Resenha crítica: Fundamentos do Direito
O direito moderno é permeado por uma série de detalhes que o diferencia de tradições jurídicas anteriores e que sustentam uma compreensão de direito pertencente a um sistema de leis humanas cujas bases ainda se verificam nos dias contemporâneos. Escrito pelo jurista francês Léon Duguit, o livro “Fundamentos do Direito”, traça um panorama do direito moderno no contexto da recente revolução francesa de caráter burguês que se presenciou no país em que o autor escreve e que culminou em uma inovação de valores no campo jurídico-social. A obra é escrita em capítulos curtos, mas ricos em conceitos fundamentais para a compreensão do direito, o que permite uma leitura dinâmica, vinculando as ideias do autor com reflexões pessoais que enriquecem o conhecimento jurídico.
Antes de adentrar na essência daquilo que sua obra propõe explorar, que como exposto no título, diz respeito aos fundamentos do direito, Léon Duguit traz uma breve definição do termo “direito” e o subdivide para a melhor compreensão dos leitores, cuja maioria pressuponho ser estudante das fases iniciais do curso de direito, em razão da linguagem acessível e pouco prolixa utilizada pelo autor, sem tantos tecnicismos jurídicos que a dogmática impõe, o que facilita o entendimento dos iniciantes no mundo jurídico. Essa divisão separa o direito objetivo, que se pauta na regulamentação da vida comum em um forte apelo ao direito positivado e que prevê sanções na ocasião de seu descumprimento, do direito subjetivo, muito mais relacionado à efetivação dos direitos previstos ao indivíduo e consequentemente, à capacidade de ação do homem dentro dos limites que a lei objetiva obriga.
Sob uma percepção pessoal, apesar das nítidas diferenças, o direito subjetivo carrega semelhanças advindas do direito natural, que se expressa por leis da razão e não obriga o indivíduo in foro externo, somente em consciência, em razão do caráter mais introspectivo desse direito, com a real manifestação das leis da natureza somadas à reação diante das leis e às deliberações próprias até a fronteira em que a lei do Estado se faz presente em concretude e se torna superior à vontade do ser humano. Paralelamente a isso, pode-se pensar na importância da aplicação da lei, que ocorre subjetivamente no sentido de autorizar ou impedir, aliada às normas determinantes.
Uma provocação feita por Duguit é um questionamento que incita a imaginação a respeito da hipótese de uma sociedade ser detentora do direito, ainda que não possua leis instituídas ou uma autoridade política. Antes de prosseguir a leitura para constatar a conclusão do autor, pude inferir que sim, visto que a complexidade e a amplidão do direito em si, são superiores em muito, quando se compara com as leis ou qualquer outro aparato jurídico. Tal análise pessoal pôde ser melhor fundamentada com os esclarecimentos seguintes do autor, identificando a prescindibilidade do Estado no que toca a existência do direito. Por uma perspectiva antropológica, pode-se pensar em sociedades que não vivem sob um sistema formal de leis, mas que possuem um código de conduta determinado por tradições particulares baseadas na oralidade e na memória transmitida a cada geração, fundindo o direito à sua cultura e história. Outro ponto a se destacar é que o Estado que hoje se conhece, se instaurou a partir da modernidade, o que não significa a ausência do direito em períodos anteriores, como a idade média e a antiguidade.
No entanto, o autor cita exemplos de pensadores que defenderam a necessidade de um Estado para solidificar e somente assim, permitir a verdadeira expressão do direito, como Ihering, com contribuições importantes ao mundo jurídico, e Hegel, cuja influência teórica atravessou uma linhagem de filósofos, com destaque especial à Marx no que tange à sua dialética. Duguit, todavia, discorda dessa intrincada dependência entre Estado e direito, utilizando-se de um argumento que reforça a soberania da lei, tanto ao representante do poder político, quanto aos sujeitos a ele submetidos, o que demonstra um princípio de igualdade jurídica, no qual a lei exerce sua supremacia. Essa ideia dialoga, em meu entendimento, com a tradição liberal do contratualismo, personificada por John Locke, em razão da compreensão desse pensador acerca da possibilidade de dissolução do Estado caso o legislativo seja adulterado ou então, caso o monarca se imponha acima da lei válida para todos.
