Negros aqui e lá.
Os afrodescendentes no Brasil e nos EUA.
Negros aqui e lá.
O presente texto expõe as diferentes lutas dos negros no Brasil e nos EUA e, aponta para cruel invisibilidade do segregacionismo brasileiro e para necessidade de mobilização em rol dos direitos dos negros e de igualdade e justiça.
Palavras-Chaves: Negros. Segregacionismo. Preconceito. Políticas Públicas. Racismo.
Estranhamente o nosso país se orgulha em ser uma democracia racial ao passo que nos Estados Unidos há uma estridente aspereza e hostilidade nas suas relações interraciais. Aliás, desde o fim da Segunda Grande Guerra Mundial, os chamados afroamericanos representavam somente doze por cento do total da população norte-americana, mesmo assim, os negros têm demonstrado ter uma vigorosa força política em seu país, bem maior do que a obtida pelos afrobrasileiros que representam mais de cinquenta por cento de toda população brasileira.
Relembremos as conquistas dos afroamericanos já ocorridas no pós-guerra, quando em sua primeira fase compareceram ao movimento em prol dos direitos civis nas décadas de cinquenta e sessenta. E, lá os progressos foram extraordinários e a segregação, por fim, foi vencida quando o sufrágio definitivo fora estendido também ao negro através do Ato dos Direitos de Voto em 1965 , quando o próprio governo americano instituiu políticas públicas voltadas para a igualdade de oportunidades e ação afirmativa para combater o racismo.
Tais conquistas mudaram o Estado que antes era firme impositor de desigualdade racial, passando a ser o exatamente oposto, isto é, assumindo ser um poderoso oponente da discriminação racial e fiador das oportunidades para o povo negro (e outras minorias raciais, como os índigenas norte-americanos, porto-riquenhos, mexicanos e latinos em geral) em áreas como educação, saúde, moradia e emprego.
Consigne-se que as conquistas políticas do negro continuaram na década de setenta, principalmente em níveis estaduais e regionais. Assim, observou-se que afrodescendentes foram elementos para as câmaras municipais e legislativos estaduais nos EUA, e principais comarcas norte-americanas como Los Angeles, Chicago, Detroit, Washington e Filadélfia que foram governadas por prefeitos negros.
Apesar de que em nível nacional deu-se na década de setenta um período de estagnação e incerteza principalmente em face do assassinato de líder Martin Luther King em 1968.
Num primeiro momento, e tendo vencido as mais violentas formas de discriminação racial, o movimento pelos direitos civis conseguiu cumprir seus objetivos. Mas, os tipos de discriminação ainda continuaram, e continuam a existir ainda que de formas sutis e difíceis de detectar, o que dificulta ainda mais a mobilização de pessoas demonstrando seu repúdio.
Num segundo momento, os programas políticos de oportunidades iguais possibilitaram que uma nova geração de afroamericanos viesse a ter acesso às universidades, tornando-os assim parte da sociedade civil e de profissionais liberais da classe média. Observou-se que a jovem e crescente elite negra correspondente a pelo menos vinte por cento da população negra conseguiu ter o sonho americano realizado.
Ainda assim para combater o racismo sedimentado ao longo de muitos séculos não é realmente fácil e, infelizmente, nem será rapidamente extinto.
Enquanto que essa nova classe média negra se beneficiava de oportunidades abertas pelas políticas públicas, o mesmo não acontecia com outras minorias, principalmente os latinos. E, a grande parte da população negra ainda permanecia com baixa participação na renda nacional norte-americana, e permaneceu quase que imutável entre 1960 a 1980.
E, na década de setenta houve uma retomada progressiva do ressentimento e de ódio dos brancos contra os programas governamentais que presumivelmente favoreciam os negros e, tal movimento encontrou sua maior expressão durante a eleição de Ronald Reagan que chegou à presidência e, prometeu eliminar os programas de igualdade de oportunidade e reduzir a ajuda governamental aos menos favorecidos, que, em grande parte, são negros.
Diante desse contexto surgiu a necessidade de revitalizar o movimento negro para defender e reafirmar as conquistas já alcançadas nas décadas anteriores. Surgiu Jesse Jackson, um ex-colaborador de Luther King que emergiu como novo líder reconhecendo a necessidade se estender para além da população negra e, assim, criar uma aliança interracial que englobaria várias etnias não brancas, e, mulheres e simpatizantes brancos e liberais. Formou-se o famoso conceito de coalização arco-íris de Jackson .
