Admirável mundo velho ou abominável mundo novo.
Resumo: A obra de Huxley “Admirável Mundo Novo” nos mostra os caminhos futuros da sociedade humana, apesar de ser uma obra de ficção científica, onde a trivialização dos direitos humanos delapida a dignidade humana na atualidade.
Palavras-chave: Direitos Humanos. Futuro. Utopia. Sociologia. Filosofia. Literatura.
Em 1932, Aldous Leonard Huxley[1] (1894-1963) lançou sua obra intitulada “Admirável Mundo Novo” que propôs uma utopia futurista que vem progressivamente se concretizando na contemporaneidade. Para os leitores e os adeptos da ficção científica[2] o autor já traçava uma perspectiva para humanidade que vivenciamos de forma atemporal e avassaladora.
A obra não trata apenas de uma civilização massificante, mas de diversidade, resiliência, liberdades e individualidade. Não importa o contexto onde vivemos, mas há esperança para lutar por mudanças e aperfeiçoamentos. Não há como admitir regras rígidas disciplinarem comportamentos. E nem adianta aprisionarem os pensamentos, a criatividade, a imaginação e a nossa história.
Devido a sua atemporalidade e pela instigante proposta de Huxley sua obra propõe uma vigorosa interface entre filosofia e literatura e, principalmente por permitir correspondências múltiplas, tanto temáticas como culturais. A trama central narra a história de Bernard Marx que descobre que, para além do mundo que conhecia havia uma ilha onde moravam pessoas que viviam no passado, ou seja, dentro do próprio presente do protagonista[3].
Na obra retrata-se que as crianças foram produzidas por um método que permite a produção de gêmeos idênticos, a partir de um único óvulo. O que garantia a massificação, onde todos são iguais e são hipnotizados e condicionados a se conformarem com o tipo de vida para o qual estão destinados.
Cada casta humana usava determinada e específica cor, sendo da seguinte maneira disposta e separada, a saber: a classe mais alta (chamada de Alfa) , cor cinza; a classe Beta, cor amora; classe Gama (cor verde); classe Delta (cor cáqui) e Ípsilon (a classe mais baixa, na base, que usava preto).
Em verdade, tal hierarquia nos faz recordar de Michel Foucault em sua reflexão sobre a cidade pestilenta e as duas possibilidades, a saber: a festa e a utopia da cidade perfeita[4].
A peste era representada pela mistura de poder e análise. Em torno da peste que surgiu na ficção literária da festa, onde as leis são suspensas e o frenesi domina o tempo todo e a tudo mistura literalmente tudo e todos, abandonam suas identidades estatutárias[5].
O sonho político da festa era o contrário da festa coletiva, mas a vigência das divisões estritas e permitia a intromissão do regulamento até mesmo nas mais finas tramas da existência humana, o que permite o funcionamento capilarizado do poder.
Não há as máscaras que se colocam e se retiram, mas a determinação a cada um de seu verdadeiro nome e essência, no lugar de seu verdadeiro corpo e doença[6]. A peste na tradução da imaginária desordem tem conceito correlato tanto no viés político como médico (corrupção e patologia).
Os conceitos de “pai” e “mãe” são meramente históricos. Relacionamentos emocionais intensos ou prolongados são proibidos e considerados anormais. A promiscuidade é moralmente obrigatória e a higiene, um valor supremo.
Não existe paixão nem religião. Mas, Bernard Marx tem uma infelicidade doentia: acalentando um desejo não natural por solidão, não vendo mais felicidade nos prazeres infinitos da promiscuidade compulsória, Bernard quer se libertar. Numa visita a um dos poucos remanescentes da Reserva Selvagem, onde a vida antiga, imperfeita, subsiste, pode ser um caminho para curá-lo. Paradoxalmente profético, “Admirável Mundo Novo” é uma das obras mais influentes do século XX.
O terror do contágio redunda em revoltas e crimes dos mais diversos que vai da mera vagabundagem até à deserção de pessoas que aparecem e desaparecem, com naturalidade num pleno ciclo de desordem[7].
Segundo Huxley a cidade perfeita[8] só se concretizaria se houvesse uma sociedade estamental de caráter disciplinar para sustenta-la. O que certamente garantiria a permanência do status quo, e produziria, afinal tranquilidade duradoura.
O modus vivendi do homem moderno contemporâneo fascinado com as descobertas científicas e tecnológicas e seu constante questionamento, já revela a grande preocupação quanto ao destino da humanidade.
Presenciamos, diuturnamente, pessoas hipnotizadas por seus celulares deixando de lado as três atividades fundamentais, a saber: o labor, o trabalho e a ação. O homem se identifica cada vez mais como animal laborans na medida que, consegue com seu trabalho a provisão de sua sobrevivência e ressalta, ainda o processo biológico, como algo que consumo seu metabolismo
Lembremos que nos idos de 1930 representou um contundente escândalo negar Deus, família quando o puritanismo e a organização social vigente na época. O autor escreveu sua obra em 1931, logo após a crise de 1929, quando o nazismo e o stalinismo estavam em plena ascensão e o estilo de vida norte-americano era o principal modelo para o mundo.
E, previu que no futuro existiria a ditadura sem o uso de violência, apenas com o esvaziamento do indivíduo, promovido por alienação e a aceitação do absurdo e um mar de condicionamentos. Seria, enfim, um admirável mundo sempre igual e cada vez menos complexo, além de linear e absolutamente previsível.
Já com o homo faber é aquele que constrói o mundo ao seu redor, dando vida e criação às coisas artificiais que contrastam om a natureza ambiental e, ultrapassam a finitude dos indivíduos em particular.
O termo homo faber[9] designa o homem enquanto agente da obra (work), enquanto obra é a atividade humana que cria um mundo artificial de coisas, que permite ao homem estabelecer sua moradia na Terra. O homo faber é o humano enquanto produtor de coisas, fabricante de objetos existentes no mundo, daí a condição humana da obra ser a mundanidade (worldliness). As coisas que o homo faber produz, em sua mundanidade, são também mais ou menos duráveis; geram uma estabilidade e solidez sem as quais seria impossível ao mundo abrigar a vida humana.
O homo faber, nos informou Arendt, apresenta uma lógica de meios e fins. O produto da obra é ao mesmo tempo fim (do processo de fabricação) e meio para produção de outro fim. As construções de cercas que separavam as propriedades, de muros ao redor das cidades e, mesmo de legislação para proteção dos cidadãos são, com efeito, obra do homo faber. Daí pode-se afirmar também que o direito era condicionado pela lei, que lhe conferia um mínimo de estabilidade.
A ascensão do homo faber na política carrega em si a lógica das relações meio/fim. O que acarreta a impossibilidade de se descobrir o valor intrínseco de quaisquer coisas, porque elas se tornam sempre meios para outros fins que, por sua vez, se convertem em outros meios, e assim sucessivamente.
A referida lógica de consumo, da necessidade biológica, transforma o direito em mero instrumento de planejamento e o saber jurídico em mera tecnologia desprovida de qualquer sentido mais profundo; ou seja, o direito tem seu conteúdo totalmente contingente, em uma radicalização do que já ocorria com a ascensão do homo faber.
