QUEM MATOU FIODOR KARAMAZOV?

Em linhas gerais, o livro “Irmãos Karamazovi” trata da conturbada relação dos filhos de Fiodor Karamazov entre si e com o próprio pai.

Dentre tais filhos, Dimitri Karamazov destaca-se pela vida boêmia, desregrada, libertina, por agressões e ameaças ao pai.

Alieksei é o filho noviço, religioso, habita no mosteiro ortodoxo, é caracterizado pela personificação dos valores cristãos.

Ivã Karamazov é o intelectual clássico, tendo estudado em universidades e levado uma vida com certo requinte que o diferencia dos irmãos. Ateu, representa certo niilismo individualista exacerbado.

Com o desenrolar da história, sempre baseada entre conflitos latentes entre Fiodor e seus filhos Karamazovi, o pai é encontrado assassinado. Dimitri, o filho boêmio, que de fato esteve na residência minutos antes. É o principal suspeito.

O filho, então, é levado a júri popular. Sem maiores suspenses, o Livro que narra o julgamento tem como título “Um erro Judiciário”.

Neste ponto, principia-se a leitura e crítica, ainda que feita de forma descritiva, das instituições jurídicas pelo autor. O caso do suposto parricídio logo toma proporções de notícia nacional, experts em psicologia, criminologia e comportamentos desenvolvem as suas teses sobre o caso. O acusado e seu comportamento tradicionalmente anti-social, como não poderia deixar de ser, Dimitri Karamazov é descrito em suas relações interpessoais: sua relação com Gruchenka – a concubina por quem o pai também vertia amores -, seu alcoolismo flagrante, a violência de sua relação com o pai e, principalmente, aquilo que é narrado como uma suscetibilidade aflorada às paixões.

Após essa repercussão nacional do caso, um importante advogado de São Petersburgo manifesta interesse na defesa de Karamazov, ante o pagamento relativamente baixo de uma senhora apaixonada pelo acusado. O procurador – o acusador público – por sua vez, representa a Província aonde se deu o relatado assassinato, avoca para si a defesa daquela sociedade, seus valores e suas famílias, passando a conceber a condenação do acusado como, não que ele mesmo não estivesse plenamente convencido da culpa, a ocasião em que haveria de mostrar seu valor, tão desconsiderado, ante à comunidade que o cercava.

Dostoievski se coloca, como narrador, por entre o numeroso público presente ao acontecimento. Daí poderá narrar as emoções, arroubos e sensações dos que com ele presenciavam esse espetáculo da justiça.

O júri compunha-se de quatro funcionários, dois comerciantes, seis camponeses e pequenos burgueses da cidade. Dostoievski destaca o seguinte comentário que podia se ouvir na sociedade naquele tempo: “Será possível que um caso de psicologia tão complicada seja submetido à decisão de funcionários e de mujiques? Que é que eles compreenderão disso?”.

Neste ponto, Nelson Hungria ecoa a preocupação latente naquelas senhoras provincianas, que questionavam a preparação de um corpo de pessoas do povo em sentenciar o destino de um dos seus pares, afirmando: “juízes improvisados e escolhidos por sorteio, em gritante contraste com a natureza técnica e crítica do Direito e processos penais contemporâneos; com os seus veredicta sem qualquer motivação e sem uniformidade, dependendo da maior ou menor impressão causada pelos golpes teatrais dos advogados de defesa”. Interessante notar como a crítica do jurista pátrio se limita à possibilidade de absolvição, tamanha era a sua esperança na possibilidade de a pena servir de papel exemplificativo em relação aos demais cidadãos.

