Fichamento: O que faz o brasil, Brasil?
A obra “O que faz o brasil, Brasil”, de Roberto da Matta, já inicia em seu título com um questionamento provocativo que se desenrola ao longo do texto enquanto uma explicação sociológica de caráter interdisciplinar, o que apresenta um amplo campo de aprofundamento teórico que se efetiva na prática e que leva os leitores a compreenderem com maior embasamento os aspectos que formam a sociedade com sua respectiva cultura.
Qual é o fator em comum que nos identifica como brasileiros? Essa e muitas questões relacionadas ao pertencimento a um povo, permeiam a noção humana enquanto detentora de hábitos, costumes e pensamentos específicos, reflexo de uma cultura própria, mas que dialoga com muitas outras em sua formação. Nesse ínterim, o autor inicia sua obra de cunho antropológico buscando tratar sobre a identidade do povo brasileiro. Para isso, desmistifica o criativo título de seu livro ao diferenciar “brasil” enquanto mercadoria e visão europeia, e o “Brasil” enquanto um amálgama vivo e diverso que construiu a nossa história. Roberto da Matta retrata seu contexto com um toque de subjetividade ao voltar-se aos povos primitivos com a subserviência de quem recebeu uma prestigiosa herança, e cultua o solo brasileiro como um local sagrado dotado de um potencial inquebrantável. Concordo com o autor a respeito do estudo das sociedades a partir de sua produção própria e advinda de diversas ramificações, não somente a sua restrição às fontes oficiais, visto que conforme a palavras de Da Matta, o Brasil está em toda parte e em cada gesto na simples complexidade do povo.
Ao analisar a formação de nossa pátria, faz-se necessário desfragmentar o Brasil e visualizá-lo sob um ponto de vista universal que contemple suas singularidades, tendo como rumo a perspectiva histórica. Ao afirmar que o homem é um ser particular e se diferencia dos animais devido à sua racionalidade, possibilidade de se questionar e se identificar, pude fazer
uma analogia com a máxima socrática “Conhece-te a ti mesmo e conhecerás os deuses e o universo”.
Roberto da Matta instiga o pensamento sobre nossa própria condição enquanto autointitulados brasileiros. Um ponto que atraiu minha atenção é que conforme o autor, aquilo que define o brasileiro enquanto tal e de forma concreta, é a sua liberdade de assim o ser, somente ser e entender-se em sua realidade. Apesar das diversas problemáticas sociais que o
país enfrenta, torna-se evidente a posição esperançosa que Da Matta propõe reavivar, analisando os aspectos positivos da nação e enfatizando-os em detrimento das mazelas, por meio da metáfora de uma moeda de duas faces.
Adiante, o autor analisa minuciosamente o cotidiano de um perfil brasileiro, desenhando um cenário composto pela agilidade da rua em detrimento do mundo da casa, de caráter individual e sereno, dotada de ancestralidade e tradições, o que a caracteriza como pessoa moral. Da Matta se utiliza da metáfora sobre o conceito de fronteira, de cunho público,
transpondo-o para o meio familiar e único, o que auxilia na comparação entre os dois ambientes e a verificação dos elementos em comum. A harmonia e o amor que reinam no lar me remetem ao pensamento aristotélico, posto que esse filósofo analisou a sociedade grega de seu tempo, mas identificou o lado privado da vida, a partir da qual teorizou sobre a economia, advinda do grego “oikos”, que se refere à boa administração do lar. Em contraste, a rua é espaço de resistência em que as relações se tornam mais rígidas, é sobretudo, um reflexo da crueldade da vida e uma outra forma de interpretar a realidade, em que se modificam as relações de trabalho, de autoridade e inclusive de tempo.
“O Brasil é um inferno para os negros, um purgatório para os brancos e um paraíso para os mulatos”. É com essa frase polêmica que o autor inicia o capítulo sobre a ilusão das relações raciais e a utiliza como ponto de partida para sua reflexão nitidamente sociológica acerca do viés negativo que a ideia de miscigenação apresentava aos europeus brancos, em um grotesco exemplo de racismo hierarquizado defendido por outros autores, como Gobineau. Contudo, o autor argumenta que a frase de Antonil é simples e guarda uma relação normal entre os representantes de cada classe. Uma de suas conclusões é um preconceito que está além da cor da pele e se insere na origem étnica do indivíduo, demonstrando uma complexificação da discriminação e uma afronta ao próprio princípio de alteridade estudado nas aulas de antropologia jurídica. Uma expressão-chave na qual suas palavras desembocam é “democracia racial”, que imediatamente me lembrou do pensamento de Gilberto Freyre em “Casa Grande e Senzala”. Quanto a isso, pode-se dizer então que ela somente se concretizará a partir de uma verdadeira e contundente presença de uma igualdade prática.
