Resumo: De acordo com a ONU, apesar de não existirem estatísticas oficiais, cerca de quinhentos mil ciganos vivem no Brasil. Apesar de alguns progressos e de serem protegidos pela Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável de Povos e Comunidades Tradicionais e a oficialização do Dia Nacional do Cigano (24 de maio) pelo ex-presidente Lula em 2006, a realidade dos ciganos é marcada por invisibilidade e marginalização.

Palavras-Chave: Ciganos. Gitanos. Proteção Constitucional. Direito à não discriminação. Minorias.

 

Résumé: Selon l'ONU, bien qu'il n'y ait pas de statistiques officielles, environ cinq cent mille Tsiganes vivent au Brésil. Malgré quelques avancées et étant protégé par la Politique nationale de développement durable des peuples et communautés traditionnels et l'officialisation de la Journée nationale des Tsiganes (24 mai) par l'ancien président Lula en 2006, la réalité des Tsiganes est marquée par l'invisibilité et la marginalisation.

Mots-clés: Tsiganes. Gitans. Protection constitutionnelle. Droit à la non-discrimination. Minorités.

 

Os ciganos foram vítimas das mais violentas e cruéis perseguições. Na Alemanha Nazista, por exemplo, milhares de ciganos foram presos e assassinados. O que mesmo tipo de combate ocorria na Europa Moderna. A Suíça, em 1470, foi um dos primeiros a instituir leis contra a presença de ciganos em seu território. E, na Península Ibérica[1], o processo de expulsão dos árabes também foi marcado pela perseguição ao povo cigano.

Durante a Dinastia Tudor, a simples descendência cigana era suficiente para que o acusado fosse condenado à morte[2]. Essa visão negativa sobre os ciganos se fulcra em valores medievais, pois trabalhavam como entretenimento, na venda de carnes ou como ferreiros.

Na Idade Média, algumas diversões eram condenadas por serem entendidas como manifestações demoníacas que afastavam o homem dos princípios cristãos. E, assim se desenvolveram várias lendas que reforçavam o preconceito[3] aos ciganos. Em uma das lendas[4], afirmavam que o ferreiro que fabricou os pregos que fixaram Jesus na cruz era cigano. E, a partir daí, prevaleceu o estigma do preconceito.

Outro motivo de repúdio era a vida errante e os exotismos e, por serem portadores de tradições, costumes e língua própria como o romani, o que por vezes, resultava em expulsão do grupo sob a acusação de traição.

Com o término da Segunda Guerra Mundial, grande parte da população cigana migrou para os EUA, que atualmente tem cerca de um milhão de ciganos. E, na Europa vivem oito milhões e, hoje, formam a maior maioria humana sem um país.

A história escrita dos chamados ciganos não vai além de um milênio. E, um dos documentos mais remotos é de um monge grego, segundo o qual, em 1050, o Imperador de Constantinopla (hoje, Istambul) para matar uns animais ferozes, solicitou a colaboração de adivinhos e feiticeiros chamados adsincani.

Na literatura ainda existem outras denominações que em nada lembram a suposta origem egípcia ou grega. Na Holanda, a denominação inicial de egyptir desapareceu a partir do século XVI, usa-se apenas denominação heiden (pagão) idêntica denominação que existia também na Alemanha.

Até hoje a origem[5] dos ciganos permanece em autêntico mistério, envolto em diversas lendas e fantasias. Somente no século XVIII o assunto começou a obter alguma seriedade, quando os linguistas concluíram que eram originários da Índia. Há evidente parentesco entre as línguas ciganas e o sânscrito.

O termo genérico "cigano"[6] é criado na Europa do século XV e, ainda hoje é adotado, apenas por falta de um outro melhor. Os próprios ciganos, porém, costumam usar autodenominações diversas.

Há, pelo menos três grandes grupos, os Rom (ou Roma) que falam a língua romani e são divididos em vários subgrupos, como os kalderash, matchuaia, lovara, curara e outros. São predominantes nos países balcânicos, a partir do século XIX e migraram também para outros países europeus e para as Américas.

Os Sinti que falam a língua sintó, são mais encontrados na Alemanha, Itália e França, onde também são denominados de manouch.

Os calon ou kalé, que falam a língua caló, são os ciganos ibéricos que vivem principalmente em Portugal e Espanha, onde são conhecidos como gitanos, com passar do tempo foram deportados ou migraram para América do Sul.

Entre os subgrupos, cujos nomes derivam, muitas vezes, de antigas profissões como kalderash que significa os caldeireiros, os ursari, os domadores de ursos, ou de procedência geográfica de Moldovaia, Piemontesi.

