Análise da obra: O novo direito privado e a proteção dos vulneráveis
Panorama geral e contextualização da obra:
Publicada em 2012, a obra “O novo direito privado e a proteção dos vulneráveis”, de autoria de Cláudia Lima Marques e de Bruno Miragem, versará sobre as transformações advindas da reformulação do direito privado, sendo introduzida com um apelo ao estudo histórico do direito civil de modo a identificar a desconstrução e a simultânea reunificação das fontes diante das abordagens individual e coletiva do direito, ao valorizar a Constituição como dispositivo máximo de regimento, que compactua com os princípios do direito civil privado. É perceptível, porém, que as novidades constitucionais têm seu embrião em lutas sociais, definidas como um questionamento às instituições, na busca por reformulações legais internas com potencial de expansão para outros domínios.
Com um viés político, a Constituição Federal de 1988 foi uma resposta à ditadura militar instaurada no Brasil, evento que aflorou as insistências populares, e se voltou às reivindicações dos novos sujeitos de direito, uma vez que o Código Civil deslocou seu foco subjetivo para as relações estabelecidas entre os indivíduos, alterando o sistema legal de outrora e demonstrando uma preocupação com a dignidade humana, bem como com as disparidades que tanto abalam as classes marginalizadas e reféns de uma vulnerabilidade iniqua, o que contraria a utopia liberal plantada no século XIX, vindo a despontar em realidade árdua no século seguinte.
Para o entendimento do Direito Civil, é ressaltada ainda no primeiro capítulo da obra, a importância da afixação dos acontecimentos no tempo para a compreensão do Direito em uma perspectiva histórico-evolutiva e identitária no que tange às sociedades com suas respectivas culturas, sob um viés antropológico. Formalmente, os autores mencionam a transposição do Direito aos moldes romanos para o Brasil colonial. Contudo, não se pode concluir que esse foi o modelo mais adequado aos povos originários, posto que esses eram detentores de costumes próprios com um sistema específico de regulamentação das condutas humanas.
A pós-modernidade inseriu um novo paradigma ao Direito em razão da globalização e das transformações sociais, ao deslocar o foco do Homem enquanto titular de direitos idealizados pela Revolução Francesa, para a posição de homem fabril em condição produtiva, teorizada inclusive por Hannah Arendt, o que consequentemente conduziria os indivíduos a uma realidade baseada na economia, sobrepondo-se à face cultural dos sujeitos a partir da atual Constituição Federal e de um Código Civil menos subjetivista.
O direito privado, inspirado pelo Code Civil francês, busca amparar e garantir a preservação dos indivíduos, consolidando-se como uma das subdivisões do direito moderno, e herdeira das utopias liberais de igualdade formal do século XVIII, ao lado do direito público, de proeminência estatal. Doravante, o ser humano passa a ser visto de acordo com sua autonomia e com sua capacidade para responder pelos atos que comete, o que indica uma concepção tradicionalista e facilitadora de preconceitos acerca do tratamento àqueles que possuem limitações. Ao adentrar na análise sociológica do ser humano, depreende-se uma dimensão social e uma esfera individual que nem sempre se interpelam, designadas como componentes da identidade do indivíduo, denotando a fragilidade de uma apreciação humana totalizante e de um entendimento único sobre o direito privado, posto que em última instância, o homem é o seu objeto de investigação.
Adiante, ao esclarecer a demanda por reformulações do direito privado conforme as propostas modernas dos direitos fundamentais, sugere-se a característica solidária do direito, pautada na fraternidade e metaforizada como uma ponte entre o indivíduo e o meio coletivo ao qual pertence, tratando-se de uma tentativa de transposição do termo cunhado na Europa para o exemplo brasileiro. A supremacia da economia, que prezava pela valorização material, fundou um olhar mais humanizado aos indivíduos inferiorizados em um vínculo jurídico, atentando-se à função social do direito privado em proporcionar mais dignidade e solucionar as injustas desigualdades. A utopia da solidariedade reside no fato de que o direito privado tem sua aplicação em interesses individuais desde a Roma Antiga, o que o diferencia do direito público.