É bastante curioso de se pensar a formação do Brasil a partir da gastronomia da mistura refletida na diversidade e miscigenação do povo, bem como na presença do elemento feminino, comparado ao sabor da doçura. Em suas divagações, o autor centraliza o aspecto cru e o cozido dos alimentos enquanto moldadores simbólicos de um povo relacionados ao plano gustativo. Além disso, o autor diferencia termos considerados sinônimos, como alimento e comida, comparando-os às tradições de outros países. Muitas de nossas expressões idiomáticas possuem sua origem na cultura alimentar, recheada de metáforas comuns ao dia a dia do brasileiro, demonstrando suas relações pessoais e sociais.
As comemorações, festas e rituais são atos singulares de cada cultura, mas ao mesmo tempo universais, uma vez que as sociedades celebram suas tradições e orgulham-se delas na medida em que constroem memórias. Sendo acontecimentos apartados da rotina, tais rituais renovam nossos pensamentos e acendem fagulhas de esperança. Diferentemente do dia a dia das obrigações, os fatos extraordinários e dignos de comemoração abrangem um lado emocional da perspectiva humana e permitem o desenvolvimento da solidariedade entre os homens. No caso do Brasil, a mais marcante festa constitui o carnaval com toda a sua energia e seus excessos convidativos que combinam com o espírito do brasileiro, visto quase como
uma inversão do mundo e um deslocamento da realidade que possibilita uma magia momentânea e libertária a todos.
Ainda falando em festas, não se pode esquecer da relação que elas estabelecem com as múltiplas religiões que se desenvolveram no Brasil e ganharam contornos próximos às crenças mais fundamentais do povo ligadas às raízes africanas aqui fincadas. Por outro lado, contudo, verifica-se a predominância do catolicismo enquanto uma religião que pressupõe
hierarquias e se assemelha à estrutura social brasileira em uma metáfora de “festa da ordem”. O autor evoca um grande nome da sociologia: Émile Durkheim, com o intuito de analisar os ritos frente o dia a dia da sociedade e seu impacto na vida humana e na construção da subjetividade de cada um, em um ritmo próprio, mas que os centraliza e os socializa enquanto
homens em convivência.
Adiante, da Matta discorre sobre o “jeitinho” brasileiro, que diz respeito à uma malandragem comum nas relações entre os sujeitos, e entre o ser e a lei que o rege socialmente, se expressando, sobretudo, nas regras básicas de convivência do dia a dia, onde verdadeiramente se manifesta a índole do brasileiro frente à uma proibição ou autorização. Ou seja, nossos típicos formalismos são frequentemente incompatíveis com as condutas individuais, que em certa medida, condiz com a originalidade do brasileiro e um possível modo de ser e de pensar.
Por fim, o autor lança uma projeção transcendental repleta de válidas reflexões acerca dos caminhos para se chegar a Deus, seja de modo introspectivo ou coletivo. Não se pode falar no Brasil sem sua inabalável esperança em uma vida no além, onde a justiça é de fato aplicada pela autoridade divina, ainda que o país seja tão diverso em suas crenças e concepções. O
respeito, para além de qualquer convicção religiosa deve prevalecer, sendo o autêntico elemento sagrado que deve ser exercido por todos.
Concluo essa síntese pessoal acerca da obra, reiterando meu apreço pelas necessárias e criativas palavras de Roberto da Matta, que persistem e persistirão atuais enquanto nos identificarmos enquanto nação, povo e cultura, dotados de uma identidade que nos une. A leitura foi muito agregadora aos meus conhecimentos e proporcionou reflexões profundas que
ao mesmo tempo, podem ser vistas de forma nítida no cotidiano brasileiro.
Disciplina: Antropologia Jurídica