Resenha crítica: Direito Penal na Grécia Antiga
Ao contemplar a ancestralidade jurídica das sociedades, o ser humano passa a dispor de um arsenal de conhecimentos agregadores que esclarecem determinados questionamentos que surgem no tempo presente. A obra Direito Penal na Grécia Antiga, de autoria de Viviana Gastaldi, explora a realidade do Direito e seus desdobramentos à luz da Antiguidade, fortalecendo o entendimento acerca das sanções e dos delitos no período homérico. O tom pedagógico do livro aproxima o leitor das ideias expostas, possibilitando uma compreensão acessível e consequentemente, observações muito válidas. Para além de considerações teóricas traçadas a partir de um contexto distante, as alusões literárias e míticas que adentram um campo subjetivo do saber associam-se às curiosidades humanas instigantes que se referem ao mundo das leis, ainda persistente na idade contemporânea, o que demonstra que o Direito na Grécia Antiga não se trata de um simples exercício do intelecto tão longínquo como se costuma pensar.
A compreensão do direito como fenômeno de ordem social atravessou contextos e pensadores que diferiram quanto à autonomia de seu conceito frente às instituições. A isso se deve a ideia defendida por alguns teóricos, de que a existência do direito não pode ser anterior à formação do Estado, o que ignora uma longa tradição de costumes e vínculos humanos que se enquadram como modos de ordenamento pertencentes à esfera ampla do direito. Pode-se mencionar nesse ponto, uma analogia com o pensamento contratualista no cenário de formação dos estados absolutistas, em especial, a visão de Hobbes sobre o assunto, uma vez que para o filósofo, o estado de barbárie e selvageria precedeu o Estado quanto instituição. Ou seja, o pensamento hobbesiano era compatível com a ideia partilhada por Michael Gagarin e por outros pensadores que não visualizavam a anteposição do direito ao Estado. Ainda que a oralidade tenha permeado o sistema jurídico no período arcaico, é possível verificar a existência de um direito transpassado por narrativas míticas na conjuntura da Grécia Antiga, o que não o deslegitima, mas sim o fortalece ao fornecerem exemplos e prenunciar bases teóricas.
Ao analisar as antigas concepções do direito com um olhar jurídico da contemporaneidade, observa-se que a fonte predominante consistia nos costumes, ou seja, em um direito consuetudinário. Para definir um estágio anterior ao Estado, e que se submete a regras comportamentais, emprega-se o conceito de pré-direito. No entanto, sob uma análise pessoal, é um erro aplicar tal noção, posto que a partir do momento em que se cria um ambiente de vínculos humanos, o direito em sua essência está ali inserido.
É fundamental respeitar o papel da pólis ateniense na correspondência entre direito e política e da mesma forma, no surgimento das fontes diretas, que dialogam muito com o atual direito positivo ao propor um aparato jurídico, assim como das fontes indiretas, de imensa riqueza cultural e literária em que o direito se revela a partir de lições morais. Sendo assim, nota-se duas faces do direito grego, uma de caráter público e outra de encargos educativos, o que demonstra a proximidade entre o direito e o povo. Estabelecendo uma conexão com a bíblia, percebe-se assim como no direito grego, um âmbito de ordenamentos claros e diretos, e por outro lado, um trabalho literário que oportuniza reflexões subjetivas fincadas na sutileza das normas em vigência.
Viviana Gastaldi, discorrendo sobre a natureza dos delitos, novamente dirige-se às narrativas, atribuindo a Homero a fundação do conceito de delito no desenvolvimento das ciências penais. Contudo, é interessante observar que os atos considerados delituosos não se consolidavam como uma ameaça à lei, mas sim aos princípios de honra que orientavam a sociedade grega antiga. Por conseguinte, o termo “injusto” era inexistente, sendo incorporado pela palavra grega adikía, que descreve o mal e a virtude em um juízo de desígnios religiosos. Conjuntamente, a autora examina as diferenças entre os delitos públicos e privados, realçando o fato de os homicídios serem abarcados pela camada privada dos delitos. Certamente, tal análise é contraditória ao entendimento da atual legislação brasileira, uma vez que antagonicamente ao requisito proposto, relacionado à não percepção imediata por parte da comunidade, sabe-se que a sociedade na qual o crime ocorre é vigorosamente impactada por qualquer tentativa de atentado à vida, justamente por tal delito indicar uma ameaça à segurança individual, e consequentemente conduzir ao mal-estar coletivo.