O animal laborans[10] converte o direito em um receptáculo vazio que pode receber qualquer conteúdo e cuja validade depende somente de positivação. Em síntese, o próprio direito, ao cabo, se torna um mero objeto de consumo, descartável quando não mais atender ao reino da necessidade.
Destacou Ferraz Júnior a trivialização dos direitos humanos, pois apesar de positivados multiplicarmente em declarações e Constituições pelo mundo afora, não se torna efetivo e eficaz pois, cada vez mais depende de outros conteúdos que lhe atribuam significação jurídica. Pois, por si mesmos, são incapazes de fornecer as razões para agir, dependendo invariavelmente de regras de interpretação, distinções formais, ficções jurídicas que sirvam de meios, mas que lhes são alheias, porém, acabam por se converter em objetivos da vida político-jurídica.
Nem os direitos do homem escaparam de ser mais um dos objetos descartáveis de consumo e cuja permanência, não pode mais se basear na natureza, no costume, na razão, na moral e, passa então, a fulcrar-se apenas na uniformidade da própria vida social, com sua notável capacidade de ser indiferente e indefectível.
Pode-se afirmar que a lógica do animal laborans ao se tornar o humano que não é mais do que mero animal que luta por sua sobrevivência, transforma os direitos humanos em algo perecível e descartável, de forma que, todas as vezes que estes colidirem por qualquer razão, estes em prol do consumo, serão desprestigiados. Pois seu conteúdo se tornou enigmaticamente esvaziado e, portanto, admissível em critérios próprios e customizados pelos animal laborans.
A trivialização dos direitos humanos[11] na era contemporânea significa que não conseguem atualmente estar num patamar de igualdade com outros direitos garantidos, ainda que menos relevantes, em textos jurídicos e legais nacionais. Há a possibilidade de o país internalizar os direitos humanos em seu ordenamento, mesmo sem obter eficácia, a depender de conteúdos, métodos e formas jurídicas.
O mundo do homo faber é constituído de objetos criados por ele próprio que, se de um lado apresenta o homem como o criador, por outro lado, há o homem que faz dessa empreitada, a violação da natureza. A fabricação que com seus objetos vem a destruir, poluir e aniquilar o meio ambiente[12].
O mundo contemporâneo consagrou o labor e o trabalho como preciosos dentro da dinâmica capitalista que se identifica com uma vida voltada para a produtividade, onde o trabalho deve gerar cada vez mais lucros, ou seja, o homo faber é explorado, tanto a força como a violência o banaliza.
O trabalho não apenas consome o tempo do homem, mas o submete e o limita, restringindo à sua subsistência, acarretando constante perda da capacidade de pensar[13], refletir, agir e, até mesmo, ter controle sobre os objetos que ele mesmo criou, fabricou.
Vejam a biografia de Alberto Santos Dumont que sempre fora contrário ao uso militar de seus inventos, incluindo os dirigíveis e aviões. E, foi acometido de grave sentimento culpa após a Primeira Grande Guerra Mundial que vitimou mais de vinte e cinco mil pilotos franceses, britânicos e alemães, além de expressivo número de pessoas no solo.
Com a saúde debilitada, não suportou presenciar em 1932 os aviões da tropa federal atacando as tropas paulistas na Revolução de 1932[14], culminando com o seu suicídio em 23 de julho do mesmo ano.
Hannah Arendt[15] já identificava o homo faber como criador do artifício humano, como sendo o habitual destruidor da natureza. O grande perigo é o homem se tornar apenas o animal laborans e homo faber, recordando que tais expressões já eram usadas na Antiguidade Clássica para designar os escravos e atividades desqualificadas na medida em que só é o homem aquele que tempo para pensar e refletir.
Acrescente-se, ainda, que a elite vigente não precisa mais trabalhar para sobreviver, posto que viva de aplicações no mercado financeiro. Em verdade, conclui-se que o modus vivendi do homo faber implica em sérios prejuízos quanto à sustentabilidade do planeta, com o desenvolvimento da ciência e da tecnologia, cujos resultados são imprevisíveis, principalmente por causa da perda da capacidade de reflexão crítica[16].
No mundo de Huxley apesar de as classes superiores receberem maior quantidade de oxigênio (considerada suficiente) para desenvolver sua inteligência. Atualmente, fisiologicamente, acontece em nosso presente, onde privamos de educação e cultura as classes menos favorecidas.
Pierre Bourdieu[17] em seus “Escritos de educação” (1998) relatou sobre a educação onde apontou que a falta de oxigênio se dá pelos mecanismos de reprodução que acontece na escola, pois o que se observa são os crescentes mecanismos de eliminação: a acessibilidade rigor da desigualdade sobre os sujeitos das diferentes classes sociais.
Pierre Bourdieu produziu a partir de 1960 e durante quase quarenta e cinco anos, um conjunto de análises no âmbito da sociologia da educação e da cultura que influenciou decisivamente algumas gerações de intelectuais, obtendo o reconhecimento de pesquisadores, estudantes e ativistas que atuam em várias outras esferas da sociedade.
O filósofo questionou as sociedades de classes, temática que ainda persegue muitos dos atuais intelectuais, questionando como e o por que pequenos grupos de indivíduos conseguem se apoderar dos meios de dominação, permitindo nomear e representar a realidade, construindo categorias, classificações e visões de mundo às quais todos os outros são obrigados a se referir. Compreender o mundo, para o filósofo, converte-se em poderoso instrumento de libertação, é esse procedimento que ele realiza, dentro outros, domínios, no educacional.
Lembremos que a cultura vem a ser um sistema de significações hierarquizadas, tornando-se um móvel de lutas entre grupos distintivos entre classes sociais. A dominação cultural se expressa na fórmula segundo a qual a cada posição na hierarquia social corresponde uma cultura específica (elitista, média, de massa), caracterizadas respectivamente pela distinção, pela pretensão e pela privação.
Definida por gostos e formas de apreciação estética, a cultura é central no processo de dominação; é a imposição da cultura dominante como sendo “a cultura” que faz com que as classes dominadas atribuam sua situação subalterna à sua suposta deficiência cultural, e não à imposição pura e simples.
O sistema de ensino desempenha papel de destaque na reprodução dessa relação de dominação cultural, funcionando como chancela de diferenças culturais e linguísticas já oferecidas, antes da escolarização, no quadro da socialização primeira, que é necessariamente diferencial, segundo a inscrição das famílias nas diferentes classes sociais.
Bourdieu construirá sua trajetória analítica no domínio da sociologia da educação procurando opor-se a um idealismo como o preconizado por Alain (Emile Chartier[18]) em que a reflexão é destituída de qualquer fundamento histórico, como na velha tradição francesa.
Em artigo de 1966, “A escola conservadora: as desigualdades frente à escola e à cultura”, rompe com as explicações fundadas em aptidões naturais e individuais e critica o mito do “dom”, desvendando as condições sociais e culturais que permitiriam o desenvolvimento desse mito.
