Ensaio filosófico: John L. Austin e Robert Alexy: a relação entre Filosofia da Linguagem e Teoria do Direito
A teoria pragmática é estruturada a partir da teoria dos atos de fala, que por sua vez, herda o entendimento de L. Wittgenstein acerca do significado vinculado ao uso das palavras nos jogos de linguagem. Inicialmente, a compreensão de tais jogos passa por diferentes sentidos atribuídos conforme o domínio no qual as palavras se contextualizam. Nesse ínterim, o Direito enquanto um campo de estudo pode ser identificado como um jogo de linguagem, cujas prescrições se relacionam com os termos, os quais podem assumir significados diferentes quando comparados com seus semelhantes em outros âmbitos linguísticos. A importância dessa inferição reside no fato de que a linguagem ordinária/comum posteriormente discutida por Austin recebeu influências precisas advindas da obra de Wittgenstein.
Ou seja, entre os autores do giro pragmático-semântico situa-se John Austin, que em sua primeira fase teorizou noções descritivistas sobre atos constatativos e performativos, e em sua segunda fase, o autor propôs um esquema que permite uma sobreposição (overlapping) da constatação e performatividade anteriormente trabalhadas por ele. Essa teoria estuda a estrutura dos atos de fala e reparte o ato de dizer algo em três partes. Assim sendo, a locução passa a ser formada pelos elementos fonético (sonoro), fático (gramática) e rético (sentido). Disso, e por meio da leitura da obra “Quando dizer é fazer”, pode-se depreender que o elemento fático pressupõe o fonético, então o rético pressupõe tanto o fonético quanto o fático, sendo necessário o contexto para a construção do sentido, bem como formas de se expressar adequadas que alcancem o objetivo do que se pretende comunicar, remetendo à Lei de Poe.
Robert Alexy, por sua vez, é um jurista alemão e teórico do Direito, que defende a ideia de que a aplicação das leis não se resume à simples subsunção do fato ao texto normativo, buscando a justificação racional de julgamentos com auxílio jurídico-metodológico por uma via interpretativa precisa, posto que em sua obra, o autor atenta para três problemáticas do
direito frente ao seu discurso e à sua efetivação: a imprecisão da linguagem utilizada pelo direito, a possibilidade de colisão entre normas, e a inexistência de casos jurídicos análogos preexistentes e passíveis de servirem como parâmetro interpretativo. O autor é influenciado inclusive por um dos autores que discute a relação entre sentido e referência na filosofia da linguagem: G. Frege.
Ao analisar a correspondência entre Austin e Alexy, de modo a evidenciar a tese a ser defendida nesse ensaio filosófico, cabe basear-se pelas compreensões de Alexy em seu livro “Teoria da argumentação jurídica”, em que o autor apresenta suas considerações sobre a teoria do discurso, retomando o pensamento de Austin, principalmente no que se refere a sua segunda fase, que compreende a teoria dos atos de fala. Verifica-se a partir de suas considerações, que o autor manifesta claramente que é suficiente uma breve passagem pelos teóricos da filosofia da linguagem, como expressam suas palavras no terceiro tópico abordado: “Não é possível e, tendo em vista muitos estudos anteriores, totalmente desnecessário, apresentar e discutir as visões desses dois autores em detalhes. A discussão se limitará a alguns comentários sobre o
conceito de Wittgenstein de um jogo linguístico e sobre o conceito do ato do discurso de Austin”. Entretanto, a partir de um estudo ampliado e interdisciplinar entre a filosofia da linguagem e a teoria do direito, considero maior a relevância que poderia ser dada por Alexy no que tange à teoria dos atos de fala, que com um olhar minucioso, pode demonstrar a
contribuição dos conceitos da filosofia que se desdobrou com Austin, para a sua aplicação no cenário teórico-jurídico.