O aprofundamento da temática direito-Estado recai em visões diversas que se resumem em duas correntes: as doutrinas do direito individual e as doutrinas do direito social. Sobre ambas, pode-se mencionar um fator em comum, que é o nascimento do homem com direitos naturais já inerentes a ele, de caráter individual. Para as duas linhas de pensamento, o homem surge como ser livre e apto a desenvolver os resultados de sua liberdade. Para que isso se efetive, é necessário o respeito do outro frente às liberdades de cada um, de maneira recíproca. E é nesse contexto que se tornam explícitos os ideais de obrigação e regra geral, que caracterizam o direito.
Léon Duguit apresenta meticulosamente o raciocínio que orienta a doutrina do direito natural, expondo tanto um direito assegurado aos indivíduos quanto um dever por parte dos mesmos. Retomando conceitos inicialmente discutidos, observa-se na frase anterior, um claro exemplo da aparição do direito subjetivo como ponto de partida para o direito objetivo, no sentido de existir direitos que serão plenamente garantidos somente com a aplicação objetivada do direito por meio de uma lei comum. Ao trazer novamente à tona o pensamento contratualista, sinalizo uma comparação com Thomas Hobbes, sobre direitos e obrigações como via única, estudado na disciplina de Teoria do Direito. Para esse pensador inglês, os seres humanos são dotados de paixões que os impedem de olhar para o fenômeno com ênfase nos direitos assegurados. Ao invés disso, percebem como um fardo as exigências que lhes competem. Para Hobbes, falta aos homens uma visão por lentes prospectivas, que permitam avistar um horizonte mais amplo, no qual reine a segurança em detrimento da barbárie de um mundo sem regulamentações.
Retornando à obra em questão, Duguit aponta a igualdade como um valor decisivo na doutrina do direito individual, posto que apesar das aparentes diferenças entre os homens, todos são iguais em essência, ou seja, em seus direitos e limitações. A igualdade em si, não é tida como um direito propriamente dito, mas é ela que contribui para que os direitos sejam aplicados, visto que se insere na base da fundamentação jurídica, assim como outros ideais. Na contrapartida dessa doutrina, se localiza o universalismo da lei, que visa à padronização dos sistemas jurídicos de todas as civilizações, o que em minha compreensão, conduz à perda de elementos singulares de um dado povo, o que diminui a riqueza cultural da diferença harmônica entre os complexos normativos. A tendência dessa unificação é natural, principalmente entre aqueles que possuem valores muito próximos. Nesse ínterim, pode-se pensar no trabalho dos juristas e legisladores já pertencentes a uma tradição, que a partir de então, buscam adaptar-se às novas realidades que caminham rumo a um ideal comum compartilhado.
A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, é citada por Duguit como uma forma concreta que retira a teoria do direito individual de sua abstração. Esse documento, fruto de uma revolução burguesa, reitera o ideal de igualdade cultivado entre os apoiadores dessa tradição individual, bem como o apreço pela liberdade, localizado na estrutura do corpo social. Ademais, a declaração reafirma a preservação dos direitos do ser humano como responsabilidade da sociedade civil, o que para mim, é análogo à tentativa de Hobbes de superação do estado de natureza em busca da paz e da ordem, tendo a lei como fim último, garantindo a conservação da vida e a integridade física de todos. Outro ponto que traça paralelos com o contrato social é o artigo da declaração francesa de que “o exercício dos direitos naturais de cada homem só tem por limites os que asseguram aos outros membros da sociedade o gozo desses mesmos direitos”. Para além dos direitos e pontuando as obrigações, em outras palavras essa passagem pode se manifestar como o fato de que cada pessoa não deve se submeter ao arbítrio de outrem, mas sim somente àquilo que subordina a todos, o que corresponde à visão de Kant sobre a passagem para a sociedade, que se ergue como um defensor da liberdade e célebre precursor do pensamento moderno, herdeiro dos ideais trazidos pelas revoluções. Na contemporaneidade, cabe ressaltar a vasta contribuição dessa doutrina para os códigos que hoje vigoram e para a fixação de limites ao poder estatal.