Retomando o caráter histórico dessa análise sobre o direito civil, é fundamental compreender as raízes da formação jurídica brasileira com suas influências trazidas por outros povos que passaram pelo Brasil e deixaram seu legado no direito. A ampla participação romano-germânica se verifica nas fontes legislativas, nas técnicas e nas instituições, mensurando o direito a partir de um sistema positivado cujas codificações designam a estatização do direito e a interpretação das fontes por um aplicador das leis. Não se pode deixar de mencionar o papel da filosofia grega na construção do pensamento jurídico romano em relação à relevância da instituição familiar para o desenvolvimento das relações civis privadas que posteriormente cederão lugar às teorizações sobre o espaço público que propicia o exercício da autonomia cidadã, e sobre o bem comum, em razão do estabelecimento de elos entre os grupos e do desenvolvimento de objetivos coincidentes.
Além da centralidade do direito civil no ramo privado do direito romano, é cabível notar a distinção muito bem estabelecida entre o meio público e o privado, que se dissolverá com a massiva expansão do direito público em detrimento da regulação da vida privada no mundo germânico medieval, assim como será revisitado sob o olhar das nascentes universidades. Entretanto, tal divisão prezada pelos romanos é base do hodierno direito brasileiro, afixada no território durante o período de colonização europeia. Um importante passo foi a sistematização do direito como ideia embrionária que organizaria adiante os primeiros grandes códigos unificados conforme uma determinada lógica obediente à hierarquia. Diferentemente do direito público, que abrange um ente superior: o Estado, o direito privado ordena as relações entre os iguais, sendo a base da vida em sociedade, como pode ser visto desde a Lei das XII Tábuas na Antiguidade Romana.
Pode-se afirmar que o direito privado é composto de três características: codificação, interpretação e sistema. Os autores utilizam-se do termo "direito privado" por eles empregado, para esclarecer uma dicotomia existente entre público e privado no que se refere ao direito. Ademais, é necessário diferenciar as normas de conduta e as normas de organização, estando relacionadas respectivamente ao Estado de cunho liberal, pertencendo ao ramo do direito privado, e ao Estado prestador de assistência, designando o direito público, o que é desmentido pela atual Constituição. Outra distinção a ser feita é a contraposição entre o direito positivo, de caráter artificial e científico, e o direito natural, que guarda consigo o idealismo ético da conquista de uma finalidade social. Para além dessas cisões, os trechos lidos descrevem cautelosamente a herança romana no direito brasileiro, como os princípios interpretativos, o humanitarismo e a confiança que culmina na boa-fé.
Ao analisar a evolução do direito civil, o texto propõe uma visualização histórica do Código Civil de 1916, fortemente conservador, e do Código Civil de 2002, cujo enfoque foi dado à realidade social brasileira, tendo a Constituição não somente como ponto de partida, mas como objeto supremo de inspiração. Acerca da formação do direito civil no Brasil, cabe ressaltar o descontentamento em relação às ordenações portuguesas impostas; o contato de juristas com ideias no plano estrangeiro, que rendeu um método comparado de interpretação das normas, o qual se tornaria amplamente difundido; a valorização dos costumes e a singular relação estabelecida entre o juiz e a jurisprudência. Em minha compreensão, é salutar circunstanciar os fenômenos jurídicos por meio da delimitação contextual em relação aos dois códigos civis supracitados, visto que o primeiro surgiu em um âmbito imperial, enquanto o último já se situa na fase republicana, incorporando princípios do Code Civil francês e recepcionando ideias advindas do sistema norte-americano. Surge desse modo, um direito autêntico e tecido por variadas manifestações jurídicas e sociais que o moldaram.
Discorrendo sobre a influência alemã que recaiu sobre os juristas brasileiros e, por conseguinte, no Código Civil, verifica-se uma importante passagem que retrata nitidamente a proteção dos vulneráveis mencionada no título da obra. Tal passagem explica a importância da garantia da justiça social com relação aos desfavorecidos, aos consumidores, trabalhadores e membros da sociedade civil como um todo. Discorrer sobre o impacto germânico na legislação brasileira, porém, torna-se abstrato caso não seja seguido por exemplos concretos. Para tanto, os autores delineiam cautelosamente os feitios de alguns juristas, como a Consolidação das Leis Civis, a separação entre direito das pessoas e direito das coisas e o culturalismo jurídico.
Alude-se especialmente à organização do Código Civil, com a parte geral contendo a teoria do ato jurídico, por Teixeira de Freitas e Coelho Rodrigues, cujas ideias se encaminharam até o projeto de Clóvis Bevilaqua, juntamente com a legislação comparada, com as concepções de Savigny e com a influência do BGB (principalmente na parte geral do Código Civil de 1916, com aspecto técnico e referente ao negócio jurídico), e da ciência jurídica alemã, de caráter lógico-científico. No panorama local, o individualismo e o liberalismo, reinantes no século XIX, ganharam expressão, bem como o princípio da boa-fé, implicitamente presente no Código Civil de 1916, estruturado por fim, do seguinte modo: parte geral e parte especial, essa última contendo os livros sobre direito de família, direito das coisas, direito das obrigações e direito das sucessões.
