Direito e moral na Teoria Geral do Direito e Marxismo, de Evgeni B. Pachukanis
É perceptível entre diversos juristas e teóricos do Direito, a recorrente discussão acerca da compreensão do Direito frente à moral. De igual maneira ocorre na obra de Pachukanis, na qual o autor dedica um capítulo para se debruçar nessa reflexão. Ao introduzir o sétimo capítulo, Pachukanis propõe a ideia de que para que os produtos do trabalho humano possam entrar em contato entre si como mercadorias agregadas de valor, os homens devem se comportar como pessoas mutuamente independentes, autônomas e iguais entre si, sendo que a igualdade será enfatizada em diversos pontos de seu texto enquanto um valor humano supremo. Para isso, vale-se de uma comparação entre o trabalho escravo e o trabalho animal,
posto que se assemelham na medida em que ambos não são criadores de valor, uma vez que um homem inferiorizado e condicionado a um trabalho degradante jamais poderia ter o mesmo valor daquele que produz tendo respeitado o grau de sua liberdade. Portanto, o entendimento de Pachukanis atravessa uma economia política que prioriza a igualdade nas
relações humanas de forma necessária, o que demonstra uma herança marxista traduzida pela contribuição de Marx ao relacionar o valor igualitário à forma mercantil enquanto equiparação prática do trabalho humano.
Adentrando em suas teorizações, Pachukanis concebe três concepções de homem, que são as máscaras que o indivíduo utiliza na sociedade mercantil, caracterizando os agentes de produção e troca no contexto de uma economia das relações de valor que leva à compreensão das faces moral e jurídica, a partir da manifestação da relação de valor em uma relação social necessária. Tais simulacros são os seguintes: o homem enquanto um sujeito moral, tido pelos seus semelhantes como iguais pela Lei do valor; o homem enquanto sujeito jurídico, em razão de ser o detentor de um dado bem, o qual pode ser usufruído por ele, ou então utilizado como produto passível de troca em uma relação comercial, típica da sociedade mercantil analisada pelo autor, em que a múltipla variedade de trabalhos humanos são reduzidos à materialidade do valor apresentado pelos produtos, de forma palpável e menos abstrata; e o homem enquanto um sujeito econômico egoísta, cuja vontade recai sobre as coisas materiais. Esses três tipos de indivíduo são por conseguinte, norteados por três princípios interligados que se consubstanciam em uma expressão racional de uma mesma relação social, devendo essa ser observada em sua integralidade. Os princípios são os seguintes: o egoísmo, a liberdade e o valor supremo da pessoa (a liberdade humana). A temática da igualdade é bastante frequente, de modo que o autor opta por realizar um apanhado histórico do termo, tecendo suas explicações contextualizadas desde a Grécia com os estoicos, passando para os juristas romanos, imersos em uma sociedade altamente escravocrata, mas que entendia o fenômeno da escravidão sob um prisma de dissociação entre o corpo e a alma, atravessando posteriormente os atributos morais legados da igreja cristã até a aparição do direito natural.
Karl Marx é o primeiro autor retomado por Pachukanis, cuja admiração se ilustra pelo questionamento de Marx sobre as causas históricas da desigualdade humana, sendo um divisor de águas na história do pensamento por ter sido o primeiro autor a se indagar sobre o assunto. Assim, Marx buscou uma explicação objetiva por trás do propagado discurso de incentivo à igualdade humana, ainda que para uma sociedade individualista e competitiva, esse discurso não fosse o mais favorável à classe burguesa, o que recai em sua conclusão que contrasta a ideologia com a verdade, estando a primeira no plano do dever ser, ao passo em que a verdade se concretiza no mundo físico e pode ter sua correspondência com uma ideia ontológica. Nisso se verifica uma brecha de possibilidade para acrescentar uma alusão kantiana acerca daquilo que é contra o que poderia ser, corporificada pelo imperativo categórico de Kant, que será melhor debatido adiante. É importante salientar dois conceitos mencionados: a noção de pessoa moral, que se trata do sujeito da sociedade de produção mercantil e a Lei moral, que é a fonte de regulação das relações entre os proprietários de mercadorias. Como será fixado por Kant a ideia de que a moral varia conforme as circunstâncias, Marx apregoa que a justiça está refém do tempo, de forma que o conceito ganha significado a partir das relações de troca, não sendo ele portanto absoluto. Marx também faz projeções acerca do homem do futuro, que é definido pelo autor como o indivíduo que se funde no coletivo, com a vitória do comunismo, a libertação completa do homem e o fim das relações jurídicas privadas, o que exige no plano fático a criação de uma nova base econômica, não apenas ideológica, subsistindo o homem moral atrelado a sua função do dever. Em seu otimismo, Marx salienta inclusive que o proletário e o capitalista podem se considerar iguais em princípio, em decorrência do contrato de trabalho que os une. Sabe-se, no entanto, que esse entendimento incide em um problema material e em última instância ético. É inegável, porém, que a ética racionalista da sociedade de produção mercantil mostrou-se uma conquista civilizacional e um valor cultural.