Certamente, o pensamento tratado acima encontrou oposições, cujo principal argumento é o fato de não estar embasado na concretude, e sim em uma ideia hipotética, uma vez que o homem é visto destituído de preceitos morais ao não estabelecer vínculos com os outros, vivendo isoladamente em sua introspecção e em seus direitos naturais. Entretanto, essa noção de ser humano não condiz com o que realmente ocorre, visto que conexões com os outros necessariamente são estabelecidas. Concordo com a frase de Aristóteles de que o homem é um animal político, e que cabe nesse contexto, pois uma vida sozinha não lhe oportuniza a agregação de conhecimentos nem a segurança que a sociedade civilizada pode oferecer. Nesse ponto, pode-se interpretar uma sutil consideração do autor: a de que o Estado não é o ente necessário para a elaboração do direito, mas sim a sociedade, visto que em última instância, o direito está vinculado às relações humanas que somente se efetivam em coletividade.
Duguit desmistifica uma máxima memorável da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 ao não compactuar com a ideia de que os seres humanos nascem livres e iguais em direitos. Sua justificativa é que os sujeitos nascem em um meio social que condiciona tal liberdade e igualdade jurídica. Outra crítica feita à doutrina individualista é o idealismo da igualdade total entre os homens, que não se realiza devido às diferenças naturais existentes, o que consecutivamente reflete no nível da igualdade legal em relação aos particularismos de cada um. Isso posto, os sujeitos de direito não podem ser reduzidos a uma concepção meramente geométrica, já que a própria ciência jurídica pressupõe graus de humanidade. Cientificamente, empregando métodos empíricos de estudo, a doutrina no direito individual é de difícil análise em razão de seus idealismos e de sua relatividade, volatilidade e de seu aspecto mais pautado na essência humana.
De uma forma muito mais resumida, as doutrinas do direito social têm a sociedade como enfoque, não o indivíduo, retratando um direito objetivo anterior ao subjetivo e realçando a norma, a partir da qual os direitos individuais podem se estabelecer. Para essa doutrina, o ser humano vive socialmente, o que implica a submissão a uma ordem válida para todos os demais, sendo os direitos provenientes dos deveres em comum. O autor alega que essa linha teórica poderia ser caracterizada como socialista, mas a insuficiência em sua fundamentação criou uma lacuna que dificultou minha compreensão imediata do motivo pelo qual a doutrina social merece tal rótulo, visto que social e socialista são conceitos distintos. Relendo o trecho, pude concluir, portanto, que no contexto histórico em que o livro foi escrito, a diferença entre os termos não era tão aparente.
Mas é inegável o panorama histórico feito pelo autor em seu trabalho. Ainda tratando sobre a doutrina do direito social, Duguit salienta a convulsão da sociedade em face de revoluções que buscam o fim da propriedade privada defendida pela burguesia atuante e pelos teóricos da linha individualista. Se observa uma forte tendência à expressão do direito social em tempos estáveis, diante das certezas transmitidas que oferecem segurança em contraste com a outra linha teórica, que emerge com a maior valorização do indivíduo e de suas vontades. Após delinear os atributos do direito social e do individual, posso afirmar que a doutrina do direito social é a mais compatível com o que eu entendo por manifestação do fenômeno jurídico, visto que insere a coletividade acima da pessoalidade, o que garante ao direito um desígnio mais comunitário e abrangente, acima de qualquer interesse próprio.
Esse modo de vida em sociedade enquanto um fato primitivo, no qual o ser humano já nasce sob um sistema de costumes e valores, não retira de cada indivíduo sua consciência de que existe particularmente no mundo. No entanto, o ser somente se realiza a partir de um outro semelhante na vida coletiva, tecendo constantemente laços de solidariedade que criam elos entre os homens. Estando presentes nas formas mais variadas de agrupamento humano, essas relações enfrentam desafios ligados aos conflitos existentes entre os povos. Ou seja, a solidariedade é universal internamente, ao criar vínculos em um espaço comum de dada sociedade, ao passo em que se universaliza externamente pelo fato de estar presente em toda humanidade. Discorrer sobre laços de solidariedade também diz respeito à identificação da pessoa com um grupo e ao sentimento de pertencimento a ele. Como exemplos, pode-se citar as famílias, a nação, o idioma, a cultura e a religião.
Entre os fatores que incentivam a vida em sociedade, estão as necessidades humanas que são supridas pela vida coletiva, muitas vezes respaldadas pela busca de algo em comum que os une, o que pode gerar semelhança, mas também a competição; e as trocas recíprocas conforme as qualidades de cada um em suas contribuições para a manutenção da ordem social, em um princípio de divisão do trabalho. A consumação desses dois tipos de solidariedade varia de acordo com o tempo e o lugar, e é concernente de forma direta com as relações entre os indivíduos, bem como o progresso de um povo em fortalecer seus laços, cuja forma mais comum é pela recorrente especificidade do trabalho, amplamente teorizada e discutida por Durkheim.
