Analisar o sujeito em Nietzsche nos conduz a um mapeamento de si mesmo e perscruta um recuo, no plano teórico, principalmente. quando encaramos que o sujeito é resultante da dissolução do mesmo sujeito, sendo a articulação entre o Ich e Selbst, de modo que há uma relação específica entre duas realidades distintas e interligadas, o sujeito e o corpo.
Nietzsche em sua definitiva máscara adentrou as zonas abissais, ao mais interior de sua singular filosofia. Todo mundo interior que originalmente era tão delgado como se estivesse apertado entre duas epidermes, e desenvolveu-se e ampliou, ganhando profundidade, adquirindo a maturidade que chamamos de uma antropologia centrada na vontade de poder.
Nietzsche está situado nas interpretações da modernidade, inspiradas nesse tipo de leitura, mas já centradas, numa problemática nova, isto é, ostentando uma crítica radical à época moderna.
O que pode nos ajudar entender a experiência pós-moderna, a era do politicamente correto e, gradativo desaparecimento do humano. Por ser complexo, diferenciado e tantas vezes divergente pois o sujeito típico das luzes, definitivamente se apaga.
Afinal, a concepção de sujeito perde utilidade para a vida, se tornou um fenômeno superficial, não dominando nem a linguagem nem a mente.
Primeiramente, existe no filósofo um dispositivo extremamente sofisticado de auto-observação ou, se quisermos, de autoanálise, o exercido pelo eu (Ich) que consiste naquilo que chamamos de mapeamento (termo emprestado da neurociência e da psicologia cognitiva) sobre si mesmo (Selbst), sendo tal dispositivo que permite ao filósofo colocar a hipótese de um princípio de unidade antropológico por ele designado por vontade de poder.
A interpretação que Nietzsche fez da concepção moderna do eu, parecer ambígua, porque avalia a radicalidade do programa moderno sobre o sujeito e do eu. Um texto fundamental é o § 54 do “Para além do bem e do ma”l que vale a pena transcrever na íntegra:
“Que fez então, no fundo, toda a filosofia moderna? Desde Descartes – e, na verdade, mais por oposição a ele, do que seguindo o seu exemplo -, todos os filósofos atentam contra o conceito de alma, sob a aparência de uma crítica dos conceitos de sujeito e predicado, quer dizer, atentam contra o pressuposto fundamental da doutrina cristã.”
A filosofia moderna, como o cepticismo em matéria de conhecimento, é, velada ou abertamente, anticristã; ainda que, digamo-lo para ouvidos mais sutis, não seja de forma alguma, antirreligiosa. Outrora, acreditava-se na alma, tal como se acreditava na gramática e no sujeito gramatical; dizia-se que ‘eu’ é a condição, ‘penso’ é o predicado, o condicionado – que pensar é uma atividade para a qual um sujeito deve ser pensado como causa.
Procura-se agora saber, com uma tenacidade e uma astúcia dignas de admiração, se não será possível sair desta rede e, se não será talvez o contrário que é verdadeiro: ‘penso’ a condição e ‘eu’ o condicionado; o ‘eu’ portanto, uma síntese que só se efetua através do pensar.
No fundo, Kant quis demonstrar que o sujeito não poderia ser demonstrado através do sujeito – e o objeto também não. A possibilidade de uma existência ilusória do sujeito, portanto da ‘alma’, pode não ter sido estranha à sua maneira de pensar, pensamento este que já uma vez aparecerá na terra, com um poder inaudito, na filosofia dos vedantas.
A crença de sermos um "eu", isto é, a crença na existência do sujeito. Afinal, a existência do "eu individual" que vive uma vida própria, e um "eu" que pensa, que sabe, que sente, que quer, que sofre e por trás de cada ação sua, e que, além de ser agente, sabe que a cada momento tem que ser racional e consciente.
Há no "eu" um núcleo imutável, que, não importando quantas variações possamos sofrer com o passar do tempo e dos acontecimentos que tanto nos afetam mesmo até depois da morte. Tal crença traz inegável influência sobre nossa visão de mundo, tanto no decorrer do cotidiano, quanto em nossas reflexões e concepções históricas e filosóficas a respeito do mundo e da vida.
O sujeito como realidade só é verdadeiro quando serve de base para a construção de todo o conhecimento humano. Daí, René Descartes ter elaborado sua célebre teoria do cogito. Penso, logo existo. No fundo, há uma suposta realidade de nossos "eus".
Descartes construiu seu sistema na primeira metade do século XVII buscando encontrar base para a verdade que fosse imune à qualquer questionamento cético e tentou realizar esta ambição, justamente levando o ceticismo aos seus limites, submetendo à dúvida e ao questionamento tudo aquilo que se pode considerar verdadeiro.