Em relação às leis, a hierarquia familiar exercia uma função influente ao estruturar-se na autoridade de um chefe e justificar-se nos princípios divinos, sempre usando-se do discurso da manutenção da ordem na sociedade grega. Ainda persistem na política hodierna muitos apelos a uma ordem superior com o fim de validar alguma atitude despótica, bem como alegações superficiais de que determinada medida autoritária promoverá uma estabilidade plena. Uma motivação para a criação de direitos e deveres partiu da dissociação entre os interesses coletivos e os pessoais, identificando-se como nomos uma norma exemplar em que está contido o embrião da democracia e todo o seu ideal de equilíbrio. Esse conceito de nomos foi aprofundado por Carl Schmitt, dirigindo-se à terra como matriz do direito com referências míticas que aludem à ciência jurídica diante da natureza.
A primeira parte da obra trata sobre o período Homérico em suas ramificações legais. Para introduzir seu raciocínio, a autora traça o perfil da sociedade grega, diferenciando a culpa da vergonha, sendo a última um elemento central da cultura da época, que devido ao caráter atitudinal do direito em detrimento de leis impostas, suscitou na população esse sentimento no caso de desobediência de uma norma. Como já mencionado anteriormente, a honra e a dignidade eram valores muito estimados na antiguidade grega, cuja perda juntamente com os direitos de cidadania, provocavam um desgosto individual que orientou um padrão da cultura grega no âmbito do cumprimento das regras, denominado cultura de vergonha. Para a psicologia, a culpa internalizada significa a recusa em abandonar a punição do sofrimento, conforme as palavras de Sigmund Freud. Isto é, a consciência de um delito passa anteriormente pelo crivo da introspecção e gera uma continuidade da culpa. Entretanto, de um ponto de vista particular, considero que esse sentimento, assim como a vergonha, não é o suficiente para mobilizar o bem público e evitar o cometimento de crimes, visto que os valores e hábitos de uma sociedade são flexíveis, e com o tempo pode haver a normalização do constrangimento, sem a imposição de deveres claros.
É nítido que na sociedade grega, a influência divina se mescla com um direito de costumes e guia a mentalidade jurídica. Da mesma forma, a poesia de Homero se funde na descrição da estrutura de governo, destacando-se a assembleia administrada pela autoridade máxima real de origens magníficas; a ágora, destinada ao debate e ao exercício da palavra falada; e o conselho de anciãos. Realça-se ainda a ideia de justiça expressa pelo termo dikê, com foco na organização coletiva e nas relações públicas, o que fornece uma concepção mais humanizada, dialogando com as raízes da democracia e posteriormente, até mesmo com uma alternativa para a solução de conflitos no direito: a arbitragem.
Outras figuras importantes que participam da estrutura social na pólis e que revolucionaram ao instituir o testemunho no meio jurídico, são os gerontes, que constituem um conselho capaz de prestar auxílio à assembleia e é encarregado da resolução de casos de homicídio. Tal crime era o principal na Grécia Antiga, e foi amplamente discutido na literatura homérica, assim como os danos patrimoniais, cuja referência é vista em várias passagens dos textos. Além da honra, o senso de competitividade grego prezava pela força física, e sob esse aspecto, os homicídios que demonstravam a superioridade aliada à virtude eram legitimados. Nesse ponto, é plausível tecer uma crítica pessoal em relação ao entendimento grego de que a força, corpórea e esgotável, tem um valor maior que a vida humana com toda a sua singularidade, pois a eliminação de qualquer mal não pode ter como instrumento um crime hediondo contra a vida. Apesar disso, era injustificável um homicídio cuja vítima é o pai da família, o que evidencia a importância da manutenção da ordem familiar como a base da sociedade. Igualmente, era reprovável o homicídio seguido de engano.
Não se pode dizer que a prática de atos criminosos não despertava o desejo de vingança por parte dos familiares da vítima. Para isso, como alternativa para se conter os ânimos e evitar conflitos de motivação hostil, instaurou-se o pagamento como substituição ao exílio daquele que operou tal ato. Analogamente, mas estabelecendo uma comparação muito distante, o pagamento de fiança nos dias de hoje substitui o confinamento. No entanto, há uma diferença entre o contexto analisado por Viviana Gastaldi e o mundo contemporâneo, que é o interesse no dolo e na intencionalidade, visto que no mundo homérico, o crime se pautava no ato em si, as motivações que levaram ao seu cometimento eram desconsideradas. A isso se deve o papel ainda presente das crenças religiosas, que estimularam o sentimento de piedade em relação ao criminoso. A dificuldade em se desvencilhar da religião persiste e ainda se observa o peso de sua inspiração em muitos julgamentos e no próprio sistema de justiça.