Duguit descreve atentamente o plano social da solidariedade entre os homens, como uma introdução à análise do elemento jurídico nesse enquadramento, que se centraliza nas normas de conduta, com o intuito de preservar os laços solidários por um princípio de direito objetivo e positivado. É curiosa a reflexão que o autor induz aos seus leitores ao afirmar que a ética do direito se apresenta socialmente a partir das relações que os indivíduos estabelecem entre si, e que por isso devem ser regulamentadas para uma boa convivência, mas ao mesmo tempo, parte de uma premissa individual de direito internalizado no ser humano, dotado de racionalidade, visto que se manifesta em sua consciência. Contudo, o ideal absoluto de igualdade é novamente rechaçado tendo em vista as diferenças de cada um, visto que a participação social não se dá para todos do mesmo modo, o que induz à conclusão de que a manifestação do direito enquanto regimento maior, também sofre alterações de indivíduo para indivíduo, ainda que a regra geral do direito não mude e valha igualmente para todos na medida de suas diferenças.
Apesar de variáveis, há pontos em comum nas sociedades, como a solidariedade e a tendência à divisão de tarefas, o que indica a permanência da essência regulamentadora do direito, estando este em certo ponto refém das mudanças sociais que os novos paradigmas de solidariedade porventura acarretam. Dessa forma, a estrutura da sociedade é uma das definidoras da juridicidade da norma. É a partir de tal característica do direito, que é facilmente observável a dessemelhança com o direito natural, de viés mais absoluto. O exercício de seus deveres incide por outro lado, na obtenção de seus direitos no âmbito da solidariedade social, tendo como destaque, o direito a ser livre, o que me leva à compreensão de que tal direito apresenta vantagens para a vida em sociedade e contribui para a união estável dos seres humanos, além de ser acrescido de deveres anteriores à liberdade conferida. Já o direito à propriedade está atrelado à liberdade pelo fato de os homens possuírem a faculdade, ou seja, o livre arbítrio de alcançar meios para melhor adquirir seus bens, a fim de que com isso, tenham um propósito social maior.
Embora haja uma diferenciação conceitual entre direito e autoridade política, se observa a organização jurídica hierárquica de inúmeras sociedades, imbuídas de níveis de poder e do monopólio da força. A noção de Estado compreende o poder de mando por parte dos governantes, advinda de uma linhagem primitiva referente ao desenvolvimento da superioridade com o passar do tempo, e que até os dias atuais se faz presente. O Estado se define precisamente por essa desigualdade de poder que uma autoridade política estabelece. A legitimidade desse poder político é sob meu ponto de vista, questionável, principalmente no uso da força pelas autoridades contra os cidadãos, sendo que o poder de mando do governante é concedido por eles. A resposta exata do autor para essa dúvida é incompleta, visto que a temática do poder é até hoje discutida, sem um consenso preciso.
Nesse âmbito, surgem duas doutrinas que buscam se aprofundar no assunto do poder político, sendo a primeira delas, a doutrina teocrática, cuja concessão de poder ao rei é advinda de uma vontade superior e divina. A partir dessa justificativa ao poder, pode-se estabelecer conexões com o filme assistido em sala na aula de teoria política: A rainha Margot, visto que o momento histórico cuja trama se desenrola é a transição para a modernidade, com o surgimento dos Estados, o que indica a permanência do direito divino personificado no soberano, considerado a voz sublime na Terra. Nessa doutrina há uma subdivisão entre doutrina do direito divino sobrenatural, com centro em Deus, e doutrina do direito divino providencial, relacionada às vontades humanas a partir do direito supremo. Ou seja, ambas as doutrinas enfatizam uma noção transcendental do poder político, ainda que se expressem de formas diferentes, o que indica uma incompletude científica nelas existente. Outra relação que se estabelece entre os ramos dessa doutrina é a ideia de poder moderador, ausente no direito divino natural, de faces mais absolutistas, e possível de se manifestar no direito divino providencial, que prevê outros atores do poder além de Deus, inclusive limitadores da vontade do representante político.