Primeiramente, é válido ressaltar que ao se propor a desenvolver uma teoria analítica e normativa, adotando critérios racionais, Alexy de início conceitua que os atos de discurso são ações executadas quando algo é dito. Isto é, não remetem meramente ao ato de dizer, mas sim de fazer, de forma que é possível distinguir entre alguns atos imersos em um mesmo ato de discurso, por exemplo, o ato locucionário, o ilocucionário e o perlocucionário. Observa-se que ao revisar o pensamento de Austin, Alexy opta por descrever a função da teoria do discurso, visando a uma correspondência com o direito ao concluir que a razão da discussão sobre a filosofia da linguagem diante do discurso é criar normas que não se encerrem em sua
normatividade, mas que permitam uma abertura interpretativa para a inclusão de princípios a serem ponderados na resolução dos chamados “hard cases” ou casos lacunosos, que exigem a atividade do intérprete, consubstanciado na situação pela figura do julgador. Por conseguinte, as regras são cumpridas apenas por aproximação, posto que elas são, nas palavras de Alexy: “um instrumento crítico para excluir tudo o que não seja racional numa justificação objetiva, e/ou por tornar mais visível um ideal pelo qual valha a pena lutar”.
Alexy enfatiza que o aspecto inovador da filosofia de Austin, é a ideia de ato ilocucionário, que tem em vista um sentido de intenção, sendo permeado por convenções sociais. Entretanto, locucionário (ato de proferimento que enfatiza o significado, os elementos da locução permanecem) e ilocucionário caracterizam um mesmo ato, que é dotado desses dois desdobramentos. Já o ato perlocucionário gira em torno do resultado, é um proferimento que busca causar um efeito. A partir dele se verifica como se realizam as coisas no mundo naturalístico (efeitos/consequências) por meio dos atos de fala. Ademais, ao contrastar Searle e Austin quanto à formulação implícita das regras, Alexy cria uma classificação para os erros
passíveis de existir no ato de discurso teorizado por Austin, esses erros ocorrem quando alguém diz algo sem acreditar que aquilo é verdadeiro, o que também pode estabelecer relações com o direito frente às consequências do proferimento sem a convicção da veracidade, o que ilustra o descumprimento das regras pragmáticas.
Adiante, Alexy comenta a distinção de duas dimensões da crítica em Austin: a que se apoia no ato ilocucionário, relativa à dimensão da felicidade ou infelicidade, pois como se sabe, os atos performativos não possuem condições de verdade, mas apenas condições de felicidade, e a dimensão oposta, que entende o sentido locucionário da verdade ou da falsidade. Diante
dessa distinção, Alexy afirma que Austin tem a opinião de que as afirmações normativas de igual maneira podem ser julgadas pela dimensão de verdade ou de falsidade basicamente da mesma maneira que as afirmações descritivas contidas em atos constatativos. Ou seja, o sentido normativo de um texto jurídico se assemelha mais à fixação de condições de verdade ou
falsidade de forma explícita, o que o afasta da pessoalidade dos atos performativos, ainda que seja bastante tênue a linha entre constatar (descrever) e performar (fazer). Igualmente do ponto de vista do direito, é comum em muitos casos a confusão entre um ato tipificado enquanto um ilícito penal, por exemplo (tipo) e o ato da conduta (a ação no plano fático), o que demonstra que um dos problemas compartilhados entre o tema na filosofia da linguagem e na teoria do direito é justamente a dificuldade em definir limites exatos entre a descrição e o ato.
Outra referência teórica que dialoga com o assunto do presente ensaio, é Jürgen Habermas, um autor que se coloca tanto na filosofia da linguagem quanto na filosofia do direito. Habermas é um nítido opositor das ideias de Alexy, mas forneceu uma boa base sobre o agir comunicativo, sendo um autor prescritivo que sustentou uma reconstrução dos elementos
formadores do Estado Democrático de Direito sob a perspectiva do viés procedimental, observando determinados pressupostos do agir comunicativo, em que todos os sujeitos são considerados livres e iguais, de forma a legitimar-se tendo em vista a autonomia garantida igualmente a todos os cidadãos, o que contribui para uma coesão fundamental com a relação
entre direito e democracia. Em sua obra, Habermas define facticidade e validade com o estabelecimento de conexões entre os conceitos, os quais se exteriorizam no momento de aplicação do direito. O autor, portanto, parte do pressuposto de que o discurso/diálogo, embrião do princípio democrático, amarra um sistema de normatização legítima, uma vez que opera na
forma comunicativa de engendramento dos direitos.