Desde o século XVIII costuma-se atribuir aos ciganos apenas, uma única língua comum, a romani, parcialmente de origem indiana, porém, abriga palavras de origem persa, turca, grega, romena e de outros países por onde passaram.

Segundo Fraser, não existe um romani padronizado, único, mas somente na Europa[7], os ciganos fariam cerca de sessenta ou mais dialetos diferentes.

Os Rom são os ciganos mais estudados e descritos, principalmente os Kalderash e os Lovara, inclusive no Brasil[8], costumam considerar-se a si próprios ciganos autênticos, ciganos nobres e classificar os outros apenas como ciganos espúrios, de segunda ou terceira categoria.

Na Constituição Federal brasileira de 1988 existem dispositivos que, por extensão, dizem respeito às minorias ciganas, como o artigo, incisos I e IV, e o artigo 5º, caput e incisos XLII, XV e, ainda, o artigo 215 e 216[9].

Garante o texto constitucional vigente os mesmos direitos aos ciganos de qualquer cidadão não cigano. Após 1988 ocorreram algumas mudanças. A Constituição Federal do Brasil de 1988 atribuiu ao Ministério Público Federal também a defesa dos direitos e interesses indígenas (CF/1988, Art. 232), antes atribuição exclusiva da Fundação Nacional do Índio.

Alguns anos depois, a Lei Complementar 75, de 20.05.1993, ampliou ainda mais a ação do MPF ao atribuí-lo também a proteção e defesa dos interesses relativos às comunidades indígenas e minorias étnicas (Art. 6, VII, “c”).

Diante disto, em abril de 1994, foi criada a Câmara de Coordenação e Revisão dos Direitos das Comunidades Indígenas e Minorias, incluindo-se nestas também as comunidades negras isoladas ‟(antigos quilombos) e as minorias ciganas. Ficou conhecida como a 6ª Câmara de Coordenação e Revisão do Ministério Público, também chamada a Câmara dos Índios e Minorias (vide em: http://ccr6.pgr.mpf.gov.br). Até hoje ignora-se o que a 6ª Câmara fez em favor dos ciganos[10].

A descrição da aparência física dos ciganos repetiu-se continuamente em estereótipos que remetiam aos traços do ideal grego de beleza. Os cabelos seriam pretos e brilhantes, a pele morena e cor de cobre, olhos vivos e corpos esbeltos e ágeis[11].

Por serem quase sempre arredios à Igreja Católica, os ciganos costumavam realizar seus próprios rituais matrimoniais e funerários, o que não impedia que eventualmente algum casal cigano se unisse de forma regular e lícita sob as bençãos eclesiásticas.

Quando Cervantes, no princípio do século XVII, criou o tema do roubo de crianças pelos ciganos, inaugurou um dos maiores filões da literatura ficcional[12] sobre os ciganos. Acreditava-se que o contraste entre o mundo civilizado e a vida perniciosa dos ciganos, por suposição, incitaria as crianças a apreciar mais a sua própria cultura e obedecer aos seus pais. As estórias contribuíram para imagem muito negativa dos ciganos.

O caráter universalista da Constituição brasileira de 1988, com o princípio de que “todos são iguais perante a lei”, significou importante avanço na garantia dos direitos dos brasileiros, em especial às chamadas “minorias”.

Oportuno lembrar que, sob a égide de uma sociedade democrática e pluralista que seja comprometida com a diferença, o multiculturalismo, a dignidade da pessoa humana, a liberdade e a igualdade a uma classe dominante, as minorias referem-se aos grupos sociais que se distinguem dos demais, por serem erroneamente considerados inferiores, sendo constantemente alvos de discriminação, preconceito social e, não possuindo o devido respeito aos seus direitos de cidadania.

De qualquer forma, é preciso combater o preconceito e a discriminação por motivos étnicos e religiosos, principalmente, em respeito a preservação da dignidade da pessoa humana que é um dos pilares da República Federativa do Brasil.

 

 

Referências

BRASIL, Ministério Público Federal. Câmara de Coordenação e Revisão. Coletânea de artigos: povos ciganos: direitos e instrumentos para sua defesa. 6ª Câmara de Coordenação e Revisão, Populações Indígenas e Comunidades Tradicionais Brasília: MPF, 2020. Disponível em: http://www.mpf.mp.br/pgr/documentos/maio_cigano_coletanea_versao_final.pdf Acesso em 07.12.2021.

CERVANTES, Miguel de. Novela Ejemplares. Madrid: Dist. Mateos y M.E. Editores, 1994. La Gitannilla (1607), p. 31-96.