Por outro lado, se erguem as doutrinas democráticas, que afirmam a origem do poder na sociedade e sujeitam-se a esse poder político nela originado a partir da vontade coletiva. Ou seja, foi por meio do consentimento social que o poder é fundamentado. Essa concepção de consentimento já foi explorada por pensadores do contrato social, que muito contribuíram com o desenvolvimento da doutrina democrática: Hobbes e Rousseau, visto que Hobbes defende a ideia de submissão ao poder soberano sem a possibilidade de dissolvê-lo, visto que esse poder é formado pelos súditos, os autores do contrato. Já Rousseau visualiza uma ideia de vontade geral expressa pela lei, considerada a soberana, demonstrando a contradição ao afrontá-la ou ao seu representante.
Assim como foi anteriormente discorrido acerca da teoria do direito individual, em relação às críticas formuladas contra ele, as doutrinas democráticas também encontraram oposições, principalmente na discussão sobre a soberania e sua proveniência. Nessa parte do livro, até mesmo Léon Duguit tece críticas sobre teorias apresentadas por ele em outros momentos da obra, passando a questionar o contratualismo, o que ao meu ver não é uma conduta contraditória por parte do autor, mas sim outro ângulo de análise do mesmo objeto. O embate entre a vontade coletiva e a individual é focalizado, bem como o panorama quantitativo da minoria que exerce seu poder de mando e submete a maioria a uma suposta vontade geral emanada pelo povo. Duguit se dirige mais além em sua crítica, afirmando de forma declarada a inutilidade do princípio de soberania nacional, com argumentos à altura de sua investida.
Para Duguit, Rousseau se perde em suas teorizações sobre a vontade geral e a vontade da maioria, ao alegar que a diferença entre elas é incompreensível e não se efetiva em práxis. Nisso se observa claramente o estigma de Duguit com as ideias abstratas dos filósofos contratualistas. Por conseguinte, a teoria sobre o poder soberano se encontra muito mistificada em razão de que os homens não participam concretamente de sua execução, visto que não é por eles exercido, apenas concedido e realizável pelo sufrágio. Ou seja, o autor propõe um olhar historicista e pautado nas relações cotidianas de uma sociedade concreta. Contudo, a reação do povo que reivindicou a delimitação do poder monárquico desembocou em uma submissão da mesma espécie, com a diferença de que o poder é operado pelo povo, o que não o isenta de inaugurar um despotismo pela via revolucionária.
Outra forte característica que torna o pensamento de Léon Duguit inconfundível é seu arsenal teórico nos campos da antropologia e da sociologia, embasado de uma lógica evolucionista local. Essa concepção se verifica na abertura do capítulo em que o autor discorre sobre a formação natural do Estado, em que Duguit aponta a evolução social do poder político. E em toda sociedade se faz presente um sujeito dotado de uma força, que pode ser religiosa, cultural, econômica ou moral, a fim de subjugar os demais a seus caprichos da vontade. O autor não identifica a supremacia única da economia sobre a política, embora ressalte seu papel fundamental.
Diversas foram as vezes em que um terceiro elemento de ordem ética foi colocado como justificativa às atrocidades cometidas, como o exemplo citado pelo autor: a religião, a partir da qual os governantes incorporaram figuras divinas na Terra e agiram teocraticamente em seu nome. Na atualidade, contudo, a soberania passa a se concretizar na própria vontade do povo, que fornece a vontade geral para um bom governo, como discutido por Rousseau em sua compreensão sobre o direito. O conjunto de leis positivas que ordenam a sociedade contemporânea são apartados do elemento religioso declarado, ainda que possam trazer consigo os resquícios morais de tempos anteriores. Mais uma vez, a diferença de nível entre os governantes e governados retrata a condição básica para o erguimento de uma sociedade política, que se estabelece a partir de uma autoridade e de seus autorizados.
É muito comum ouvir falar que o Estado detém o monopólio da força e da legislação. Contudo, o verdadeiro entendimento dessa máxima se aprofunda no uso que o representante do Estado faz do direito e como a cada afronta é aplicada uma sanção correspondente. Desse modo, o uso do poder político é legítimo quando tem por base fazer valer o direito, ou seja, a coerção com respaldo na lei. Nessa passagem, se visualiza uma conexão feita pelo autor entre o poder político e o direito, o que me remete ao Nomos da Terra, de Carl Schmitt, visto que o ato político de apropriação da terra pela força é anterior à divisão e à distribuição do território tomado, o que diz respeito ao direito, inserindo-se em um espaço delimitado no qual a vida político-jurídica se expressa.