É verdade que não obteve sucesso na formação de tal coalizão pois suas posições antissemitas foram destrutivas ao alienar o apoio da etnia que tradicionalmente sempre foi simpática às aspirações dos negros. Apesar dessa falha, a campanha promovida por Jackson para sua candidatura democrata em 1984 demonstrou ter grande força política, vencendo eleições em diversos vários do Sul dos EUA e, galgando até vinte e cinco por cento de votos em Estados mais industrializados tais como Illinois e Nova York e, forçando assim, o comprometimento do partido democrata em manter e até estender as conquistas políticas dos negros adquiridas na década de sessenta.
O movimento dos negros nos EUA entra na década de oitenta com fôlego renovado. Em 2008 Barack Obama foi o primeiro presidente negro dos EUA. E, tal fato foi considerado por muitos como o anúncio de uma nova era, sem as tensões raciais que haviam marcado a história do país.
Já aqui no Brasil, há um caminho mais longo e árduo. E, sabemos que a experiência norte-americana não pode ser comparada com a do Brasil. É difícil refutar o mito da democracia racial que tem longa tradição na história de luta dos negros. E, nesse último século, as políticas públicas e, a mais famosa foi a Frente Negra Brasileira , que foi banida por Getúlio Vargas de 1937.
O que já corresponde à uma evidência conclusiva da contínua existência de discriminação e desigualdade racial na sociedade brasileira.
Após o pós-guerra tais movimentos têm atraído milhares de seguidores e tem sido um estímulo para dar continuidade ao debate público sobre as deficiências e incongruências do paraíso racial brasileiro Porém, nenhum deles, conseguiu gerar um movimento de massa, com expressivo peso moral e político como fez Luther King, Julian Bond , Jesse Jackson e outros líderes de expressão nacional nos EUA.
Porque não Brasil não temos essa liderança? A resposta vem do caráter paternalista e autoritário das relações sociais e políticas brasileiras, que, mesmo durante os períodos de democracia, torna muito difícil a construção de movimento político de massa que seja autônomo e nacional.
Cumpre igualmente observar que o movimento pelos direitos civis nos EUA surgiu e obteve suas vitórias na região mais tradicionalista, autoritária e repressora do país, ou seja, nos Estados do Sul dos EUA .
Mas, sozinho o autoritarismo não consegue explicar as diferentes trajetórias das lutas dos negros nesses dois país, deve-se ver também a natureza das relações raciais brasileiras, onde não existe a separação racial imposta pelo Estado, tal como se verifica na segregação ianque ou ainda no apartheid da África do Sul. O caráter mais relaxado ou, mesmo, frouxe da hierarquia racial brasileira acaba por minar a mobilização e resistência da política afrobrasileira de múltiplas formas.
O fato de haver integração dos afrobrasileiros nas instituições básicas da sociedade, reduz necessidade do povo negro de desenvolver instituições sociais e culturais próprias, e, por essa razão, de modo mais autônomo, conforme a segregação racial exigiu nos EUA. O nosso país não compartilha com os EUA de ter a tradição de igrejas e faculdades independentes, que favoreceram sensivelmente a formação de base ideológica e institucional e de liderança para o desenvolvimento do movimento dos direitos civis.
Aqui também não vige um limite evidente e claro existente entre negro e branco, o que torna possível a cooptação, por parte do grupo branco, de afrobrasileiros particularmente talentosos e ambiciosos.
Assim, num sistema mais rígido, onde os indivíduos permaneçam em sua casta racial e, assumem posições de liderança dentre desta. Infelizmente, aqui não é impossível para estes negar a sua própria negritude, por vezes, se assumindo tão-somente como morenos , e daí ser mais difícil existir e manter a identidade afrobrasileira, para se tornar um exercício consciente de força que muitos ainda relutam em assumir.
Registre-se ainda que de forma mais efetiva o sistema de hierarquia racial brasileiro labora contrário a formação de movimento político afrobrasileiro, sendo depreciada a base moral desse movimento, sendo incapaz de mobilizar tantos os brancos oponentes ao racismo quanto os negros.
Finalmente, os segregacionistas restam impossibilitados de legitimar seu sistema que contradiz visivelmente os princípios que definem uma sociedade livre e democrática que são os valores como justiça, igualdade e liberdade, além da preservação da dignidade humana.
Enquanto que brutalidade do racismo ianque expôs sua fraqueza, aqui, entre nós, vige certa flexibilidade e uma sutileza bem peculiar do racismo brasileiro reafirmando sua força.