CRISPIM, Maristela. Instituto Cigano Brasil denuncia ministro da Educação por crime de racismo ao STF. Disponível em: https://agenciaeconordeste.com.br/instituto-cigano-do-brasil-denuncia-ministro-da-educacao-por-crime-de-racismo-ao-stf/ Acesso em 07.12.2021.

FOLETIER, François de Vaux. Mille ans d'histoire des Tsiganes. Disponível em: http://www.guardioesdaluz.com.br/ciganosorigens.htm  Acesso em 07.12.2021.

FRASER, A. 1992. The Gypsies. Oxford: Blackwell Publishers [1998. História do Povo Cigano, Lisboa: Editorial Teorema] -- 1992b. “The Rom Migrations”, Journal of the Gypsy Lore Society 5, Vol. 2, nº 2, pp. 131-145.

MACHADO, Maria Costa Neves. Direito à diferença cultural. Curitiba: Juruá, 2010.

MARÉGA, Camila; PRESTES, Jéssica Melo. Ciganos no Período Tudor. Disponível em: https://tudorbrasil.com/2015/03/23/ciganos-no-periodo-tudor/ Acesso em 07.12.2021.

MOONEN, Frans. Anticiganismo: Os ciganos na Europa e no Brasil. 3ª edição. Recife: 2011. Disponível em: http://www.educadores.diaadia.pr.gov.br/arquivos/File/pacto_nacional_em/anticiganismo.pdf Acesso em 07.12.2021.

PORTELA, Graça. Ciganos no Brasil: saúde e preconceitos. Disponível em:  https://www.icict.fiocruz.br/content/ciganos-no-brasil-sa%C3%BAde-e-preconceitos   Acesso em 07.12.2021.

Sociedade, USP Online Destaque. Publicado em 02.12.201. Difusão da história e cultura ciganas é arma na luta contra o preconceito. Disponível em: https://www5.usp.br/noticias/sociedade/difusao-da-historia-e-cultura-ciganas-e-arma-na-luta-contra-o-preconceito/ Acesso em 07.12.2021.

TEIXEIRA, Rodrigo. Corrêa. História dos Ciganos no Brasil. Recife: Núcleo de Estudos Ciganos, 2008. Disponível em: http://www.dhnet.org.br/direitos/sos/ciganos/a_pdf/rct_historiaciganosbrasil2008.pdf Acesso em 07.12.2021.

 


[1] “Em 1499, os reis católicos espanhóis ordenaram que os ciganos abandonassem suas terras. Proibiram, também, que usassem a língua e os trajes ciganos, com a intenção de incorporá-los à vida cotidiana do reino”, contou Maria Luiza Tucci Carneiro, coordenadora do LEER. Expulsos da Espanha, fugiram para Portugal – onde foram vetados de entrar e expulsos os que já estavam lá, em 1526. Foram enviados para Angola e para o Brasil, mas aqui também foram perseguidos ao longo dos anos. Segundo a professora da FFLCH, durante o primeiro governo Vargas os ciganos foram impedidos de receber vistos de entrada e eram avaliados como indesejáveis.

[2] As leis contra os ciganos: Até 1783, uma pessoa poderia ser legalmente condenada à morte na Inglaterra, apenas por ser cigana. Exatamente, nenhum crime precisaria ser cometido; apenas por existirem, os ciganos estariam quebrando a lei. Este aspecto da situação jurídica dos ciganos, foi trazido a atenção do público em 1783, a partir de uma onda de interesse em acabar com o ato parlamentar de 1562, que fazia com que tal ‘’punição’’ fosse possível. O ato elisabetano estipulava que: Toda e qualquer pessoa que for vista ou encontrada dentro do território do reino de Inglaterra ou País de Gales em qualquer companhia ou camaradagem com vagabundos comumente chamados ou autointitulados de ‘’egípcios’’, serão por este motivo, considerados e condenados como criminosos e portanto, segundo as leis deste reino, deverão recair sobre eles punição mediante julgamento, pelo conselho ou habitantes do condado local, sendo apreendidos por medita tem língua (apenas aplicado em casos criminais e não civis), e deverão perder os privilégios e benefícios do santuário e clero.

[3] A exclusão e o preconceito sempre acompanharam os ciganos por onde quer que eles passassem. De escravizados por cinco séculos nos antigos territórios que formam a atual Romênia, a perseguidos e assassinados pelo regime nazista de Hitler. Infelizmente, esta história de discriminação não chegou ao seu final.