No que diz respeito às relações interfamiliares diante de um crime, a solidariedade para com a família da vítima foi um fenômeno passageiro que se enfraqueceu à medida que os laços intrafamiliares se fortaleciam. Essa ruptura, que se denominou abandono noxal, se deveu a uma maior individualização do ser humano e de seus interesses em comum com o grupo ao qual se faz membro. Esse ponto de vista representa uma transição comportamental que dialoga com a volta do ser humano para si e seus interesses em primeiro plano, enquanto que a coletividade já não atende às inclinações específicas do grupo familiar. Percebe-se dessa forma, uma ruptura declarada com a completa consideração por outro clã.
Assim como a religião é uma importante influenciadora acerca das resoluções sobre o crime de homicídio, ela tem um papel fundamental no que diz respeito ao casamento. A ideia de matrimônio abarca também noções patrimoniais e surge como um contrato entre as duas partes, o que enfatiza seu fator de reciprocidade. Do ponto de vista do direito penal, levanta-se a questão sobre o crime de adultério, que era considerado uma infração com capacidade de manchar a honra. Traçando um paralelo com a pecúnia paga para libertar-se do exílio em casos de homicídio, há do mesmo modo um pagamento para compensar o crime cometido. Contudo, caso a mulher tenha cometido o adultério, ela estaria isenta desse pagamento, o que não significa que não sofreria sanções ligadas à dignidade e aos costumes. Por envolver a complexidade dos afetos, a temática do adultério ainda gera muitas polêmicas no sistema judiciário brasileiro, ainda que não seja mais configurada como crime.
Ao adentrar no período clássico da Grécia, se observa um importante evento que possibilitou o surgimento da legislação, que foi o advento da escrita a partir do aperfeiçoamento do alfabeto fenício pelos gregos. Esse fato foi revolucionário para a história do direito e modificou inclusive o comportamento humano frente às normas descritas em um documento formalizado, porque a partir de então, o discurso de que o descumprimento de determinada norma se procedeu devido à alegação de não conhecimento das regras tornou-se retrógrado. Entre esses documentos, destaca-se o código de Dracon, com uma minuciosa descrição do monopólio do Estado no que diz respeito à punição. Ou seja, não se pode negar a importância das leis escritas para o desenvolvimento do direito penal. É interessante pensar que essas leis dispunham de uma origem religiosa que as legitimava, ao passo em que contribuíram para o entendimento de que o homicida não se configurava somente como alguém que errou ao cometer um crime, mas também como um sujeito impuro nos princípios da religião vigente. Ademais, é notável o legado deixado por essas leis, que diferenciaram o homicídio involuntário e o premeditado, ou seja, já havia um embrião de significância daquilo que hoje se entende como dolo. Conforme uma análise pessoal, a relação hierárquica entre os deuses e homens se manifesta na realidade da Grécia clássica com o nascimento dos tribunais, que incorporaram a ideia de superioridade entre as autoridades e o povo. Desse modo, o raciocínio jurídico fundiu-se a uma noção transcendental que até hoje apresenta seus resquícios em forma de apelos divinos e justificativas para determinada decisão legal.
Sucedendo Dracon, surge na política grega a figura de Sólon, cujo título de fundador do Estado ateniense foi conferido ao fortalecer a justiça pública ao ceder direitos importantes ao povo e ao reestruturar a democracia em seu governo, que contava com um mecanismo de poder composto por três órgãos: os tribunais, a Assembleia Geral e o Conselho. Ao mencionar o termo "democracia", é necessário diferenciar o sentido da palavra aqui expressa da atual concepção que hoje se difunde, posto que era nítida a efetiva participação popular nas decisões da pólis, o que garante à democracia ateniense uma particularidade direta, enquanto que a democracia no Brasil contemporâneo classifica-se como indireta, já que o povo elege aqueles que o representarão.