Bourdieu constrói seu esquema analítico relativo ao sistema escolar e às relações não explícitas que o ancoram em uma longa trajetória que envolve análises empíricas objetivas, centradas em estatísticas da situação escolar francesa. Já em 1964, em Les étudiants et leurs études (Os estudantes e seus estudos) e Les héritiers. Les étudiants et la culture (Os herdeiros).
Os estudantes e a cultura), escritos com Jean-Claude Passeron[19], examina como os estudantes se relacionam com a estrutura do sistema escolar e como são nele representados, e constata a desigual representação das diferentes classes sociais no sistema superior. Investiga a cultura “legítima”, aquela das classes privilegiadas que é validada nos exames escolares e nos diplomas outorgados, e o ensino, aquele que autentica um corpo de conhecimentos, de saber-fazer e, sobretudo, de saber dizer, que constitui o patrimônio das classes cultivadas.
Ao afirmar que o sistema escolar institui fronteiras sociais análogas àquelas que separavam a grande nobreza da pequena nobreza, e esta dos simples plebeus, ao instaurar uma ruptura entre os alunos das grandes escolas e os das faculdades (ao analisar o campo universitário francês e o papel das Grandes Écoles), Bourdieu desvela a crueza da desigualdade social e, ao mesmo tempo, como ela é simulada no sistema escolar e entranhada nas estruturas cognitivas dos participantes desse universo – professores, alunos, dirigentes. (In: HEY, Ana Paula; CATANI, Afrânio Mendes. Bourdieu e a educação. Disponível em: https://revistacult.uol.com.br/home/bourdieu-e-a-educacao/ Acesso em 22.01.2020).
O sistema escolar segundo a ideologia na escola libertadora, quando, ao contrário, tudo tende a mostrar que ele é um dos fatores mais eficazes de conservação social, posto que forneça a aparência de ilegitimidade às desigualdades sociais e sanciona a herança cultural e o dom social tratado como dom natural.
Huxley ainda estabelece o limite para o avanço das ciências para a manutenção da estabilidade dessa almejada sociedade perfeita. Paradoxalmente, a Ciência que teoricamente deveria servir para aliviar a dor e o sofrimento humano, foi submetida à razão instrumental.
Lembremos que tudo é produzido para servir ao sistema de manutenção do status quo. Aliás diversos filósofos e sociólogos já nos alertaram sobre o mito da neutralidade científica.
Previu o admirável Huxley uma vida linear, confiável, sem dor e nem ansiedade, traduzindo uma vivência sem emoção, quando perdemos a lição dos gregos que informava que a dor faz parte da vida e, que a noção de felicidade associada apenas ao que é útil e confortável, é vazia e angustiante.
Referências:
ARENDT, Hannah. A condição humana. São Paulo: Forense, 2005.
BATISTA, Angelina. A violência: ensaio acerca do "homo violens" Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1414-32831999000200022 Acesso em 22.01.2020).
CILENTO, Angela Zamora. 4 Pontos Cardeais em Admirável Mundo Novo, de Huxley. In: Revista Filosofia, Ciência e vida. Edição 156. Editora Escala.
DE SOUZA, Vinícius Silva. O homo faber segundo Hannah Arendt. Disponível em:https://repositorio.unb.br/bitstream/10482/14051/1/2013_ViniciusSilvaSouza.pdf Acesso em 22.01.2020).
FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio. A trivialização dos direitos humanos. Novos Estudos Cebrap, São Paulo, n. 28.
FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir. Petrópolis: Vozes, 1989.
HEY, Ana Paula; CATANI, Afrânio Mendes. Bourdieu e a educação. Disponível em: https://revistacult.uol.com.br/home/bourdieu-e-a-educacao/ Acesso em 22.01.2020).
HUXLEY, A. Admirável Mundo Novo. Rio de Janeiro: Record, 1993.
Resumo: A obra de Huxley “Admirável Mundo Novo” nos mostra os caminhos futuros da sociedade humana, apesar de ser uma obra de ficção científica, onde a trivialização dos direitos humanos delapida a dignidade humana na atualidade.
Palavras-chave: Direitos Humanos. Futuro. Utopia. Sociologia. Filosofia. Literatura.
- Introdução
Em 1932, Aldous Leonard Huxley[1] (1894-1963) lançou sua obra intitulada “Admirável Mundo Novo” que propôs uma utopia futurista que vem progressivamente se concretizando na contemporaneidade. Para os leitores e os adeptos da ficção científica[2] o autor já traçava uma perspectiva para humanidade que vivenciamos de forma atemporal e avassaladora.
A obra não trata apenas de uma civilização massificante, mas de diversidade, resiliência, liberdades e individualidade. Não importa o contexto onde vivemos, mas há esperança para lutar por mudanças e aperfeiçoamentos. Não há como admitir regras rígidas disciplinarem comportamentos. E nem adianta aprisionarem os pensamentos, a criatividade, a imaginação e a nossa história.
Devido a sua atemporalidade e pela instigante proposta de Huxley sua obra propõe uma vigorosa interface entre filosofia e literatura e, principalmente por permitir correspondências múltiplas, tanto temáticas como culturais. A trama central narra a história de Bernard Marx que descobre que, para além do mundo que conhecia havia uma ilha onde moravam pessoas que viviam no passado, ou seja, dentro do próprio presente do protagonista[3].
Na obra retrata-se que as crianças foram produzidas por um método que permite a produção de gêmeos idênticos, a partir de um único óvulo. O que garantia a massificação, onde todos são iguais e são hipnotizados e condicionados a se conformarem com o tipo de vida para o qual estão destinados.
Cada casta humana usava determinada e específica cor, sendo da seguinte maneira disposta e separada, a saber: a classe mais alta (chamada de Alfa) , cor cinza; a classe Beta, cor amora; classe Gama (cor verde); classe Delta (cor cáqui) e Ípsilon (a classe mais baixa, na base, que usava preto).
Em verdade, tal hierarquia nos faz recordar de Michel Foucault em sua reflexão sobre a cidade pestilenta e as duas possibilidades, a saber: a festa e a utopia da cidade perfeita[4].
A peste era representada pela mistura de poder e análise. Em torno da peste que surgiu na ficção literária da festa, onde as leis são suspensas e o frenesi domina o tempo todo e a tudo mistura literalmente tudo e todos, abandonam suas identidades estatutárias[5].
O sonho político da festa era o contrário da festa coletiva, mas a vigência das divisões estritas e permitia a intromissão do regulamento até mesmo nas mais finas tramas da existência humana, o que permite o funcionamento capilarizado do poder.
Não há as máscaras que se colocam e se retiram, mas a determinação a cada um de seu verdadeiro nome e essência, no lugar de seu verdadeiro corpo e doença[6]. A peste na tradução da imaginária desordem tem conceito correlato tanto no viés político como médico (corrupção e patologia).