[4] "Há uma lenda cigana, passada por gerações e gerações, que diz que o povo cigano foi guiado por um rei no passado e que se instalou em uma cidade da Índia chamada Sind onde era muito feliz. Mas em um conflito, os muçulmanos o expulsaram, destruindo toda a cidade. Desde então foi obrigado a vagar de uma nação a outra...

 

[5] Alguns atribuem a sua origem à Índia, outros ao Egito. A maior dificuldade é devida não se ter “a história escrita, apenas a oral”, como explica Azevedo, que ainda chama a atenção para a quantidade de lendas, mitos, fantasias e construções do senso comum que cercam os povos ciganos no imaginário popular – “isto mantém e reforça preconceitos e estigmas, discriminação, desigualdades e exclusões”, afirma Azevedo. Mesmo assim, é possível identificar grupos de ciganos antes do século X, na Turquia, nos países balcânicos (Albânia, Bósnia e Herzegovina, Bulgária, Grécia, República da Macedônica, Montenegro, Sérvia, Kosovo, além da porção turca no continente europeu), e na Croácia, Romênia, Eslovênia e a Áustria. Na Europa Ocidental, a presença inicial dos povos ciganos é reconhecida na Alemanha, em 1417. Ainda no século XV, eles são encontrados na França, Grécia, Espanha e Portugal, dentre outros países.

[6] O termo cigano carrega muitos preconceitos. Em 1971, no I Congresso Mundial Romani, sediado em Londres, as palavras Romani e Roma (“Rom” na língua cigana significa homem) foram escolhidas para definir esse grupo étnico. A terminologia Roma foi amplamente aceita por toda a União Europeia, apesar de alguns grupos ainda usarem a palavra cigano para descrever a si mesmos.

[7] O dia 8 de abril foi oficializado como o Dia Internacional do Cigano, declarado em 1990, in Serock, Polônia, no quarto encontro mundial dos ciganos. Muitas cidades na Europa organizam atividades e eventos durante esse dia. No Reino Unido, a cidade de Glasgow organiza uma parada anual, desde 2013, onde ciganos e não-ciganos marcham juntos contra o racismo e o preconceito, celebrando a diversidade cultural.

[8] Os dois maiores Estados do país – São Paulo e Rio de Janeiro, pode se ter uma ideia de como estão espalhados os povos ciganos no Brasil. Dos 92 municípios do Rio de Janeiro, 16 possuem acampamentos de ciganos. Desses, apenas Carapebus tem local específico para este fim. Já o estado de São Paulo, somente 33 cidades, das 645 existentes no estado, possuem acampamentos, sendo que oito destinam uma área específica para o acampamento de ciganos.

[9] O Instituto de Cultura, Desenvolvimento Social e Territorial do Povo Cigano do Brasil (ICB), com sede em Caucaia, na Região Metropolitana de Fortaleza (RMF), enviou, no Ofício Nº 0059/ICB/STF2020 ao Supremo Tribunal Federal (STF), nesta segunda-feira (25.05.2020), uma denúncia contra o ministro da Educação Abraham Weitraub. A denúncia está amparada no art. 5º acompanhado dos Incisos III, VIII, X, XLI e XLII-CF e artigo 140 do Código Penal. Na reunião, o ministro declarou:” odeio o termo ‘povos indígenas ‘, odeio esse termo. Odeio. O ‘povo cigano’. Só tem um povo nesse país. Quer, quer. Não quer, sai de ré”. Para o ministro da Educação, no Brasil existem “privilégios” direcionados a alguns “povos”.

[10] O Projeto de Lei 2703/20 institui o Estatuto dos Ciganos no Brasil. O texto em análise na Câmara dos Deputados define, entre outros pontos, que a discriminação contra os ciganos constituirá crime de racismo, nos termos da Lei Caó. Como foi distribuída inicialmente a mais de três comissões permanentes (Cultura; Educação; Seguridade Social e Família; Direitos Humanos e Minorias; Finanças e Tributação; e Constituição e Justiça e de Cidadania), a proposta será agora analisada por um colegiado criado especialmente com essa finalidade. Depois, seguirá para o Plenário.

[11] Apesar dos ciganos terem pouca representatividade nos veículos de comunicação, existiram e existem muitas pessoas ciganas famosas como Elvis Presley, Charlie Chaplin, Michael Caine, Pablo Picasso, Shayne Ward, o presidente brasileiro Juscelino Kubitscheck.

[12] O maior axioma do Povo Cigano diz simplesmente: "A sabedoria é como uma flor, de onde a abelha faz o mel e a aranha faz o veneno, cada uma de acordo com a sua própria natureza".

GiseleLeite
Enviado por GiseleLeite em 14/01/2022
Código do texto: T7429001
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2022. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.