Concerne ao direito privado a temática patrimonial e extrapatrimonial, referentes ao poderio econômico dos sujeitos. Contudo, o novo direito privado reconhece que o fator econômico não é o seu principal componente, mas sim a proteção humana. Em compensação, o Código contribuiu para reparar a fragmentação, por meio da recodificação e da manutenção das fontes diversas de direito privado, sendo então elaborado de forma a guiar-se pelos princípios da eticidade, da operabilidade e da socialidade, ainda que os objetivos sociais, igualitários e protetivos do novo Código foram por vezes considerados irrealizáveis, tendo como prerrogativas o reconhecimento das diferenças, a inclusão e a minimização do aspecto individualista do Código Civil de 1916, bem como a união das disposições comerciais e civis, o que conferiu ao direito comercial uma compleição objetiva, progressista e unificadora das obrigações.
Para ampliar os contornos a respeito do direito privado, pode-se pensar para além do Código Civil válido no Brasil, a partir da expansão para o entendimento do direito internacional privado, que possibilitou desenvolvimento da autonomia do direito privado na circunstância internacional, sendo aprofundado por autores italianos. O princípio da proteção humana, de igual maneira, norteia o direito privado internacional, motivado pela Declaração Universal dos Direitos do Homem, de viés multicultural.
Em relação às mudanças verificadas no direito de família em decorrência das transformações sociais e dos laços humanos, é possível inferir que a visão patrimonialista de desígnios liberais, cedeu lugar ao reconhecimento do “direito das famílias”, ao superar estereótipos e tornar as leis mais tolerantes às diversidades. Aos moldes da Constituição de 1988, o direito de família converteu-se em um direito mais humanizado e menos distante da realidade que ele engloba, reafirmando o caráter de proteção à pessoa humana.
Com o surgimento de novas fontes, métodos e sujeitos, o atual direito privado no Brasil é desafiado pelo pluralismo e pelo subjetivismo em oposição ao direito tradicionalmente instituído. Nessa máxima, é perceptível a inquietação com o assunto da proteção dos vulneráveis e da dignidade humana, ainda que persista o receio da fragmentação em razão da pluralidade. A fundamentação ético-jurídica parte do pressuposto de que o direito enquanto instrumento de solução de conflitos permanece ao lado de juízos de valor, como a ética e a moral.
Ao discorrer sobre as discriminações existentes no direito privado, os autores introduzem sua teorização por meio de um panorama histórico da alteridade, isto é, da visualização e do entendimento do outro para a valorização das diferenças e para a identificação das fragilidades. Ou seja, acentuar as disparidades pode se apresentar como uma saída para a problemática, uma vez que o tratamento desigual aos desiguais é fundamental para a sua proteção e inclusão, conforme um importante detalhe material do princípio da isonomia. Disso advém uma necessária distinção entre igualdade e equidade.
Diferentemente da modernidade, que difundiu os direitos adquiridos, na pós-modernidade prevaleceram os direitos humanos e fundamentais, com maior ênfase da equidade, e distanciando-se do valor da igualdade generalizante proveniente da Revolução Francesa. Ademais, um novo entendimento de vulnerabilidade e da noção de pessoa sobrepuja antigos conceitos de igualdade ou desigualdade, uma vez que a igualdade pressupõe comparações, o que destitui as singulares dimensões das vulnerabilidades e dificulta um olhar equitativo de justiça social.
Posteriormente, os autores contextualizarão suas ideias a partir da transdisciplinaridade com as ciências sociais. Para isso, elucidam a teoria do homem-social, discutida por Gustav Radbruch, e a ideia de dualidade do ser humano, segundo Georg Simmel, em socialismo e individualismo. O fato de denominar-se como “privado”, não retira do direito a sua ação plural e humanista, em harmonia com os preceitos constitucionais e sendo um instrumento de equilíbrio e de proteção integral dos mais nobres valores humanos.