Os conceitos de “pai” e “mãe” são meramente históricos. Relacionamentos emocionais intensos ou prolongados são proibidos e considerados anormais. A promiscuidade é moralmente obrigatória e a higiene, um valor supremo.
Não existe paixão nem religião. Mas, Bernard Marx tem uma infelicidade doentia: acalentando um desejo não natural por solidão, não vendo mais felicidade nos prazeres infinitos da promiscuidade compulsória, Bernard quer se libertar. Numa visita a um dos poucos remanescentes da Reserva Selvagem, onde a vida antiga, imperfeita, subsiste, pode ser um caminho para curá-lo. Paradoxalmente profético, “Admirável Mundo Novo” é uma das obras mais influentes do século XX.
O terror do contágio redunda em revoltas e crimes dos mais diversos que vai da mera vagabundagem até à deserção de pessoas que aparecem e desaparecem, com naturalidade num pleno ciclo de desordem[7].
Segundo Huxley a cidade perfeita[8] só se concretizaria se houvesse uma sociedade estamental de caráter disciplinar para sustenta-la. O que certamente garantiria a permanência do status quo, e produziria, afinal tranquilidade duradoura.
O modus vivendi do homem moderno contemporâneo fascinado com as descobertas científicas e tecnológicas e seu constante questionamento, já revela a grande preocupação quanto ao destino da humanidade.
- Desenvolvimento
Presenciamos, diuturnamente, pessoas hipnotizadas por seus celulares deixando de lado as três atividades fundamentais, a saber: o labor, o trabalho e a ação. O homem se identifica cada vez mais como animal laborans na medida que, consegue com seu trabalho a provisão de sua sobrevivência e ressalta, ainda o processo biológico, como algo que consumo seu metabolismo
Lembremos que nos idos de 1930 representou um contundente escândalo negar Deus, família quando o puritanismo e a organização social vigente na época. O autor escreveu sua obra em 1931, logo após a crise de 1929, quando o nazismo e o stalinismo estavam em plena ascensão e o estilo de vida norte-americano era o principal modelo para o mundo.
E, previu que no futuro existiria a ditadura sem o uso de violência, apenas com o esvaziamento do indivíduo, promovido por alienação e a aceitação do absurdo e um mar de condicionamentos. Seria, enfim, um admirável mundo sempre igual e cada vez menos complexo, além de linear e absolutamente previsível.
Já com o homo faber é aquele que constrói o mundo ao seu redor, dando vida e criação às coisas artificiais que contrastam om a natureza ambiental e, ultrapassam a finitude dos indivíduos em particular.
O termo homo faber[9] designa o homem enquanto agente da obra (work), enquanto obra é a atividade humana que cria um mundo artificial de coisas, que permite ao homem estabelecer sua moradia na Terra. O homo faber é o humano enquanto produtor de coisas, fabricante de objetos existentes no mundo, daí a condição humana da obra ser a mundanidade (worldliness). As coisas que o homo faber produz, em sua mundanidade, são também mais ou menos duráveis; geram uma estabilidade e solidez sem as quais seria impossível ao mundo abrigar a vida humana.
O homo faber, nos informou Arendt, apresenta uma lógica de meios e fins. O produto da obra é ao mesmo tempo fim (do processo de fabricação) e meio para produção de outro fim. As construções de cercas que separavam as propriedades, de muros ao redor das cidades e, mesmo de legislação para proteção dos cidadãos são, com efeito, obra do homo faber. Daí pode-se afirmar também que o direito era condicionado pela lei, que lhe conferia um mínimo de estabilidade.
A ascensão do homo faber na política carrega em si a lógica das relações meio/fim. O que acarreta a impossibilidade de se descobrir o valor intrínseco de quaisquer coisas, porque elas se tornam sempre meios para outros fins que, por sua vez, se convertem em outros meios, e assim sucessivamente.
A referida lógica de consumo, da necessidade biológica, transforma o direito em mero instrumento de planejamento e o saber jurídico em mera tecnologia desprovida de qualquer sentido mais profundo; ou seja, o direito tem seu conteúdo totalmente contingente, em uma radicalização do que já ocorria com a ascensão do homo faber.
O animal laborans[10] converte o direito em um receptáculo vazio que pode receber qualquer conteúdo e cuja validade depende somente de positivação. Em síntese, o próprio direito, ao cabo, se torna um mero objeto de consumo, descartável quando não mais atender ao reino da necessidade.
Destacou Ferraz Júnior a trivialização dos direitos humanos, pois apesar de positivados multiplicarmente em declarações e Constituições pelo mundo afora, não se torna efetivo e eficaz pois, cada vez mais depende de outros conteúdos que lhe atribuam significação jurídica. Pois, por si mesmos, são incapazes de fornecer as razões para agir, dependendo invariavelmente de regras de interpretação, distinções formais, ficções jurídicas que sirvam de meios, mas que lhes são alheias, porém, acabam por se converter em objetivos da vida político-jurídica.
Nem os direitos do homem escaparam de ser mais um dos objetos descartáveis de consumo e cuja permanência, não pode mais se basear na natureza, no costume, na razão, na moral e, passa então, a fulcrar-se apenas na uniformidade da própria vida social, com sua notável capacidade de ser indiferente e indefectível.
Pode-se afirmar que a lógica do animal laborans ao se tornar o humano que não é mais do que mero animal que luta por sua sobrevivência, transforma os direitos humanos em algo perecível e descartável, de forma que, todas as vezes que estes colidirem por qualquer razão, estes em prol do consumo, serão desprestigiados. Pois seu conteúdo se tornou enigmaticamente esvaziado e, portanto, admissível em critérios próprios e customizados pelos animal laborans.
- Conclusão
A trivialização dos direitos humanos[11] na era contemporânea significa que não conseguem atualmente estar num patamar de igualdade com outros direitos garantidos, ainda que menos relevantes, em textos jurídicos e legais nacionais. Há a possibilidade de o país internalizar os direitos humanos em seu ordenamento, mesmo sem obter eficácia, a depender de conteúdos, métodos e formas jurídicas.
O mundo do homo faber é constituído de objetos criados por ele próprio que, se de um lado apresenta o homem como o criador, por outro lado, há o homem que faz dessa empreitada, a violação da natureza. A fabricação que com seus objetos vem a destruir, poluir e aniquilar o meio ambiente[12].
O mundo contemporâneo consagrou o labor e o trabalho como preciosos dentro da dinâmica capitalista que se identifica com uma vida voltada para a produtividade, onde o trabalho deve gerar cada vez mais lucros, ou seja, o homo faber é explorado, tanto a força como a violência o banaliza.
O trabalho não apenas consome o tempo do homem, mas o submete e o limita, restringindo à sua subsistência, acarretando constante perda da capacidade de pensar[13], refletir, agir e, até mesmo, ter controle sobre os objetos que ele mesmo criou, fabricou.
Vejam a biografia de Alberto Santos Dumont que sempre fora contrário ao uso militar de seus inventos, incluindo os dirigíveis e aviões. E, foi acometido de grave sentimento culpa após a Primeira Grande Guerra Mundial que vitimou mais de vinte e cinco mil pilotos franceses, britânicos e alemães, além de expressivo número de pessoas no solo.
