Considerações sobre o direito de vizinhança
Os direitos de vizinhança são previsões legais que têm por objeto regulamentar a relação social e jurídica que existe entre os titulares de direito real sobre imóveis, tendo em vista a proximidade geográfica entre os prédios ou entre apartamentos num condomínio de edifícios.
Os prédios não precisam necessariamente ser contíguos ou vicinais, porém a atividade exercida possa de alguma forma repercutir em outro prédio.
Para efeitos legais, quem sofrer a repercussão nociva, será reputado vizinho, independentemente de confrontar com o prédio ou não.
Os direitos de vizinhança são criados por lei e, não visam aumentar a utilidade do prédio, mas sim reputados necessários para a coexistência pacífica entre os vizinhos. Estas duas características distinguem o direito de vizinhança do direito real sobre coisa alheia denominado de servidão predial, cuja regulamentação se encontra nos arts. 1378 até 1389 do C.C./2002.
O direito de preservação da pessoa contra a utilização da posse ou da propriedade alheia de modo a não causar dano à segurança ou sossego ou a saúde, é exercido ainda em caráter de reciprocidade.
É sabido que o uso regular de um direito reconhecido não constitui ato ilícito, conforme se verifica da análise do art. 188, I do C.C.. Desta forma, o exercício irregular de um direito enseja o ato ilícito denominado tecnicamente de abuso de direito. Alguns doutrinadores apontam que o abuso de direito, a priori não se revela como ilícito, mas com o tempo e, por infringir a esfera jurídica de outrem, passa a se configurara como ato ilícito.
Abusa do direito de propriedade de imóvel quem a utiliza nocivamente, pondo em risco ou afetando a segurança, o sossego e a saúde dos donos dos prédios vizinhos.
Portanto, define-se o uso da propriedade conforme prevê o art. 1.228 do C.C. privilegiando sua função social com efetivo interesse dói proprietário ou a sua comodidade e, nunca sendo utilizada como instrumento de vingança, capricho ou com o fito de perturbar ou causar dano a outrem.
É abuso de direito, por exemplo, construir muro altíssimo apenas para fazer sombra sobre o prédio vizinho ou para atrapalhar a navegação aérea; ou construir um poço profundo para suprimir as águas dos demais adquirentes do lote, ou não permitir a passagem forçada para o proprietário que necessite escoar sua produção agrícola, encontrando-se a estrada pública em péssimas condições, entre outros comportamentos igualmente reprováveis.
Todavia, há casos que se tem que tolerar as interferências à propriedade em razão do interesse público (art. 1.1278 C.C.) podendo requerer a qualquer tempo a redução ou a própria cessação da atividade considerada como nociva, basta que se prove que tal fato não traria prejuízo à atividade em prol do interesse público.
O direito de vizinhança é uma restrição ou limitação ao direito de propriedade em benefício do direito privado. Santiago Dantas preleciona: “para que haja conflito de vizinhança é sempre necessário que um ato praticado pelo possuidor de um prédio, ou o estado de coisas por ele mantido, vá exercer seus efeitos sobre o imóvel vizinho, causando prejuízo ao próprio imóvel ou incômodos ao seu morador.”
O fundamento da responsabilidade nessa seara, não se esteia na culpa e assenta-se efetivamente na responsabilidade objetiva.Assim, se o ato praticado no imóvel vizinho repercute de modo prejudicial e danoso ao outro, impõe-se o dever de remover o mal causado ou indenizar o dano experimentado, a exemplo da construção de um imóvel em terreno contíguo, cujo sistema de estaqueamento cause trincas, fissuras, rachaduras no imóvel vizinho.
Atenção! Imóveis vizinhos não são apenas os confinantes, mas também os que se localizam nas proximidades desde que o ato praticado por alguém em determinado prédio vá repercutir diretamente sobre o outro, causando incômodo ou prejuízo ao seu ocupante.
Compreende o direito de vizinhança: o uso anormal da propriedade; as árvores limítrofes; a passagem de cabos e tubulações, as águas , os limites entre prédios, o direito de tapagem e o direito de construir ( arts. 1.277 ao 1.313 do C.C. de 2002).
Procura a lei coibir o uso anormal da propriedade lançando mão por vezes da chamada tutela inibitória que impõe ao réu (proprietário-infrator) condenado uma obrigação de não-fazer, ou ainda, uma multa cominatória (astreinte).
Aponta a doutrina alguns critérios seguros para efeito de composição dos conflitos. São eles: a pré-ocupação, a natureza da utilização, a localização do prédio, as normas relativas às edificações e os limites de tolerância dos moradores vizinhos. É óbvio que entre um mero detentor e um proprietário, esse último goza de maiores prerrogativas legais para impor o respeito ao direito de vizinhança.
A pré-ocupação ou precedência significa que ao analisar o conflito, o juiz verificando qual dos vizinhos se instalou antes no local. Analisará, ipso facto, se houve inclusive a intenção danosa.
Com isso, se alguém fixa residência nas imediações de uma fábrica em zona industrial, e sabidamente reconhece de antemão tais condições, não lídimo reclamar das condições ambientais do local. Assim, havendo conflito de vizinhança, o juiz não se limitará a analisar apenas a pré-ocupação, mas igualmente outros elementos para melhor formar seu convencimento.