A terceira parte do livro se apropria da temática sobre as vulnerabilidades de forma a demonstrar a proteção como garantia constitucional por meio do alcance da igualdade material na contrapartida de uma igualdade formal em relação aos novos sujeitos de direito. No contexto da pós-modernidade, se verifica uma conjuntura de fragmentação e pluralismo jurídico, com novas noções de indivíduo acompanhadas de uma reformulação do direito. Nesse ínterim, as diferenças entre os sujeitos em suas distintas realidades passam a ser valoradas e recebem a importância de um paradigma fundante no âmbito do direito privado, que inicia uma fase de incorporação de elementos característicos do direito público, como a intervenção estatal e a supremacia da igualdade sobre a liberdade na defesa dos direitos humanos e fundamentais.
É nessa condição que os autores se debruçarão sobre os detalhes de cada grupo em estado de vulnerabilidade, a começar pelas crianças e adolescentes, que em razão de sua suscetibilidade, dispõem de uma ampla proteção que as retira de uma mera posição de objetos de decisão, identificando-as como dotadas de direitos humanos e identidade cultural, seja no cenário nacional ou internacional, nas mais variadas questões, desde adoção, tráfico infantil, educação e segurança jurídica aos menores. Os mesmos princípios são válidos para a proteção dos idosos, que emergem como um grupo de atenção diante da tendência global de envelhecimento das populações.
Outra categoria diz respeito aos consumidores em um contexto de hiperconsumismo, os quais têm seus direitos como um princípio fundamental e atrelado à ordem econômica na correção das desigualdades, sendo amparados pela Constituição Federal. É diante desse grupo de vulneráveis que se verifica o surgimento de estatutos de proteção em razão de mudanças típicas da pós-modernidade nas relações entre consumidor e fornecedor, expondo-se as vulnerabilidades técnica, jurídica, fática e essencialmente a informacional que recai sobre uma das partes.
Merecem atenção, de igual modo, os deficientes e portadores de necessidades especiais, seja de natureza mental ou física, com reduzida capacidade de discernimento. Nesse ínterim, cabe a discussão acerca da personalidade jurídica e capacidade civil, uma vez que tal grupo é composto por indivíduos titulares de direitos e obrigações. No entanto, por conta de suas limitações, esses sujeitos são em muitos casos, impossibilitados de responderem por seus atos na vida civil.
Por fim, é necessário contemplar as gerações futuras no sentido de manter uma preocupação jurídica desde os dias atuais, posto que a conduta humana no mundo contemporâneo impactará a qualidade de vida de sociedades posteriores, no tocante ao meio ambiente e à correção das desigualdades que assolam a sociedade civil. Para tanto, é imprescindível analisar o direito civil repensado à luz da Constituição e lutar metodologicamente para a concretização dos mais nobres ideais propostos, abrangendo as diversidades culturais em consonância com uma legislação plural e representativa.
Encaminhando-se para o final da obra, os autores conduzem a reflexões acerca das vulnerabilidades que cercam todos os seres humanos, como a impotência diante de um tempo finito em que o homem se desenvolveu durante sua história na Terra com suas respectivas relações existenciais e econômicas. Ainda na pós-modernidade o tempo é parâmetro para as relações de direito civil e o ideal de fraternidade recebe novas acepções que culminarão na convergência de finalidades entre o direito privado e o direito público na consolidação dos rumos sociais de identificação e respeito às diferenças, competindo ao Estado e ao esforço da sociedade civil, o zelo com os sujeitos que por vezes não recebem o mesmo grau de contemplação no escopo cotidiano e jurídico: os vulneráveis.
Opinião crítica, contribuições e apontamentos pessoais:
Após a minuciosa leitura do livro “O novo direito privado e a proteção dos vulneráveis”, pude compreender as variadas dimensões nas quais o direito civil privado está presente, bem como o seu desabrochar e o seu contraste em meio às heranças jurídicas advindas de tradições anteriores. Os fundamentos históricos explorados pelo texto forneceram uma importante base para o entendimento das mudanças do direito privado em diálogo com novas mudanças sociais que passaram a exigir sua reformulação e um olhar diferenciado às vulnerabilidades que nos cercam. Em minha análise, a obra aborda em completude e de forma reiterada a relevância de transpor um discurso formal encerrado na Lei para a realidade palpável visando à concretização dos ideais que guiam o direito civil e amplamente retomado pelos autores como sustentáculo de suas argumentações.