Com a saúde debilitada, não suportou presenciar em 1932 os aviões da tropa federal atacando as tropas paulistas na Revolução de 1932[14], culminando com o seu suicídio em 23 de julho do mesmo ano.
Hannah Arendt[15] já identificava o homo faber como criador do artifício humano, como sendo o habitual destruidor da natureza. O grande perigo é o homem se tornar apenas o animal laborans e homo faber, recordando que tais expressões já eram usadas na Antiguidade Clássica para designar os escravos e atividades desqualificadas na medida em que só é o homem aquele que tempo para pensar e refletir.
Acrescente-se, ainda, que a elite vigente não precisa mais trabalhar para sobreviver, posto que viva de aplicações no mercado financeiro. Em verdade, conclui-se que o modus vivendi do homo faber implica em sérios prejuízos quanto à sustentabilidade do planeta, com o desenvolvimento da ciência e da tecnologia, cujos resultados são imprevisíveis, principalmente por causa da perda da capacidade de reflexão crítica[16].
No mundo de Huxley apesar de as classes superiores receberem maior quantidade de oxigênio (considerada suficiente) para desenvolver sua inteligência. Atualmente, fisiologicamente, acontece em nosso presente, onde privamos de educação e cultura as classes menos favorecidas.
Pierre Bourdieu[17] em seus “Escritos de educação” (1998) relatou sobre a educação onde apontou que a falta de oxigênio se dá pelos mecanismos de reprodução que acontece na escola, pois o que se observa são os crescentes mecanismos de eliminação: a acessibilidade rigor da desigualdade sobre os sujeitos das diferentes classes sociais.
Pierre Bourdieu produziu a partir de 1960 e durante quase quarenta e cinco anos, um conjunto de análises no âmbito da sociologia da educação e da cultura que influenciou decisivamente algumas gerações de intelectuais, obtendo o reconhecimento de pesquisadores, estudantes e ativistas que atuam em várias outras esferas da sociedade.
O filósofo questionou as sociedades de classes, temática que ainda persegue muitos dos atuais intelectuais, questionando como e o por que pequenos grupos de indivíduos conseguem se apoderar dos meios de dominação, permitindo nomear e representar a realidade, construindo categorias, classificações e visões de mundo às quais todos os outros são obrigados a se referir. Compreender o mundo, para o filósofo, converte-se em poderoso instrumento de libertação, é esse procedimento que ele realiza, dentro outros, domínios, no educacional.
Lembremos que a cultura vem a ser um sistema de significações hierarquizadas, tornando-se um móvel de lutas entre grupos distintivos entre classes sociais. A dominação cultural se expressa na fórmula segundo a qual a cada posição na hierarquia social corresponde uma cultura específica (elitista, média, de massa), caracterizadas respectivamente pela distinção, pela pretensão e pela privação.
Definida por gostos e formas de apreciação estética, a cultura é central no processo de dominação; é a imposição da cultura dominante como sendo “a cultura” que faz com que as classes dominadas atribuam sua situação subalterna à sua suposta deficiência cultural, e não à imposição pura e simples.
O sistema de ensino desempenha papel de destaque na reprodução dessa relação de dominação cultural, funcionando como chancela de diferenças culturais e linguísticas já oferecidas, antes da escolarização, no quadro da socialização primeira, que é necessariamente diferencial, segundo a inscrição das famílias nas diferentes classes sociais.
Bourdieu construirá sua trajetória analítica no domínio da sociologia da educação procurando opor-se a um idealismo como o preconizado por Alain (Emile Chartier[18]) em que a reflexão é destituída de qualquer fundamento histórico, como na velha tradição francesa.
Em artigo de 1966, “A escola conservadora: as desigualdades frente à escola e à cultura”, rompe com as explicações fundadas em aptidões naturais e individuais e critica o mito do “dom”, desvendando as condições sociais e culturais que permitiriam o desenvolvimento desse mito.
Bourdieu constrói seu esquema analítico relativo ao sistema escolar e às relações não explícitas que o ancoram em uma longa trajetória que envolve análises empíricas objetivas, centradas em estatísticas da situação escolar francesa. Já em 1964, em Les étudiants et leurs études (Os estudantes e seus estudos) e Les héritiers. Les étudiants et la culture (Os herdeiros).
Os estudantes e a cultura), escritos com Jean-Claude Passeron[19], examina como os estudantes se relacionam com a estrutura do sistema escolar e como são nele representados, e constata a desigual representação das diferentes classes sociais no sistema superior. Investiga a cultura “legítima”, aquela das classes privilegiadas que é validada nos exames escolares e nos diplomas outorgados, e o ensino, aquele que autentica um corpo de conhecimentos, de saber-fazer e, sobretudo, de saber dizer, que constitui o patrimônio das classes cultivadas.
Ao afirmar que o sistema escolar institui fronteiras sociais análogas àquelas que separavam a grande nobreza da pequena nobreza, e esta dos simples plebeus, ao instaurar uma ruptura entre os alunos das grandes escolas e os das faculdades (ao analisar o campo universitário francês e o papel das Grandes Écoles), Bourdieu desvela a crueza da desigualdade social e, ao mesmo tempo, como ela é simulada no sistema escolar e entranhada nas estruturas cognitivas dos participantes desse universo – professores, alunos, dirigentes. (In: HEY, Ana Paula; CATANI, Afrânio Mendes. Bourdieu e a educação. Disponível em: https://revistacult.uol.com.br/home/bourdieu-e-a-educacao/ Acesso em 22.01.2020).
O sistema escolar segundo a ideologia na escola libertadora, quando, ao contrário, tudo tende a mostrar que ele é um dos fatores mais eficazes de conservação social, posto que forneça a aparência de ilegitimidade às desigualdades sociais e sanciona a herança cultural e o dom social tratado como dom natural.
Huxley ainda estabelece o limite para o avanço das ciências para a manutenção da estabilidade dessa almejada sociedade perfeita. Paradoxalmente, a Ciência que teoricamente deveria servir para aliviar a dor e o sofrimento humano, foi submetida à razão instrumental.
Lembremos que tudo é produzido para servir ao sistema de manutenção do status quo. Aliás diversos filósofos e sociólogos já nos alertaram sobre o mito da neutralidade científica.
Previu o admirável Huxley uma vida linear, confiável, sem dor e nem ansiedade, traduzindo uma vivência sem emoção, quando perdemos a lição dos gregos que informava que a dor faz parte da vida e, que a noção de felicidade associada apenas ao que é útil e confortável, é vazia e angustiante.
Referências:
ARENDT, Hannah. A condição humana. São Paulo: Forense, 2005.
BATISTA, Angelina. A violência: ensaio acerca do "homo violens" Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1414-32831999000200022 Acesso em 22.01.2020).
CILENTO, Angela Zamora. 4 Pontos Cardeais em Admirável Mundo Novo, de Huxley. In: Revista Filosofia, Ciência e vida. Edição 156. Editora Escala.
