Pré-modernidade jurídica
A pré-modernidade se caracteriza por um período de transição entre a baixa Idade Média e a Modernidade, consistindo na mudança de paradigma simultaneamente a relevantes permanências. Sob o ponto de vista jurídico, nota-se como um exemplo de continuidade histórica, a passagem do ius commune para o iura propria, contendo resquícios de um direito generalizante que prevaleceu durante o medievo. Na minha percepção, houve uma ruptura política, visto que as estruturas de organização da sociedade se modificaram, mas observa-se uma continuidade jurídica, uma vez que inicialmente o direito voltado ao indivíduo não se firmou em sua totalidade. Além disso, o contexto exigiu uma maior centralização do direito diante das fragmentações em território europeu que diminuem o pluralismo jurídico e passam a visualizar o direito como um instrumento. Um acontecimento que atraiu minha atenção é a persistência de estruturas do direito canônico apropriadas pelo secularismo de um novo tempo, o que abriu espaço para a criação de um órgão análogo ao ministério público, representando um maior protagonismo do Estado.
A leitura do capítulo “justiça como lei ou lei como justiça?” da obra Mitologias jurídicas da modernidade, do jurista Paolo Grossi, provoca um questionamento que na minha opinião, propõe o sentido da lei como um meio para a efetivação da justiça no primeiro caso, enquanto que no segundo, a justiça se imprime como uma finalidade que a lei almeja alcançar. Para estabelecer uma conexão entre esses termos indicados na indagação anterior, é possível observar que os conceitos de direito e justiça são vistos pelo senso comum a partir de um significado distinto, sendo que o primeiro costuma vincular-se a uma ideia abstrata e estática de lei, enquadrada como uma autoridade incontestável, o que promove um distanciamento dos reais princípios de existência de uma ordem. É curioso se pensar a recorrente associação entre direito e justiça, especialmente entre os alunos ingressantes do curso de Direito. Entretanto, convém ressaltar que apesar de a justiça implicar um objetivo da lei, o autor afirma que ela não é sinônima ao ordenamento jurídico em seu sentido específico, e é fundamental compreender o direito como acepção muito mais vasta que a lei em si.
Para além de uma tentativa de harmonização do antigo regime com a nova realidade por meio do particularismo, se percebe um embate entre a opinião comum baseada no Digesto, e a boa razão, que funda um distanciamento do direito canônico e uma ressignificação do direito natural, em uma conjuntura em que a vontade da lei passa a ser personificada pelo monarca, o que inicia uma tradição de verticalização das relações em meio a um direito rústico de costumes que vigora entre o povo. Em relação à instituição católica, que exercia supremacia na época medieval, pode-se perceber um movimento de segunda escolástica, que revê o humanismo cristão, tendo em Francisco de Vitória um de seus precursores.
É nesse momento que surge o embrião do direito internacional em um período de conflitos externos, em que se verificam o ius peregrinandi, referente à peregrinação e o ius communicatione. Em relação a essa nova vertente jurídica que passa a surgir, pude estabelecer uma conexão com a fortaleza de São José da Ponta Grossa, localizada ao norte de Florianópolis, cuja história é permeada por uma disputa político-territorial entre as duas potências ibéricas de Portugal e Espanha, em uma renovação do Tratado de Tordesilhas que passa a ser substituído pelo Tratado de Madri no que toca à distribuição de terras da colônia na América.
Ainda no que se relaciona às guerras, a temática da escravidão proporciona uma reflexão com uma novidade sobre essa questão: a adição dos escravos nas ordenações filipinas, que são um exemplo de iura propria e incluem a submissão dos “filhos da terra” a um estatuto pessoal. O assunto da escravidão moderna insere como justificativa a noção racial que implica diferenças de tradição jurídica no decorrer do tempo e nos diferentes lugares em que ela foi implantada. Essa discussão é fundamental em meio às infelizes ocorrências de ordem discriminatória que se verificaram no CCJ da Universidade Federal de Santa Catarina, no segundo semestre de 2022, cuja apologia à violência reitera o apoio a movimentos do passado que ainda hoje reverberam. Nesse sentido, a compreensão histórica de um momento de transição com suas variações, é imprescindível para a formação intelectual, mas também humana em seu senso de realidade.
Disciplina: História do Direito