No entanto, vislumbro uma concepção esperançosa por parte de Cláudia Marques e Bruno Miragem, que não corresponde com a práxis ou com a efetivação do conteúdo previsto no Código Civil. Não se pode discutir a inovação e as repercussões necessárias que o Código Civil de 2002 inaugurou, sendo um importante instrumento a partir do qual a sociedade deveria repensar seus gestos discriminatórios. Contudo, apesar da menção às políticas públicas, o novo conteúdo se apresenta de forma abstrata, não se realizando de forma plena em razão de preconceitos já enraizados na sociedade civil e que persistem ao lado de um novo plano de vivências e de reconhecimentos efetivos acerca das diferenças que criam as vulnerabilidades em um cenário que se fragiliza diante de tais concepções segregacionistas.
A obra atraiu minha atenção pelo motivo de nortear uma leitura leve e clara que possibilitou tecer conexões com outras obras já lidas, como a comparação entre a reorganização do direito privado e o texto “Premissas metodológicas para a constitucionalização do direito civil", posto que além de estabelecer um panorama dos eventos que marcaram cada Constituição brasileira, trata-se dos desdobramentos do Código Civil, de suas rupturas e de seus estatutos frente à Constituição, que se pauta na concretude tendo em vista seus princípios fundamentais.
Em um primeiro momento, revelou-se estranha a ideia de que não deveria haver uma cisão arbitrária entre o direito público e o privado, mas com o decorrer das explicações e dos exemplos trazidos, passei a concordar com os autores no que diz respeito ao direito civil em uma visão que atravessa as fronteiras das classificações construídas com o tempo, que obstaram o entendimento de um direito civil em completude, ainda que seja marcado pelo pluralismo e pelo movimento de sua especialização em estatutos próprios, o que denota uma complexidade que acompanhou as transformações da sociedade à qual o Código se propôs a atender.
Idosos, consumidores, deficientes, crianças e adolescentes foram alguns dos grupos que receberam ênfase no livro e lugar de destaque como merecedores de proteção adicional em relação às suas fraquezas que configuram casos de vulnerabilidade. Certamente, diversos outros grupos poderiam ter sido abrangidos pela discussão dos autores. Entretanto, em minha percepção, essa escolha não pretendeu excluir os outros grupos, mas sim proporcionar uma explicação mais desenvolvida sobre os sujeitos pertencentes às categorias mencionadas, uma vez que declaradamente se valoriza a inclusão universal dos indivíduos.
A importância da obra reside justamente na visualização dos vulneráveis como sujeitos de proteção legal em relação ao seu bem-estar, aos seus direitos humanos e à sua integridade. Para além disso, são abarcados dispositivos da Constituição, do direito internacional e do próprio Código Civil que fornecem maior senso de veracidade aos ideais expressos, ainda que existam percalços no caminho para a garantia dos direitos assegurados. Ou seja, o livro torna-se relevante na medida em que aborda em um primeiro momento a revolução no direito privado, seguida das disposições sobre esse novo direito (e os novos direitos) em sua consolidação, bem como o recorte de aprofundamento de diferentes grupos e por fim, um olhar humano que se lança para o futuro da proteção jurídica e social. Assim, os autores delineiam questões cruciais, como o processo de revisão do direito civil e os aspectos patrimoniais das relações jurídicas, na tentativa de esclarecer os direitos que por vezes são vistos como intrínsecos, quando na realidade, nem todos são assistidos pelas mesmas vivências legais com seus consequentes resultados práticos.
O clássico historiador Bartolomé Clavero, citado logo no início da obra, é uma referência que me encantou e rendeu frutíferos pensamentos, em razão de ter embasado uma alegação dos autores, mencionado de modo a enriquecer o texto e torná-lo interdisciplinar, uma vez que a relevância jurídica desse estudioso se verifica desde os passos iniciais no curso de Direito, o que me fez remontar a disciplina sobre as transformações das instituições jurídicas ao longo do tempo, ministrada na primeira fase da formação.
Pensar sobre o direito privado é retornar às mais remotas relações humanas, antes mesmo de um Estado regulador. Concomitantemente, porém, refletir sobre o direito privado é examinar o antro em que o ser humano se encontra desde seu nascimento, o que torna o direito privado bastante próximo da realidade vivida. Por conta de seu caráter individual, o direito privado não deve rechaçar sua preocupação pública, bem como o direito público deve ser compatível com o indivíduo em particular.
Considero importante destacar que novos e imprescindíveis horizontes que o Código Civil de 2002 não estão isentos de contradições, posto que ele se apoia, em teoria, nas inovações civis, ao passo em que permanece com as limitações da influência ditatorial exercida sobre ele, que relega o indivíduo ao segundo plano.