DE SOUZA, Vinícius Silva. O homo faber segundo Hannah Arendt. Disponível em:https://repositorio.unb.br/bitstream/10482/14051/1/2013_ViniciusSilvaSouza.pdf Acesso em 22.01.2020).
FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio. A trivialização dos direitos humanos. Novos Estudos Cebrap, São Paulo, n. 28.
FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir. Petrópolis: Vozes, 1989.
HEY, Ana Paula; CATANI, Afrânio Mendes. Bourdieu e a educação. Disponível em: https://revistacult.uol.com.br/home/bourdieu-e-a-educacao/ Acesso em 22.01.2020).
HUXLEY, A. Admirável Mundo Novo. Rio de Janeiro: Record, 1993.
[1] Foi um escritor inglês e um dos mais proeminentes membros da família Huxley. Passou parte de sua vida nos Estados Unidos e viveu em Los Angeles de 1937 até a sua morte em 1963. Ficou mais conhecido pelos seus romances, como Admirável Mundo Novo e diversos ensaios, também editou a revista Oxford Poetry e publicou contos, poesias, literatura de viagem e guias de filmes. Passou, a derradeira parte de sua vida nos EUA, foi nomeado para o Prêmio Nobel de Literatura sete vezes e fora eleito Companheiro de Literatura pela Royal Society of Literature em 1962. Era humanista e pacifista e cresceu particularmente interessado no misticismo filosófico e universalismo, abordando esses temas como a Filosofia Perene (1945) que ilustra semelhanças entre misticismo ocidental e oriental e As Portas da Percepção (1954) que interpreta sua própria experiência psicodélica como mescalina e seu derradeiro romance Island apresentou sua visão de distopia e utopia, respectivamente. Em 9 de abril de 1962, Huxley foi informado de que ele havia ganho o título de "Companion of Literature" pela Royal Society of Literature.
[2] Ficção científica é gênero da ficção especulativa e normalmente lida com conceitos ficcionais e imaginativos, relacionados ao futuro, ciência e tecnologia e seus impactos numa determinada sociedade ou em seus indivíduos, desenvolvido no século XIX. É também conhecida como a "literatura das ideias", aliás, evita-se usar o termo sobrenatural, que é tema mais recorrente na fantasia, baseando-se em fatos científicos e reais para compor enredos ficcionais. A ação pode girar em torno de um grande leque de possibilidades como: viagem espacial, viagem no tempo, viagem mais célere que a luz, universos paralelos, mudanças climáticas, totalitarismo e/ou vida extraterrestre. Uma boa parte da ficção científica se baseia no conceito da suspensão de descrença, que possibilita ao leitor em acreditar nas explicações, soluções e postulados ficcionais baseados em ciência que estão em uma determinada obra.
[3] Logo nos primórdios da obra, Huxley nos dá um banho de água gelada ao tratar como normal o novo sistema de produção de pessoas. Sim, produção, pois os indivíduos eram pré-determinados biologicamente e psicologicamente condicionados a adotarem um padrão de vida e perspectiva de vida que entre em conformidade com as leis e normas sociais da época. Aliás, o amor e a monogamia foram terminantemente proibidos, pois levaria os indivíduos a experimentarem sentimentos violentos, e pessoas nesse status facilmente cairiam em instabilidade e ameaçariam o bem-estar social. Dessa forma, vige o mantra: cada um pertence a todos, evidenciando que a sexualidade é liberada a ponto de o padrão normal ser uma mulher dormir com vários homens e nunca se apegar a apenas um, posto que seria indecoroso.
[4] Quando o indivíduo conseguisse fugir a todo esse ferrenho controle social, existia o Soma. Uma droga alucinógena que une, conforme dito por um dos personagens, todas as qualidades do cristianismo e do álcool, mas sem seus prejuízos. Bastava meio grama de Soma para que o indivíduo entrasse num torpor maravilhoso onde todos os pensamentos malévolos jamais podem alcançá-lo. O sobrenome de Bernardo não é por acaso, pois nos remete ao Karl Marx, o economista e teórico muito insatisfeito com a ordem social vigente de seu tempo. É interessante a abordagem a hipnopedia que é a ciência de condicionar pensamentos, às crianças durantes o sono e, sua desilusão com o mundo onde vive.
[5] De forma fictícia, o autor expõe um futuro que é consequência das ações e comportamentos do homem já na década de 30. A manipulação da verdade, o condicionamento das pessoas e o uso da “soma”, droga utilizada pelos personagens, são características comportamentais do livro que se assemelham algumas do mundo de hoje.
[6] Com a chegada de John, o Selvagem, à civilização de Admirável Mundo Novo, que o livro torna a despontar pois novamente o mundo posiciona lado a lado, o novo e o velho e, todas as suas discrepâncias. O Selvagem passa a ser o elo que nos relaciona à sociedade distópica idealizada por Huxley, pois ele é o filho de dois mundos, passando a ser um homem pré-histórico vivendo num mundo moderno. Mais ou menos como pessoas da minha faixa etária, se sente, na contemporaneidade (desculpem-me o desabafo).
[7] A distopia se traduz em ser um lugar, deu origem a velha conhecida das aulas de geografia, a topografia, que significa literalmente a descrição de um lugar. Também resultou em utopia. O "u" serve como partícula negativa. Assim, a utopia, portanto, é o não lugar, isto é, um lugar que já começa a não existir em sua própria etimologia. O termo distopia surgiu com o pensador John Stuart Mill, em 1868, que sentiu necessidade de uma palavra que explicasse bem o suficiente a inversão dos valores utópicos de Thomas Morus na era industrial. Porém, o pioneiro no uso do vocábulo veio mais cedo, com o escritor anglo-irlandês Jonathan Swift, com a sua obra "Viagens de Gulliver".
[8] Trata-se de um mundo horrivelmente perfeito, onde a sociedade humana decide ser totalmente eugenista, produtivista e voltada para a sexualidade da máxima procriação. Aliás, a visão alucinada da humanidade desumanizada que segue atenta o condicionamento pavloviano e pelo prazer ao alcance do Soma (a pílula). Afinal tal situação é perceptível atualmente em alguns países, especialmente Europa, em que os efeitos da crise de 2008 provocou a ascensão de partidos extremistas de direita, além de xenófobos e racistas. Frisou Huxley a rigidez do controle social onde não há espaços ao acaso, onde todos seguem e são formados a partir do mesmo molde, as pessoas clonadas e produzidas em série, com farta garantia de conforto e prazer.
[9] A palavra latina faber, que provavelmente se relaciona com facere (fazer alguma coisa, no sentido de produção), designava originariamente o fabricante e artista que operava sobre materiais duros, como pedra ou madeira; era também usada como tradução do grego tekton, que tem a mesma conotação. A palavra fabri, muitas vezes seguida de tignarii, designava especialmente operários de construção e carpinteiros (ARENDT).