Em relação aos homicídios, observa-se uma ordem moral que paira sob a ordem, em forma de crenças religiosas, como foi anteriormente descrito acerca da impureza do Homem. Nesse sentido, se constata o tema da mácula como a cólera da vítima, que pode se manifestar através do poder dos espíritos. Além disso, a inserção do ostracismo como exílio obrigatório foi legitimada por uma ordem transcendental e pela justificativa de que o crime de homicídio é um antiexemplo, se assemelhando a uma doença que poderia infectar e estimular todos que tivessem contato, e sendo fundamental a retirada do cidadão que se apresentava como ameaça. Mas a sanção imposta não era a pior das punições. A consciência do cometimento de um ato ilícito era uma pena que se pagaria até que a morte ou o esquecimento poupasse aquele que a portasse. A preocupação era ainda maior no antro familiar, visto que o homicídio que se orquestrava de forma tão próxima aos familiares, representava um perigo à segurança pública, o que não requeria somente um exílio, mas também a purificação, que permitiria sua ressocialização.
Na análise dos discursos presentes nas Tetralogias, de autoria de Antifonte, pode-se perceber uma similaridade com a jurisprudência, uma vez que o sofista grego busca explicar padrões e tem como centro a conduta dos magistrados, o que pode servir como base teórica para outros casos futuros. Do mesmo modo, a jurisprudência descreve uma série de resoluções que serão úteis para as decisões posteriores. Apesar de os homicídios pertencerem a uma dimensão privada, o Estado, por meio de seus tribunais, assumia um papel de suma importância ao definir o destino dos réus. Novamente, a presença da honra como ente constituinte dos valores gregos evidencia o valor da honra em detrimento da punição em si, ainda no tocante ao âmbito familiar.
No capítulo 5 da parte 2, a escritora descreve detalhadamente sobre a retórica processual no tribunal em um cenário de homicídio, atentando-se para a ordem das etapas e para as formalidades mediadas pelos basileus, que detinham as informações sobre os casos por meio da lexis. O juramento que deveria ser realizado no primeiro momento (anákrisis) era atravessado pelo elemento religioso na medida em que o juramento representava um compromisso com os desuses. Durante a leitura, outro testemunho da presença da religião no direito se fez presente com uma pergunta de Atena às Erínnias, que na mitologia, se relacionam com a vingança. Pensando sobre isso, pude concluir que o entendimento da religião bem como a sua função social era muito distinto da compreensão atual da religiosidade no contexto cristão. Em razão disso, mais que um juízo de valor, seria anacronismo atribuir uma característica retrógrada ao Direito na Grécia Antiga. Esses mitos, nos quais a autora se inspira, simbolizam um olhar transdisciplinar para a ciência jurídica e oferecem base para os componentes retóricos, como a erotesis, que foi introduzida por Ésquilo, conhecida como interrogação entre as partes dialógicas. A partir disso, pode-se traçar uma semelhança com o método da maiêutica socrática, no qual a autonomia intelectual do indivíduo era colocada em prática por meio das respostas dadas por ele às próprias perguntas feitas pelo pensador. Da mesma forma, a erotesis se institui como um meio para se alcançar informações verídicas através de um interrogatório. Empregando o conhecimento mítico na análise dos procedimentos em caso de homicídio, se observa uma mudança no teor do julgamento, que desloca o foco da linhagem e da família (genos) para um entendimento mais racional e concreto dos delitos.
Na última parte do livro, Viviana Gastaldi aborda a temática das penalidades e reitera o aspecto abrangente de sua repercussão na sociedade grega. Percebe-se que na antiguidade, as esferas institucionais da pólis dialogavam com a vida cotidiana, e os acontecimentos de determinado setor impactavam outro segmento. Ou seja, a análise sobre o modo como hoje se lida com as infrações, não é o mesmo daquela que se fazia na Grécia. Quando a autora compara essa abrangência com o filósofo francês Michel Foucault, recordei o estudo do pensador em que ele conceitua o panóptico, que se trata de um sistema de vigilância que se institui como sistema de poder ao deter a capacidade de observação total. Seu conceito foi aplicado ao exame de como uma prisão deveria ser, o que novamente estabelece uma conexão com as ideias de Viviana Gastaldi no que tange às penalizações cujo caráter exemplar tem como fim último a educação do povo.
