralisado como o asno de Buridan.

GiseleLeite
Enviado por GiseleLeite em 08/09/2023
Código do texto: T7881101
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2023. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.