[10] Arendt, aliás, procurou distinguir claramente os termos fabricação e trabalho. Apesar de que atualmente são usados como sinônimos, e não haja definição nítida entre tais conceitos, porque tanto um operário como um trabalhador rural, fabricam seus produtos com o uso de sua força de trabalho. Porém, Arendt quer uma diferenciação evidente dessas atividades, e, para tanto busca o significado etimológico desses vocábulos. Portanto, para Arendt, a língua grega dos antigos colocava essas atividades em lados opostos, deste modo, segundo a pensadora, “ponein e ergazesthai”, no latim “laborare e facere”, determinavam diferentes tarefas, um referente ao espaço da sobrevivência e a outra vinculada à produção de artefatos. O idioma alemão também possuía uma distinção evidente entre esses dois termos como reforça a pensadora. Enquanto “Arbeit “é aplicado ao trabalho agrícola, a palavra “Werk” designa o produto do artesão. O trabalho, por ser um esforço para manter a vida, não possui durabilidade. Ele é como um processo metabólico preso à estrutura biológica do corpo e as suas carências. Um animal ainda é carente das necessidades básicas, dos desejos corporais, da alimentação, da procriação e de outros relacionados diretamente a sua sobrevivência. O que é bem diferente do comportamento do fabricador na obra. No entanto as ferramentas produzidas pelo homo faber servem de auxílio para suprir as carências desse indivíduo do labor. A atividade do homo faber difere do trabalho cotidiano para manter o processo da vida orgânica. A fabricação produz artefatos que sobrevivem tanto ao seu fabricante como também ao consumo do dia a dia.
[11] “Admirável Mundo Novo”, que é fundamentalmente um manifesto humanista, alguns viram também, com razão, uma crítica ácida à sociedade stalinista, à utopia soviética construída com mão de ferro. Mas também há, claramente, uma sátira à nova sociedade mecanizada, padronizada, automatizada que se criva à época nos Estados Unidos, em nome da modernidade técnica. Confirmando as teses de Huxley, Vance Packar publicou “The Hidden Persuaders (na edição brasileira, “Nova Técnica de Convencer”), em meados da década de 1950 e Ernest Dichter e Louis Cheskin denunciaram que as agências de publicidade tentavam manipular o inconsciente dos consumidores. Sobretudo mediante o uso de “publicidade subliminar”, nos meios de comunicação de massas. Em 30 de outubro de 1962, executou-se um teste que demonstrava a eficácia da publicidade subliminar.: durante a exibição de um filme, lançavam-se mensagens “invisíveis” sobre certos produtos, em intervalos regulares. As vendas de tais produtos aumentaram.
[12] Ao longo de sua trajetória histórico-evolutiva o homem tem sido classificado como homo sapiens, faber, laborans, ludens, politicus, religiosus e oeconomicus etc... E de acordo com essas definições há o homo violens, porque considera a violência característica primordial, essencial, constitutiva do ser do homem. Vai além da concepção eruptiva da violência como algo explosivo e repentino, além de imprevisível. Existe, sem dúvida, a função estruturante da violência, pois, não há qualquer aspecto da realidade humana que não esteja à ele associado. Ninguém se banha duas vezes no mesmo rio, já afirmava Heráclito. E a passagem do tempo é irrevogável, irreversível além de irreparável. O tempo, em si, é uma violência. Cabe a filosofia política questionar sobre o fenômeno da violência para então definir os sistemas de valores (justiça, liberdade, autonomia e direitos humanos), a fim de garantir as condições de equilíbrio social de modo a manter a sociedade aquém do limite que marca o abandono ao sistema totalitário. (In: BATISTA, Angelina. A violência: ensaio acerca do "homo violens" Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1414-32831999000200022 Acesso em 22.01.2020).
[13] Aliás, o capitalismo criativo corresponde ao termo popularizado pelo fundador da Microsoft, Bill Gates, no Fórum Econômico Social de 2008, na cidade de Davos na Suíça. A referida ideologia busca desenhar nova forma de capitalismo que labora para gerar maiores benefícios a fim de resolver as iniquidades e disparidades de rendas mundiais, utilizando as forças de mercado para melhorar a qualidade de vida dos menos favorecidos. A ideia do capitalismo criativo de Gates combina os "dois grandes focos da natureza humana - interesse próprio e cuidado com os demais," conforme ele postulou.
[14] A revolução constitucionalista de 1932 igualmente conhecida como Revolução de 1932 ou Guerra Paulista foi movimento armado ocorrido nos Estados de São Paulo, Mato Grosso do Sul e Rio Grande do Sul, entre julho e outubro de 1932, que tinha por objetivo derrubar o governo provisório de Getúlio Vargas e convocar a Assembleia Nacional Constituinte. O golpe de Estado decorrente da Revolução de 1930, derrubou o então Presidente da República, Washington Luís, além de impedir a posse de seu sucessor eleito, nas eleições de 1930, Júlio Prestes, além de depor a maioria dos Presidentes Estaduais (atualmente se denominam governadores). Fechou o Congresso Nacional, as Assembleias Legislativas estaduais e as Câmaras de Vereadores e, por fim, veio a cassar a Constituição Brasileira de 1891, até então vigente. Getúlio Vargas que era o candidato derrotado nas eleições presidenciais de 1930 e um dos líderes do movimento revolucionário e assumiu a presidência do governo provisório nacional em novembro de 1930, dotado com amplos poderes e colocando fim na política café com leite (da República Velha) quando São Paulo e Minas Gerais se alternavam na Presidência da República, impedindo que o principal cargo do Poder Executivo fosse ocupado por representante de outros Estados economicamente relevantes à época, tal como Rio Grande do Sul e Pernambuco. O levante armado começou de fato em 9 de julho de 1932, precipitado pela revolta popular após a morte de quatro jovens por tropas getulistas, em 23 de maio de 1932, durante um protesto contra o Governo Federal. Após a morte desses jovens, foi organizado um movimento clandestino denominado MMDC (iniciais dos nomes dos quatro jovens mortos: Martins, Miragaia, Dráusio e Camargo), que começou a conspirar contra o governo provisório de Vargas, articulando junto com outros movimentos políticos uma revolta substancial. Houve também uma quinta vítima, Orlando de Oliveira Alvarenga, que também foi baleado naquele dia no mesmo local, mas morreu meses depois. Nos meses precedentes ao movimento, o ressentimento contra o presidente ganhava força indicando uma possível revolta armada e o governo provisório passou a especular a hipótese de o objetivo dos revoltosos ser a secessão de São Paulo do Brasil. No entanto, o argumento separatista jamais foi comprovado fidedigno, porém, ainda assim, esse argumento foi utilizado na propaganda do governo provisório ao longo do conflito para instigar a opinião pública do restante do país contra os paulistas, obter voluntários na ofensiva contra as tropas constitucionalistas e ganhar aliados políticos nos demais estados contra o movimento de São Paulo. Atualmente, o dia 9 de julho, que marca o início da Revolução de 1932, é a data cívica mais importante do estado de São Paulo e feriado estadual. Os paulistas consideram a Revolução Constitucionalista como sendo o maior movimento cívico de sua história. A lei 12.430, de 20 de junho de 2011, inscreveu os nomes de Martins, Miragaia, Dráusio e Camargo heróis paulistas da Revolução Constitucionalista de 1932, no Livro dos Heróis da Pátria. No total, foram 87 dias de combates (de 9 de julho a 4 de outubro de 1932 - sendo os últimos dois dias depois da rendição paulista), com um saldo oficial de 934 mortos, embora estimativas, não oficiais, reportem até 2.200 mortos, sendo que numerosas cidades do interior do estado de São Paulo sofreram danos devido aos combates.