Retornando às ponderações de Austin, o autor mostra que por um lado, até mesmo os atos de discurso como convicções, avisos e conselhos podem ser testados com relação aos fatos, enquanto por outro lado, julgar afirmações descritivas exige uma multiplicidade de outras considerações além da consideração dos fatos. O mesmo ocorre na esfera do direito, uma vez
que como supracitado no parágrafo anterior, o discurso normativo pode ser essencialmente emparelhado às afirmações descritivas. Alexy, porém, pontua que o fato de haver características em comum não significa que as normas se reduzem ao descritivismo no mesmo nível de verdade ou falsidade, porque esse exame seria raso e insatisfatório para sanar outras
brechas pertencentes ao universo da normatividade.
Alexy reúne ao final de sua menção a Austin, os motivos pelos quais a investigação da teoria dos atos de discurso importa, primeiramente por conter um aprimoramento do que significa dizer que falar uma língua é uma atividade governada por regras, segundo porque torna certo que em alguns aspectos importantes o uso da linguagem normativa não é para ser
distinguida da linguagem descritiva, e por fim, em razão de oferecer um sistema de conceitos básicos cuja fecundidade se tornará evidente durante o curso da investigação. A possibilidade de entender o direito enquanto campo de estudos indissociável da linguagem atenta para o primeiro motivo citado pelo autor, uma vez que o direito enquanto permeado pela linguagem e fundido nela, como ocorre por exemplo na linguagem jurídica configurada como jogo de linguagem, também pressupõe um regimento por regras, bem como a linguagem no sentido alegado por Austin. É perceptível que Alexy pontua essas observações sobre a filosofia da linguagem em sua obra com a intenção de oferecer uma sustentação para as teorias meta-éticas a serem discutidas nas páginas seguintes do livro em questão.
Encaminhando-me para o final desse ensaio filosófico, proponho-me a refletir que a correspondência entre Alexy e Austin está para além de uma relação conceitual de semelhanças entre o direito e a filosofia, isso porque a filosofia da linguagem lança uma base sólida para a elaboração teórica sobre a normatividade. Pode-se chegar à conclusão de que a filosofia da
linguagem precede o próprio direito quando este se enquadra nas definições de linguagem jurídica. Alexy elabora um sistema de regras para o discurso racional e prático, para então desenvolver regras específicas para o discurso jurídico, tendo em vista um modelo dogmático de direito. Seus estudos jurídicos contextualizam sua teoria, mas é com a análise pragmática da perspectiva linguística e do discurso aplicado à linguagem normativa, que sua teoria sobre o direito se sustenta.
Em síntese, observa-se um regresso necessário à filosofia da linguagem no que tange à linguagem jurídica, não em razão de sua perda ou esquecimento em meio a outras temáticas sobre as quais os juristas e teóricos do direito se dedicam, mas sim por seu caráter imprescindível que fornece uma base racional para outras teorias que podem advir da teoria dos atos de fala e da teoria do discurso como um todo. Posto isso, é fundamental reiterar que a filosofia da linguagem exerce sua influência na resolução de conflitos que competem ao direito, de modo que a linguagem pode ser considerada um meio para solucioná-los, de forma a fazer jus aos termos da discussão que aqui se fez presente sobre a discursividade pragmática, que se
funcionaliza no cotidiano da vida ordinária, o que remonta à concretude das relações reais entre os sujeitos na sociedade civil e à contingência de problemas a serem resolvidos pelo direito, tendo como via e como fonte, a filosofia da linguagem.
Disciplina: Filosofia da Linguagem