A dicotomia existente entre penalização e vingança recai no aspecto emocional da vingança como um sentimento irascível de devolver os prejuízos cometidos na mesma intensidade, enquanto que a penalização apela à razão para promover uma solução baseada na neutralidade do pensamento e na aplicação exata de determinado código regulamentador. A pessoalidade que se verifica no âmbito das paixões humanas se manifesta no impulso vingativo, denunciando a relatividade do comportamento diante dos efeitos de tal prática. A penalização pode ser definida como um ato que fere os princípios jurídicos e que, portanto, fica a cargo do sistema que a presenciou. Em meu entendimento, a vingança se trata de uma forma ultrapassada no sentido de eficácia e imatura ante o aparecimento de penalizações mais criteriosas. Para exemplificar, pode-se trazer os argumentos contrários à natureza da vingança, elaborados por Nozick e trazidos pela autora, como a característica ilimitada da vingança diante da limitação que se impõe sobre as penas, o caráter de proximidade que envolve uma atitude revanchista e a impossibilidade de executar com agilidade legal o crime cometido, visto que a subjetividade na vingança não se submete à ordem imposta sob o domínio da razão. Assim, a vingança não se legitima na sociedade ateniense, distintamente da autoridade concedida pela penalização, cuja legitimação não precisa ocorrer necessariamente por meio das leis. Um ponto central nessa discussão, que é mencionado pela autora em uma de suas conclusões ao final do item 2 na última parte da obra, é o consenso quanto obediência civil, que colabora tanto para a construção de autoridade quanto é construído por ela. Além do consenso, há o enfoque para uma inserção democrática nesse sistema penal, que depende dos seguintes fatores já conceituados: imparcialidade, legalidade e ação pública.
A punição na Grécia Antiga era embasada pelo arcabouço das tragédias gregas e de crenças, reiterando o impacto literário e religioso na sociedade. Nesse ínterim, a punição não se restringia somente a uma atividade humana, mas sim divina por meio de uma decisão da ordalia. Entre os crimes mais graves estavam a traição e notadamente, o sacrilégio, que representavam uma ameaça à ordem pública e cuja punição abarcava seu isolamento, retirada de bens materiais e esgotamento de seus direitos de cidadão. Esse indivíduo era nomeado atimos, e a atimia significava uma afronta à honra do indivíduo criminoso, que se dividia entre uma atimia temporária e outra permanente. Essa por sua vez subdividia-se novamente em parcial, vinculada com maior força aos atos coercitivos em detrimento da própria lei, e em total, com maior restrição de suas liberdades. O homicídio figurava como um dos motivos de tal grave penalidade, juntamente com a corrupção, injúrias, roubo e falso testemunho, expressando esse último, a importância conferida à palavra em juízo, que se verifica até os dias atuais. Dessa forma, o autor dos crimes passa a ser socialmente esquecido e marginalizado, praticamente apagado da memória coletiva, o que em meu entendimento era vantajoso para a moral da época, posto que afastava um mal exemplo, impedindo a repetição do crime. Referenciando essa realidade em um plano mais fictício, está o exemplo da situação vivida por Orestes. Já no campo religioso, a autora atenta para uma equivalência entre o direito dos deuses e o direito dos homens, assinalando o temor à punição de excomunhão que se realizava em forma de imprecações.
Outra punição, porém, mais rara, era a lapidação marcadamente violenta que se aplicava em ocasiões extremas àqueles que traíssem a pátria, ou então em casos de traição, retratados em tragédias gregas com a novidade de cegueira e petrificação, comuns ao crime de adultério. Como continuidade da crença na intervenção religiosa, os rituais fúnebres detinham uma importância na vida social, na medida em que eram utilizados como objeto de ataque quando uma infração séria se perfazia, o que destituía a dignidade do sujeito para além do mundo terreno, como a precipitação como condenação aos crimes políticos. Viviana Gastaldi aponta que a intoxicação com cicuta substituiria esses crimes atrozes, configurando um privilégio. Essa passagem do livro me remete ao envenenamento de Sócrates, acusado de corromper a juventude ateniense e de questionar a moral vigente. Um fato que considerei curioso é a compreensão de prisão não como uma finalidade tendo a reclusão como castigo, mas sim como um ambiente temporário de exílio até que as dívidas fossem pagas, uma vez que a monetização das penas ocorria em casos de crimes mais brandos, o que inverte a lógica que hoje vigora no que diz respeito à incumbência da reclusão no cárcere.