Ainda que Kant possa ser estudado como um pensador liberal quando comparado com Marx, Pachukanis não deixou de transplantar válidos conceitos da teoria kantiana para o enriquecimento teórico de sua própria filosofia. Uma das máximas de Kant se refere ao imperativo categórico, visualizado como um ente supra-individual, isto é, para além de toda experiência humana, de modo a atuar universalmente. Isso posto, observa-se que a obrigação moral somente pode ser entendida a partir de uma perspectiva apartada das relações afetivas humanas, uma vez que o imperativo categórico se situa para além de qualquer empiria ou condição relacionada ao plano do ser humano. É válido ressaltar que em um entendimento de ética aplicada ao contexto, Kant chama a atenção para determinadas ações que estão fora da ética conforme o pensamento burguês. Um exemplo citado pelo autor é a irracionalidade de deslocar a coletividade para acima do indivíduo, o que é típico de uma sociedade tradicional conformada com seus estamentos e não compatível com uma sociedade burguesa que opera
de maneira individualizada. Vários termos frequentemente mencionados por Pachukanis, como “moral”, “direito” e “Estado” só devem ser compreendidos conforme o contexto, que no caso, assumem as formas da organização burguesa. É possível inferir que o universalismo ético culmina no universalismo jurídico, o que proporciona uma padronização criticada pelo
autor em certa medida, posto que ao se entender que todos os homens atuam em uma universalidade igualitária, todos possuem a mesma alma e não haveria maiores distinções no que tange aos estrangeiros, mas sim uma rejeição dos próprios costumes ao se desmantelar a barreira que separa ius gentium de ius civile. Em síntese, persiste a compreensão do cumprimento livre do dever moral, sendo esse guiado pelo princípio da utilidade, que abrange a simplicidade e a racionalidade. Ademais, o próprio interesse pessoal se torna o interesse da classe por meio da construção de um vínculo de identidade que perpassa a solidariedade entre os semelhantes. Ou seja, a universalidade de classe retoma a universalidade kantiana, com a via de conduta entre a ética e o direito estando representada pela justiça.
A centralidade da revisitação a Kant está na distinção entre a exigência moral e a exigência jurídica. Ao se falar em conduta moral, a expressão se refere a uma realização livre e ampla em prol de um “dever ser” (um ideal de direito), sendo uma exigência oriunda do interior do próprio sujeito com um fim em si mesma e por isso, relacionada ao imperativo categórico kantiano. Em contrapartida, a obrigação jurídica não está encerrada em si mesma, mas sim em um meio para atingir um fim ao qual se dispõe a encontrar: a justiça. Portanto, poderia se falar em um imperativo hipotético no qual o direito pode ser obtido pela força e não está livre de interesses, uma vez que é exterior, está submetido à coação externa do Estado e assim caracterizado como prescritivo. Outra aparição do imperativo categórico se dá pela circulação de mercadorias, evento no qual os agentes reconhecem-se mutuamente como proprietários, nas palavras de Pachukanis. Por fim, o autor examina algumas contradições: entre o direito e a moral, entre Estado e direito, entre individual e social, e entre público e privado, de modo a concluir o capítulo com a provocação de que essas contradições se sustentam pelas relações reais entre os homens. Pude inferir após a leitura de uma parte de sua obra, que se o direito consiste em um mínimo ético, e se a ética por sua vez, consiste em um mínimo social, como é colocado por Pachukanis de modo a referenciar Schopenhauer, o mínimo social por sua vez, está intrinsecamente vinculado ao direito e deve se efetivar por meio dele, compreendendo-se uma atuação jurídica que possibilite o garantismo jurídico na modificação dos quadros de justiça social, bem como a concretização das mais dignas aspirações levantadas pela ética.
Disciplina: Teoria do Direito II