Cabe ainda, elaborar uma divisão acerca de dois termos que frequentemente são confundidos: minorias e vulneráveis. O fator distintivo entre eles é a organização, visto que as minorias não possuem necessariamente objetivos comuns e uma organização. Já nos grupos que se constituem por vulneráveis, se verifica um nível mais alto de estruturação, mas menor autodeterminação. As demandas podem ser semelhantes em razão da proximidade das realidades que esses sujeitos vivenciam, mas é importante frisar que nem todas as minorias se identificam como grupos vulneráveis, uma vez que essa percepção sobre as minorias incorre em uma visão que realça o aspecto da dispersão dos grupos em detrimento das necessidades que podem ser supridas ou não, em um retorno à individualização das reivindicações.
O termo “vulnerabilidade” foi redigido inúmeras vezes ao longo do livro, e apesar de se inferir o sentido dessa palavra, é mister direcionarmos a atenção ao questionamento daquilo que o conceito de fato representa. A palavra é proveniente do latim “vulnus”, que significa “lesão” ou “ferida”. Ou seja, o termo designa aquele que foi prejudicado ou que apresenta indícios de potencial para sentir-se lesado ou ferido. Ao transfixar a palavra para o âmbito em discussão: o meio jurídico, nota-se com maior clareza a necessidade de intervenção do direito para a promoção da segurança jurídica a esses sujeitos e para a valorização de suas diferenças no sentido de agregação para a sociedade ao invés de uma concepção negativa erroneamente associada a tais grupos.
A presunção de vulnerabilidade é em meu ponto de vista, um mecanismo que protege os indivíduos que se encontram em uma situação de potencial prejuízo, isentando-os de uma prova concreta acerca de suas decisões, tendo sua importância verificada principalmente entre os hipervulneráveis, que possuem suas fragilidades agravadas em um aprofundamento ainda mais extremo em relação aos próprios grupos já considerados vulneráveis. O novo direito privado tem como forte característica a preocupação com o outro, com a alteridade e com a autonomia. É curioso notar que a horizontalidade dos direitos humanos passa a refletir um Direito privado em equilíbrio, aliado com os princípios constitucionais dispostos.
Por fim, dedico-me a uma indispensável reflexão que o livro suscitou em meu pensamento ao abarcar com contundência as diversidades e as classes suprimidas por um direito civil que se confirmou burguês e patrimonialista com os séculos passados que obscureceram valores importantes, posteriormente revisitados em uma transformação axiológica que apresentou um novo viés para o direito aplicado na pós-modernidade.
O ramo do direito privado que desponta na atualidade brasileira se difere em muito da antiga ideia que a caracterização “privado” evocava com seus respectivos preconceitos constados em uma base liberal. Em meio a tantas obras que expõem longamente as nuances e a dogmática do direito privado, o livro de Bruno Miragem e de Cláudia Lima Marques se distancia de uma perspectiva manualista do direito e privilegia aqueles que historicamente e sistematicamente, não foram objeto de devida atenção jurídica. É salutar ressaltar que o novo direito privado não conferiu privilégios às classes vulneráveis, mas sim uma correção de erros relacionados à carência de uma proteção mínima, alastrando-se até a conquista do novo Código Civil, que ganhou uma nova dimensão ao compreender o contexto social dos anseios humanos. Esse evento dialoga com o pensamento de Émile Durkheim, uma vez que o pensador francês alude às transformações humanas como resultantes do conhecimento sobre o meio no qual os indivíduos estão inseridos, o que se assemelha com a nova concepção de direito privado proposto por um Código Civil mais humano.
Persevera a seguinte indagação sobre o direito civil: o que torna o direito privado comprometido com os vulneráveis para além daquilo que vige no novo Código Civil? A atitude de cobrar o cumprimento do Código e a sua modelagem conforme as regionalidades e as especificidades de cada grupo é fundamental para que os direitos lhes sejam assegurados. Em síntese, a inclusão social não diz respeito à acomodação ou à naturalização das diferenças, posto que as mesmas são agregadoras a toda a sociedade. Outrossim, muito se fala sobre categorizar os sujeitos em grupos conforme suas semelhanças, mas não se pode ignorar as demandas particulares de cada indivíduo, as quais devem ser sanadas. Para tanto, o novo direito privado não apenas reafirmou a proteção universal já prevista, como também ampliou seu campo de atuação, garantindo sua perspectiva progressista ao afixar uma mudança paradigmática no direito civil e na apreciação da existência humana.
Disciplina: Direito Civil I