Lenio Streck, opondo-se aos críticos do júri, afirma que “argumentos com ‘a influência exercida pela fácil retórica’ e ‘a incapacidade dos jurados de apreciarem questões de alta relevância jurídica’ servem como forte sustentáculo retórico para a descaracterização do Tribunal do Júri. Se um juiz comete uma injustiça em um julgamento singular, os advogados ou as partes não reclamarão, uma vez que existe, por parte dos atores jurídicos, o que Luhmann (1980, p. 29) chama de ‘prontidão generalizada para a aceitação das decisões’ bastando ‘que se contorne a incerteza de qual decisão ocorrerá pela certeza de que uma decisão ocorrerá, para legitimá-la’ (ibidem, p. 91). Já com relação às decisões do Tribunal do Júri, não obstante estarem, também, ‘legitimadas pelo procedimento’, estas sofrem críticas que visam a descaracterizar o júri enquanto instituição jurídica, sob argumentos como a ‘ausência de rigor técnico nos veredictos’.

Destarte, segundo Streck, os críticos apóiam-se nos mitos da Neutralidade e da Verdade Real para justificar tão somente a atuação dos juristas – aqueles que foram dotados da ciência – como capazes de efetuarem julgamento correto.

Pois bem, a audiência principia. Dentre as testemunhas de acusação, os mais variados cidadãos que presenciaram brigas e indisposições entre pai e filho. Enquanto o promotor lhes tenta extrair o caráter violento do acusado, o advogado de defesa, através de ataques pessoais a cada uma das testemunhas, lhes retira a confiabilidade do testemunho.

A audiência das testemunhas da defesa vem em sequência, e aí ocorre fenômeno interessante. Tais testemunhas, excetuando Alieksei, o irmão noviço, acabam por convencerem-se elas mesmas da culpabilidade do acusado, fazendo assim o papel da acusação. Ivã, o outro irmão, e único conhecedor da verdadeira identidade do assassino, é acometido de um acesso de loucura durante seu testemunho, que acaba por lhe retirar a credibilidade do testemunho.

Na sustentação final, o procurador desenvolve uma corrente de raciocínio que, baseada em um psicologismo que ele julga dotado de uma cientificidade impecável, traça a perfeita personalidade de um homicida passional. O pretenso cientificismo que embasa a tese acusatória é, após, atacado pela defesa em capítulo que Dostoievski nomeia “A defesa: uma faca de dois gumes”. Em sua sustentação, o consagrado advogado ataca as bases do raciocínio da acusação, mostrando como a lógica psicológica que se propõe prever determinadas condutas pode muito bem, caso sejam outros os fatos a serem incluídos no desenvolvimento, levar a conclusões totalmente opostas.

A ambição de concluir pela execução ou não de um crime – ambição vinculada às escolas etiológicas da criminologia – fica assim desacreditada pela sustentação da defesa que propugna pela absolvição do réu ante à ausência de evidências da autoria.

No momento em que cessa o debate e se retira o corpo de sentença para a discussão sobre a decisão – o modelo russo assemelha-se ao americano, doze jurados que devem chegar a uma decisão unânime – o burburinho na plateia dá conta de que após tão brilhante e qualificada defesa o réu estaria certamente absolvido.

O derradeiro capítulo do júri traz, no entanto, um título desanimador: “os mujiques mantiveram-se firmes”. Ocorre que, mesmo em dissonância com a beleza e a eloquência da tese defensiva, o réu foi considerado culpado sem qualquer atenuante, o que petrificou por instantes o ambiente da plateia. Dostoievski, como já dissemos, narra o episódio do júri na figura de um dos espectadores presentes ao público, de modo que não temos conhecimento dos debates efetuados entre os jurados, entretanto, a penúltima e a últimas frases deste capítulo parecem denunciar a natureza da condenação sofrida por Dimitri, são elas: “os mujiques mantiveram-se firmes” e “e ajustaram suas contas com o nosso Mítia”.

O júri, de tal modo, cumpriu uma função de vingador público baseando sua decisão na má-fama e nos traços da personalidade do réu. Sua decisão mereceu o título de um “erro judiciário”, conforme cunhado pelo autor.

Não parece adequado afirmar que contrário teria sido o posicionamento do juiz togado.

ERNESTO COUTINHO JÚNIOR
Enviado por ERNESTO COUTINHO JÚNIOR em 21/08/2022
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