O barulho é sem dúvida um dos motivos corriqueiros de atritos entre vizinhos e há até engenheiros e ambientalistas que fornecem uma tabela contendo os níveis de ruídos em decibéis, e só a guisa de curiosidade, uma banda de rock em geral produz 110 dB enquanto que a decolagem de um jato a 100 metros de distância produz 125 dB; ( nesse sentido o TJ-RS, 18ª. Câmara Cível, relator André Luiz Planella Villarinho, decidiu no processo 70.003.573.029 que os ensaios da banda de rock estão proibidos em uma residência de Pelotas, por incomodar os vizinhos).
O critério basilar a ser adotado para a composição do conflito é o de uso normal em confronto com o uso anormal. Mas a questão é complexa e subjetiva, pois não há marco divisório nítido entre a normalidade e anormalidade. E devem ser levados a termo, o fator objetivo que é o ato causador do conflito e, o outro fato subjetivo , concernente à pessoa que se vê prejudicada.
É certo que para se viver em sociedade, é mesmo preciso reconhecer limites e tolerar e, o ponto de equilíbrio nem sempre, é fácil de se alcançar. A jurisprudência tem procurado fixar remos capazes de aferir a normalidade no uso da propriedade:
“A utilização indevida de apartamento em edifício estritamente residencial como escritório de empresa ou mesmo de atividade profissional pelo locatário, importa em uso nocivo da propriedade pro prejudicar a segurança e, sobretudo o sossego de moradores dos demais apartamentos.” (RT 708\:159).
“A responsabilidade civil pelos danos de vizinhança é objetiva, conduzindo a obrigação de indenizar independentemente da existência de culpa, se da atuação nociva do agente resultar dano efetivo. É necessária a comprovação de nexo causal entre a ação do vizinho e o dano sofrido pelo outro como pressuposto essencial para caracterização do dever de indenizar recaindo o ônus da prova, tratando-se se de ação de indenização ao autor” (TA/MG, Ap. Civ. 259 054-3, relatora Desa. Jurema Brasil, DJ 1.7.98).
Recentemente a cantora Simone recebeu do STJ a confirmação das decisões de primeira e segunda instâncias que obrigaram sua vizinha, a ambientalista Fernanda Colagrossi, a retirar de seu apartamento os vinte e cinco cães que lá mantinha. Pela mesma decisão, Fernanda poderia manter apenas três cães no imóvel, é a decisão tomada unanimemente pela 3ª. Turma do STJ e põe fim a lide que vinha sido debatida na Justiça desde de 1998.
A ministra Nancy Andrighi, relatora do processo acima, afirmou que a ambientalista, apesar de não ser proprietária do imóvel, é parte legítima, uma vez que a obrigação de não causar interferência prejudiciais à segurança , ao sossego e à saúde surge da qualidade de vizinho e, não de proprietário”. (RESP 622.303).
Vamos mormente definir mais amiúde alguns relevantes conceitos para o tema, como por exemplo, segurança que tem haver com solidez, estabilidade material do prédio e a incolumidade pessoal de seus moradores. Deve ser afastado qualquer perigo pessoal ou patrimonial, como por exemplo, a instalação de indústria de inflamáveis e explosivos, ou uma de produtos químicos nocivos a saúde.
Sossego é bem jurídico inestimável, componente dos direitos da personalidade, intrinsecamente ligado ao direito à privacidade. Não é a ausência completa de ruídos, mas a possibilidade de afastar ruídos excessivos que comprometam a incolumidade da pessoa.
É direito dos moradores a uma relativa tranqüilidade na qual bailes, festas, algazarras, animais e vibrações intensas provenientes de vizinhos acarretem enorme desgaste a paz do ser humano.
A violação do sossego agride o equipamento psíquico do homem e deve ser encarado como ofensa ao direito à integridade moral do homem, conceito muito próximo ao direito à intimidade, à imagem e a incolumidade mental.
Afora, os danos extrapatrimoniais os ruídos impedem o repouso, acabando por comprometer a saúde e a própria segurança do indivíduo.
O art. 1.277 do C.C. possui rol taxativo (numerus clausus) e não admite interpretação extensiva. Desta forma, se as interferências prejudicais causadas não repercutirem sob o trinômio ( saúde – segurança- sossego) a questão extrapolará do conflito de vizinhança.
Ressalte-se que a segurança, sossego e saúde são direitos da personalidade inerentes a qualquer ser humano e não apenas aos vizinhos. E o mau uso da propriedade dá-se pela prática de atos ilegais, abusivos ou excessivos ( não raros classificados na esfera criminal como contravenções ou crimes, o mais comum o crime de dano).
Atos excessivos são aqueles praticados com finalidades legítimas porém ainda assim gerando danos anormais e injustos passíveis de indenização em sede de responsabilidade objetiva.
Assim é sábia a popular parêmia: “é vedado exercer nossos direitos com sacrifícios dos direitos alheios” ou ainda, “o direito de um acaba quando começa o direito do outro”.
O limite do uso normal ou anormal da propriedade não pode ser teorizado , o art. 1.277 do C.C. disciplina a questão justamente pelas exceções.
Temos também como uso anormal, o não-uso ou a subtilização da propriedade de forma a causar conflitos de vizinhança. É o caso de imóvel usado com desídia ou legado ao abandono.