Discorrendo sobre a execução da punição, nota-se uma outra inversão ao se comparar os procedimentos na Grécia Antiga com a realidade jurídica do Brasil atual, que é a delegação da decisão das penas para os crimes de homicídio a tribunais específicos, enquanto que o veredicto para crimes mais suaves ficava a cargo de uma instância mais popular escolhida por sorteio, o que se assemelha muito ao papel dos jurados no sistema de justiça hoje em vigor, e que diferentemente das atribuições antigas, esse corpo de membros do povo se responsabiliza pelos crimes envolvendo homicídios, enquanto que os demais delitos são destinados aos juízes. Outra distinção é que os homicídios eram tratados na perspectiva do direito privado, considerados um caso pelo qual a dikai se encarregava. Já no direito contemporâneo brasileiro, as repercussões do direito penal recaem no meio público.
Para o direito grego, a intencionalidade e a voluntariedade são suas bases, visto que se relacionam ao comprometimento do indivíduo com a determinada infração cometida. Esse fator é importante, porque contribui para uma nova concepção de responsabilidade jurídica que visualiza no indivíduo seu livre arbítrio e suas respectivas consequências, o que o afasta das justificativas religiosas outrora empregadas, que tolhiam sua autonomia. Os conceitos de voluntariedade e involuntariedade se desenvolveram no âmbito da justiça familiar, antes do estudo realizado por Dracon, que repartiu os tipos de homicídio.
Observa-se a importância da retórica para o Direito ateniense quando Viviana Gastaldi o impõe acima do conhecimento sobre a lei em si, retratando a presença relevante da sofística, que exercitou a agilidade de raciocínio por meio da fala nos discursos forenses e nutriu debates públicos em uma conjuntura de agitação na Grécia, sendo que tanto os tribunais quanto os teatros consistiam em espaços reservados para esse fim. As reverberações das falas eloquentes contribuíram para a evolução dos argumentos jurídicos, com destaque para a defesa dos homicidas, o que me remete à semelhança entre o sofista e um advogado capaz de reunir argumentos que convençam sobre a atenuação das penas atrozes conferidas aos infratores.
O argumento que justifica as penas está pautado no utilitarismo, ou seja, nas vantagens que uma punição traz para determinada sociedade. Sabe-se que a finalidade das penas não é apenas punir, mas também servir de exemplo aos demais e reparar os danos causados. Em relação ao princípio da retribuição, pode-se pensar em uma infração que é retribuída por uma respectiva pena. O sofista Protágoras rompe com o retribucionismo e insiste no utilitarismo ante à punição, que será retomado por Platão em sua obra “As Leis” no sentido disciplinar, tendo em vista uma coletividade mais virtuosa. Assim, a pena passa a ser uma necessidade e deve ser aplicada conforme a magnitude dos problemas causados. Além das ideias utilitárias em relação aos crimes, a própria legislação deve atender a esses ideais de maior felicidade ou menor infelicidade, o que remonta à doutrina de Jeremy Bentham e John Stuart Mill, cuja base está em agir buscando garantir o maior bem-estar possível.
Em última análise, se caracteriza como fundamental a abordagem histórica das práticas jurídicas e de seu entendimento por povos cuja linha de raciocínio se localiza em um tempo que se difere tanto em instituições de direito quanto em raciocínio acerca do acatamento dos ordenamentos. A reflexão que acompanha a leitura permite olhar para as causas e efeitos das penalidades e dos delitos antigos com o olhar de hoje: um tempo farto em teorias e inovações. Se ousa dizer que o trabalho de Viviana Gastaldi é uma verdadeira historiografia que tem como objeto de estudo a antiguidade grega. Em outros termos, a autora propõe um olhar investigativo e simultaneamente crítico sobre os fatos anteriores que culminaram em princípios de tradição jurídica na cultura ocidental, oferecendo um panorama complexo das estruturas políticas e de detenção do poder, bem como do funcionamento dos mecanismos que regulavam o direito a partir de vínculos com os mais diversos ramos da sociedade. A contribuição da obra está no minucioso diagnóstico jurídico contido no transcorrer dos pensamentos supracitados no que tange ao mundo antigo, com todos os seus legados e singularidades, o que proporciona a desmistificação de um imaginário coberto por convicções do senso comum e confere uma ótica filosófica e científica sobre as temáticas versadas.
Disciplina: Teoria Política