[15] Hannah Arendt nomeia a atividade humana de produzir objetos como uma atividade decorrente da fabricação. O fabricante dessa instrumentalidade é referido pela autora como homo faber, o qual é caracterizado pela a fabricação manual de artefatos. De acordo com Arendt, a fabricação dá ao homem sua primeira identificação humana e também serve como distinção das outras atividades humanas. O homo faber, produz o mundo através de seu trabalho. Hoje em dia, a produção desse produtor de artefatos é mais evidente nos utensílios eletrônicos. Os objetos refletem a produção atual do homo faber, que mantém a sua identidade através da produção de objetos no mundo. No entanto, o método de fabricar, de produzir artefatos permanece o mesmo ou não? É ainda possível indicar a presença do homo faber arendtiano nos atuais processos de fabricação? (In: DE SOUZA, Vinícius Silva. O homo faber segundo Hannah Arendt. Disponível em: https://repositorio.unb.br/bitstream/10482/14051/1/2013_ViniciusSilvaSouza.pdf Acesso em 22.01.2020).
[16] O homem, portanto, sempre necessitou de objetos que facilitam seu cotidiano, e são esses artefatos que irão dizer e construir sua história. Vasos, colheres, esculturas e outros objetos encontrados por arqueólogos em civilizações passadas, são expostos em museus e nos contam algo sobre o comportamento dessas antigas comunidades com o mundo e a natureza. Deste modo, são esses artefatos que possibilitam dizer como era a vida dos antepassados humanos. Os objetos da fabricação atual dizem e constroem o mundo segundo a pensadora. No entanto, com a invasão do reino das necessidades nas relações humanas tudo se tornou produtos de consumo. Deste modo, a estabilidade não só do planeta como da própria humanidade se tornou uma incógnita. A existência ou não das próximas gerações é hoje um tema recorrente em qualquer espaço de discussão, ultrapassando os muros acadêmicos e se introduzindo em ambientes como a cozinha de casa, o bar da esquina e os espaços políticos. Hans Jonas, contemporâneo e grande amigo de Hannah Arendt, desenvolveu este tema sobre o compromisso do ser humano com as próximas gerações no livro “O princípio responsabilidade”, uma de suas principais obras.
[17] Pierre Félix Bourdieu (1930-2002) foi sociólogo francês. De origem campesina, filósofo de formação acadêmica, foi docente da École de Sociologie du Collège de France. Desenvolveu, ao longo de sua vida, diversos trabalhos abordando a questão da dominação e é um dos autores mais lidos, em todo o mundo, nos campos da antropologia e sociologia, cuja contribuição alcança as mais variadas áreas do conhecimento humano, discutindo em sua obra temas como educação, cultura, literatura, arte, mídia, linguística e política. Também escreveu muito sobre a sociologia da Sociologia. A sociedade cabila, na Argélia, foi o palco de suas primeiras pesquisas. Seu primeiro livro, Sociologia da Argélia (1958), discute a organização social da sociedade cabila, e em particular, como o sistema colonial interferiu na sociedade cabila, em suas estruturas e desculturação. Dirigiu, por muitos anos, a revista Actes de la recherche en sciences sociales e presidiu o CISIA (Comitê Internacional de Apoio aos Intelectuais Argelinos), sempre se posicionado claramente contra o liberalismo e a globalização.
[18] Émile-Auguste Chartier (1868-1951) cujo pseudônimo literário era Alain, foi jornalista, ensaísta e filósofo francês. Utilizou outros pseudônimos, entre 1893 e 1914, tais como Criton, Quart d'oeil ou ainda Philibert, para assinar suas crônicas publicadas em Le Dépêche de Lorient (1903) e La Dépêche de Rouen et de Normandie, bem como seus panfletos, em La Démocratie rouennaise. Sua obra não tem caráter sistemático, mas procura sobretudo despertar a reflexão. A partir de 1906 escreve artigos curtos, inspirados na atualidade e nos fatos da vida quotidiana, no estilo conciso que o caracteriza (as chamadas Propos), que abordam quase todas as áreas. Essa forma apreciada pelo grande público, o que, entretanto, provocou, fez com que alguns críticos se desinteressassem de um estudo mais aprofundado de sua obra filosófica. Suas principais influências foram Platão, Descartes, Kant e Auguste Comte — mas ele se dizia, antes de tudo, um discípulo de Jules Lagneau (1851 - 1894), seu primeiro professor de filosofia. Em 1936, já sofrendo de crises de reumatismo que o imobilizam, sofre um ataque cerebral que o condena à cadeira de rodas. Intransigente defensor da liberdade de pensamento e do indivíduo, Chartier recebeu, em 1951, o Grand Prix national des lettres. Pouco tempo depois, faleceu em Le Vésinet, na região de Paris. Foi enterrado no cemitério do Père-Lachaise, na capital francesa.
[19] Foi professor de Sociologia da École des hautes études en sciences sociales. Escreveu em parceria com Pierre Bourdieu a obra La reproduction, publicada em 1970 e “Os Herdeiros”, também juntamente com Bourdieu. Análises desenvolvidas por Pierre Bourdieu sobre o tema da escola e das desigualdades sociais. Para os autores, a publicação de “Os Herdeiros”, em 1964, por Pierre Bourdieu e Jean-Claude Passeron, transformou a educação - na França - tanto em um objeto científico quanto em um problema social. Ao questionarem valores caros ao sistema escolar francês, tais como os de liberdade, igualdade e fraternidade, herança de seu protagonismo na fundação da Terceira República, Bourdieu e Passeron reclamaram o estudo da escola para além de suas representações espontâneas e ideológicas. Segundo Baudelot e Establet, o conjunto teórico elaborado por Bourdieu, desde “Os Herdeiros”, também afinado em análises posteriores sobre a temática da educação, ganha força analítica nos dias atuais, ainda que tenham se passado quarenta anos de profundas mudanças nos sistemas de organização e ensino escolares daquele país. análises desenvolvidas por Pierre Bourdieu sobre o tema da escola e das desigualdades sociais. Para os autores, a publicação de "Os Herdeiros", em 1964, por Pierre Bourdieu e Jean-Claude Passeron, transformou a educação - na França - tanto em um objeto científico quanto em um problema social. Ao questionarem valores caros ao sistema escolar francês, tais como os de liberdade, igualdade e fraternidade, herança de seu protagonismo na fundação da Terceira República, Bourdieu e Passeron reclamaram o estudo da escola para além de suas representações espontâneas e ideológicas.