Conclui-se que a finalidade do Estado é assegurar o direito, não o poder político mediante a força. Tal força pode ser, no entanto, instrumentalizada para que o fim último do Estado se efetive. Com isso, Duguit assinala três funções do Estado: a legislativa, que concerne à elaboração de leis como manifestação do direito objetivo; a função jurisdicional que reflete a conduta do Estado diante de transgressões à lei, contribuindo com a permanência do direito em vigor; e a função administrativa, que se responsabiliza pela consumação dos atos jurídicos e de sua organização.
Nesse contexto da submissão do Estado ao direito, pode-se pensar no Estado enquanto possuidor do direito vigente, recebendo o título de Estado de direito. Nessa conjuntura, surge a teoria da personalidade jurídica do Estado. Todavia, em meu ponto de vista sobre a nomenclatura “Estado de direito” não compactuo em totalidade com essa designação sobre a condição dos Estados atuais, visto que retomando outros pensadores, John Locke alega que o Estado de direito é aquele no qual o exercício do poder político é limitado pela lei. Porém, essa não é a realidade que se observa, uma vez que a lei pode ser distorcida em alguma oportunidade pelo governante no intuito de elevar sua vontade para além de qualquer lei imparcial que possa reger o seu povo.
Dando continuidade ao pensamento de Duguit, três elementos são identificados como constituintes de um Estado enquanto sujeito de direito: a coletividade, o território que ele ocupa e o governo que o representa. Ainda que essa teoria tenha enfrentado críticas, a concepção predominante é a de uma personalidade concreta do Estado no tempo, que compõe uma unidade coletiva formada por indivíduos, ou seja, pessoas jurídicas, e se afasta de abstrações. Dessa forma, sendo o Estado formado pelo conjunto de sujeitos que agem juridicamente, é fundamentada a sua associação como sujeito de direito.
Entre as aptidões que o Estado dispõe, se situa o poder público, de caráter subjetivo ao impor ordens e exigir obediência a elas, além dos direitos patrimoniais, cujo patrimônio pode ser traduzido como um conjunto de encargos e direitos, sendo também o responsável por suas dívidas. Ao trazer à tona a indagação sobre a possibilidade de o Estado ser considerado detentor de uma personalidade jurídica, o autor reitera a necessidade de se visualizar o fenômeno do Estado sob condições concretas, sem apelos de ordem metafísica. Nesse trecho pode-se traçar um paralelo com o que foi mencionado anteriormente acerca do Estado composto pelos seres individuais, sendo, portanto, o conjunto desses, e não uma autoridade distinta dos seres humanos no plano do real. É interessante estabelecer uma analogia com a ideia de Estado para Hobbes, considerado o soberano por agregar a multidão de indivíduos isolados em um só corpo mantenedor da ordem em sociedade civil.
Em síntese, o autor discute seis elementos presentes na instituição jurídica do Estado. São eles: a coletividade social determinada, a distinção da sociedade entre governantes detentores da força e governados, a obrigação jurídica de assegurar a realização do direito, a obediência às regras gerais concebidas pelos governantes, o emprego legítimo da força aliada ao direito e o caráter próprio de todas as instituições que garantem o cumprimento do dever de governos ou serviços públicos. O autor termina sua ideia caracterizando a doutrina sobre a qual teorizou, como positiva e realista, visto que se sustenta em concreto, tal qual um fato.
Ao afirmar que o Estado é um sujeito de direitos, não se depreende somente que ele deve se submeter à lei comum, mas que também compete a ele a tarefa de legislar. Ou seja, a instituição estatal tem poder de atuação dentro dos limites da lei, o que pode ser descrito pela noção de legalidade. É fundamental salientar que as leis criadas no âmbito do Estado não podem ser feitas em detrimento de direitos inerentes ao ser humano, e anteriores ao direito positivado, como o direito à vida e à sua conservação.