Descartes põe dúvida todo conhecimento que se pode adquirir através dos sentidos. Afinal, à certa distância, sob certa luz, podemos facilmente nos enganar sobre o objeto percebido ou dar por certo estarmos vendo um outro objeto totalmente diferente.
Duvidar das percepções a priori tão nítidas equivale duvidar da percepção dos sentidos, da ótica do sujeito e dos sentimentos e, entretanto, tudo não passa de mero sonho.
O sujeito é o que vai fundamentar todo pensamento de Descartes, é a própria verdade, a própria realidade e, também a base de todo o conhecimento. É a partir do sujeito que Descartes desenvolverá todo o seu pensamento e estabelecerá as bases para um método científico que conduza ao conhecimento verdadeiro.
Descartes exerce influência decisiva não apenas em nosso modo de pensar cotidiano, mas na época moderna como um todo. Juntamente com Francis Bacon, Descartes é considerado como iniciador da filosofia moderna.
Constata-se que a supervalorização do indivíduo, da consciência e do subjetivismo são marcas registradas da filosofia de Descartes. E tais marcas existem também no pensamento iluminista que tem por base o eu racional e consciente trazendo sua consciência racional de ser humano.
Vieram os teóricos do direito natural ou jusnaturalismo e do contrato social (contratualismo) tais como Hobbes, Locke, Rousseau e Kant, embora suas estruturas desenvolvam de modo diferente, oferecem base comum que se pode apontar é a ideia de existência de sujeitos, como sedes de direitos, sendo racionais, conscientes, livres para escolher, portanto, capazes de firmar contratos entre si, travar relações jurídicas, sociais, políticas e existenciais.
A tal noção de sujeito pode-se chegar até as noções contemporâneas como a do liberalismo. da democracia e do socialismo. O eu pensante como centro de comando único, fixo e imutável, racional e consciente, dono de suas ideias, vontades e ações.
Nietzsche vai diretamente contra o sujeito cartesiano, que é esclarecido a partir de vontade de poder ou vontade potência e determinadas consequências que deste decorrem.
A primeira vez que surgiu a expressão "vontade de potência" na obra do filósofo na primeira parte de “Assim falava Zaratustra” e mais precisamente no capítulo intitulado "Dois mil e um fins". E, que aborda a questão dos valores, a criação de valores como expressão da vontade de potência dos homens e dos povos. Destacando-se o caráter antropológico do valor. E, o conceito vai ganhando formas cada vez mais amplas.
Nietzsche definiu vida como vontade de autossuperação, de expansão e de crescimento, a tendência a subir, vitória sobre si mesma, domínio de si mesma, esforço sempre por mais potência, ou seja, a vida como vontade potência.
A simplificação grosseira do eu, o sujeito é a ficção que deseja fazer crer que diversos estados iguais são em nós, o efeito de um mesmo substratum, somos a igualdade entre diferentes estados.
Afinal, Nietzsche negando a igualdade e qualquer identidade entre nossos diferentes estados e, se aproxima de Hume, que negava qualquer igualdade ou identidade entre nossas diversas percepções. Assim, esta identidade é, para os dois puramente imaginária.
O mundo se traduz em ser um caos de forças em permanente conflito, eterno devir que não podemos de maneira alguma apreender com nosso entendimento, uma luta constante que não podemos absolutamente conhecer.
Somos uma espécie de animal que somente prospera sob o império de exatidão relativa às suas percepções, e antes de tudo, com a regularidade destas. Há em nós, uma potência ordenadora, simplificadora que falsifica e separa artificialmente. O conhecimento então, trabalha como instrumento de potência.
Se para Descartes temos a afirmação: Penso, logo existo, como verdade absoluta e inquestionável, para Nietzsche não há só o eu que pensa, como o próprio pensamento que é também uma simplificação, uma falsificação útil do mundo, uma ficção a serviço de uma espécie de animal e que tem necessidade de conhecer para expandir seu poder.
Diante da realidade absoluta do eu, tão defendida por Descartes e que fora refutada por estes dois grandes pensadores como Hume e Nietzsche cada um à sua maneira, mas com alguns pontos de aproximação.
Ao fim de suas investigações acerca do sujeito, o resultado a que ambos chegam, mesmo que percorrendo caminhos diferentes, é o mesmo: eu é apenas uma ficção.
Bem ilustra Fernando Pessoa: Não sei quem fui nem sou. Ignoro tudo. Só há de meu o que me vê agora. (In: Pessoa, Fernando. Obras de Fernando Pessoa. Volume 1. Porto: Lello e Irmão, 1986.p.399).
Referências:
BOGÉSIA, Diogo. Hume, Nietzsche e o Sujeito como ficção. Theoria- Revista Eletrônica de Filosofia. Disponível em: https://www.theoria.com.br/edicao0510/hume_nietzsche_e_o_sujeito_como_ficcao.pdf Acesso em 31.7.2020