Um exemplo é a impossibilidade de legislar contra os direitos humanos presentes na Declaração Universal de 1948. É bastante forte a solidariedade do corpo social em suas relações entre os indivíduos, sujeitando-se às leis para sua regulação, que igualmente regulamentam o Estado. Contudo, se estabelece uma contradição sobre a obediência a uma lei que é certamente uma construção do Estado e que ele colocou a si, o que leva à compreensão de que ele pode ter se beneficiado. Mas em suma, a lei deve ser imposta com o intuito de proteger os direitos individuais, e tudo aquilo que atenta contra a legislação pode ser encarado como uma afronta aos direitos fundamentais do ser humano em estado de solidariedade social.
Quando o autor define o direito público, pode-se estabelecer semelhanças com o conceito primário de direito positivo e objetivo, sendo nas palavras de Duguit, o conjunto de regras aplicadas ao Estado e na relação recíproca do governante com os particulares. O direito público existe na consciência dos indivíduos e se manifesta pelos costumes em um meio social, que foge de qualquer abstração humana e se concretiza nas relações entre os homens, ainda que esteja internalizado. Ou seja, trata-se de um direito que se expressa de forma consuetudinária, e não o contrário. O autor fala em costume enquanto meio de verificação no plano da sociedade, embasando sua argumentação sobre o motivo pelo qual ele não cria bases sólidas para o direito. Sua explicação respaldada por comparações entre a maneira pela qual o direito se manifesta em diferentes países, citando os exemplos da França e da Inglaterra, por exemplo, me remontou a uma diferenciação entre o common law presente nessa última nação, que conta com uma tradição costumeira muito maior que o Brasil, de forte apelo às leis civis.
O Estado deve assegurar a efetivação do direito e sua aplicação, máxima que reforça a união entre direito e Estado, sendo que o direito público conta com leis escritas tais quais o direito privado. Deve-se ter em mente, contudo, a necessidade de se considerar a legitimidade do direito manifesto de outras formas, como anteriormente discorrido sobre o direito consuetudinário, o que pode ocasionar embates passíveis de boas discussões no sentido da intervenção de um sobre o outro. Duguit subdivide as leis que engendram o direito público entre constitucionais e ordinárias, sendo essa última dependente de um órgão legislador, mas a diferença que existe entre elas é somente em nível formal.
Adiante, o autor alude ao direito público externo ou internacional, também conhecido como direito das gentes, que diz respeito à regulação interestatal, podendo se pensar em um âmbito privado e em um âmbito público desse direito, mas que tal subdivisão novamente encerra uma diferenciação de ordem formal, visto que ambos tratam sobre as relações entre os países. Já o direito público interno propõe a aplicação de regras em uma dada nação, o que demonstra na prática a regulação do Estado pelo direito, bem como sua limitação no que tange ao poder político. Ainda quando se fala em um direito público que atua internamente no Estado, verifica-se o direito constitucional. Uma vertente muito curiosa mencionada pelo autor são os laços que se estabelecem entre os governantes para a resoluções de questões externas no contexto da guerra citada pelo autor, que conforme a época em que escreveu, deduz-se que se trata da primeira guerra mundial, o que gerou uma quantidade ainda maior de normas.
Em razão do contato do homem com o Estado a partir de seus representantes, tornaram-se necessárias medidas para conter a parcialidade e os abusos de poder pelos governantes. Sendo o Estado o detentor das funções administrativa e jurisdicional, que não corresponde ao direito público, mas sim a ramos específicos do direito. Contudo, o direito administrativo contém um conjunto de normas que regula os serviços públicos, e nesse ponto, se vincula fortemente ao direito público em questão, com uma participação efetiva do Estado em decisões jurídicas e no cotidiano social. Em razão do grande espectro do direito administrativo, ele ainda pode operar nos campos financeiro, industrial e assistencial.
Agora aprofundando-se na competência da jurisdição, Duguit retrata a França como um exemplo nesse setor, com parte significativa pertencente ao plano administrativo, e caracteriza o direito jurisdicional como uma subdivisão distinta do direito público, que comporta o direito processual e o criminal, o que explica em suas origens o motivo pelo qual ambos se classificam como pertencentes ao direito público nos dias atuais, contando com a mediação do Estado em casos civis e penais.
A distinção entre direito público e privado não é recente e se fez necessária a partir da complexificação do estudo do direito, sendo que o direito privado se aplica na convivência entre indivíduos iguais entre si, enquanto que o direito público regula a relação entre entes desiguais, em que se presencia uma diferença de poder. Concordo com a tese de Duguit, contrária à divisão entre direito público e privado, visto que em sua visão, o governante de um país deve possuir os mesmos direitos aplicados aos que estão sob seu comando, estando todos submetidos a um sistema de solidariedade, cuja regra é promover sua manutenção. Esse ideal de cooperação social caracteriza tanto o direito público quanto o privado.
O autor afirma que a proteção dos direitos individuais pode ser considerada uma das bases que sustentam a solidariedade social, visto que para que o todo esteja em ordem, as partes devem estar em boa convivência. Duguit alega que a divisão entre direito público e privado pode ser pensada a partir da criação jurídica pelo Estado, uma vez que o direito privado é imposto pelo Estado aos cidadãos, e o direito público diz respeito ao papel limitador que o Estado exerce em relação à expressão pública do direito. O autor elabora um julgamento à ideia de mediação pela noção de justiça e ao argumento de que o método de estudo do direito público se diferencia do direito privado. Para tanto, Duguit defende o estudo científico e sociológico do direito apoiado no emprego de deduções, típico das ciências sociais, e de caráter investigativo, que deve guiar o exame do direito privado e do direito público.
No entanto, a diferença entre o direito público e o privado está atrelada àquele que o emana, visto que nas palavras do autor, o ato jurídico consiste em uma manifestação da vontade criadora de um efeito de direito com a condição de que esteja dentro dos limites da lei. Ao contrário, se tornaria aparente uma arbitrariedade por parte de quem detém a autoridade política manifesta no poder de legislar. Essa distinção entre público e privado está vinculada à sanção do direito, monopolizada pelo Estado e aplicada aos cidadãos no âmbito privado e que se destina à esfera estatal no que se refere ao direito público, o que nos impede de observar uma sanção direta ao Estado nessa última vertente mencionada do direito, sendo ele o detentor do poder de constrangimento.
Ao se pensar no direito constitucional nesse ínterim, cabe a discussão sobre a sanção direta nele ausente, visto que o direito constitucional é um ramo do direito público e está vinculado ao conjunto de normas que regem um país. Contudo, nele estão presentes regras de direito, posto que uma vez violado pelo poder público, tal ato seria repudiado e contaria com uma repercussão social. Para que se evite o abuso de poder, é imprescindível a dinâmica de poderes distribuídos em três repartições, bem como a criação de tribunais de justiça. O direito constitucional ainda, obriga o indivíduo a sujeitar-se às regras que ordenam seu meio social, colocando-o em uma posição de passividade sobre o ato de legislar e de promover um embate de um particular contra o Estado.
Pode-se dizer que o processo jurídico tem um caráter particular na medida em que o Estado não pode constranger a si por meio de uma sanção imposta por ele. Entretanto, sabe-se que seus propósitos nem sempre são os mais íntegros. O ser humano apela ao Estado, dotado de cunho ativo e execução prévia, visto que o homem individual busca o poder coercitivo para a resolução de um problema de ordem social que englobe seus semelhantes por meio de uma decisão jurisdicional que emane do Estado, cuja obrigação é realizar o direito. Sabe-se, contudo, que frequentemente existem questionamentos e críticas ao poder do Estado, o que de fato pode ser contestado pelo cidadão do povo.
Encerrando a discussão sobre direito público e privado, pode-se compreender em síntese que ambos os segmentos jurídicos devem ser analisados à luz de um método, e embora seja válida essa divisão, os fundamentos que regem o âmbito privado e o público, coincidem, ainda que as sanções não se efetivem sob as mesmas condições, dado a diferença de natureza das duas vertentes.
Em última análise, é alegável que o livro de Léon Duguit sintetiza as principais características do direito moderno de uma forma singular, ao proporcionar não somente um entendimento das condições jurídicas em seu tempo histórico, mas também ao estabelecer comparações, citar exemplos e trazer um panorama do legado de seus predecessores com vistas para o futuro. Sob uma análise pessoal, o livro persiste muito atual, o que indica uma continuidade do direito no tempo e um questionamento acerca daquilo que as semelhanças e diferenças simbolizam juridicamente. Pode-se observar que o desenho do direito no mundo não ocorreu por uma via única, mas sim por meio de construções teóricas à luz dos valores iluministas e do privilégio da razão, bem como da primazia da lei sobre outras formas de elaboração do direito.
Disciplina: Teoria Política