Conclui-se que para haver a indignação moral contra a desigualdade racial é mais difícil de ser gerada num país onde a discriminação baseia-se em formas silenciosas, inconsistentes e hipócritas, ficando cada vez mais difícil de identificar e transformar em ação política. Impede mesmo que haja a indignação contra o racismo bem como a necessidade de combater injustiças que transitam livremente na sociedade brasileira.
Há milhões de negros brasileiros que sofrem continuamente injúrias e aflições decorrentes da discriminação racial. E, mesmo há também milhões de brasileiros, de diferentes etnias e origens que sofrem muito com as mais corriqueiras ofensas, como da miséria, desnutrição, ausência de real acesso à educação, ausência de real acesso ao pleno emprego, à saúde pública e se submetem não só a poluição ambiental, como também aos desmandos de sucessivos governos corruptos e combalidos que ainda se perpetuam no poder.
Evidentemente o racismo opera a mais grave ofensa e, na medida em que a sociedade é racialmente dividida, mais se torna vulnerável à dominação e exploração das ditas camadas sociais superiores. E, mesmo os membros do grupo racial dominante sofrem em si mesmo a situação, quando se aglomeram na multidão de “brancos pobres” da América do Sul e do Brasil que enfrentam múltiplos desafios agudos e presentes numa sociedade brasileira imersa numa recessão econômica expressiva, onde até o racismo perde importância, em face de sociedades mais prósperas e mais equânimes como revela ser os EUA.
Há muitos fortes obstáculos para a criação e atuação de um movimento antirracismo e, mesmo a partir de 1980 os variados partidos políticos reconhecem publicamente a existência de discriminação racial e desigualdade racial em nosso país, tanto que até instituíram comissões especiais e grupos de trabalho para prepara políticas nessa área .
Nosso país infelizmente historicamente tem preferido ignorar qualquer indicação de desarmonia racial em suas fronteiras. Observa-se que recentemente os líderes negros têm gerado significativo capital político capaz de chamar a atenção para um dos mais cruéis aspectos das relações raciais brasileiras como a que existe na repressão policial de afrobrasileiros e o preconceito por parte de órgãos jurisdicionais penais, de que "negro é bandido até que se prove o contrário" . Precisamos denunciar tais práticas para gerar aquele senso de indignação moral que é tão importante para agregar o movimento afrobrasileiro.
Faz-se necessário criar um movimento nacional de massas, os líderes afrobrasileiros tem um íngreme percurso a seguir, o que obrigatoriamente inclui a educação . E que se estenda até as áreas mais renitentes e tradicionais, onde a até hoje a mobilização negra enfrenta mórbidos obstáculos políticos, sociais e culturais.
É verdade que o movimento afrobrasileiro enfrenta um inimigo mutante, disfarçado e, principalmente, invisível , que precisa ser revelado e desmascarado para enfim poder ser derrotado. Precisamos conclamar para uma segunda e definitiva abolição , para combater o injusto e triste segregacionismo racial.
Referências:
ANDREWS, George Reid. O negro no Brasil e nos Estados Unidos. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-64451985000200013 Acesso em 09.4.2019.
DOMINGUES, Petrônio. Uma história não contada: negro, racismo e branqueamento em São Paulo no pós-abolição. São Paulo: Senac, 2003.
FREYRE, Gilberto. Casa Grande e Senzala, Rio de Janeiro, Schmidt Editor, 1933.
HASEBALG, Carlos. Discriminação e desigualdades raciais no Brasil, Rio de Janeiro, Graal, 1979.
MOURA, Clóvis. Dicionário da Escravidão Negra no Brasil. São Paulo: EDUSP, 2005.
NUCCI, Guilherme de Souza. Racismo: uma interpretação à luz da Constituição Federal. Disponível em: http://www.cartaforense.com.br/conteudo/colunas/racismo-uma-interpretacao-a-luz-da-constituicao-federal/5447 Acesso em 9.4.2019.
RAMOS, Arthur: O Negro Brasileiro, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1934; 2. ed. São Paulo, Ed. Nacional, 1940.
REIS, Fábio Wanderley. O mito e o valor da democracia racial. Disponível em: http://books.scielo.org/id/v7ywf/pdf/reis-9788599662793-16.pdf Acesso em 9.4.2019.
RIBEIRO, Darcy. O Povo Brasileiro. São Paulo: Companhia de Bolso, 2003.
SCHARCZ, Lilia Moritz: O espetáculo das raças: Cientistas, Instituições e a Questão Racial no Brasil 1870-1930. São Paulo, Companhia das Letras, 1993.
SOUZA, Jessé. A Elite do Atraso. Rio de Janeiro: Leya, 2017.
VALENCIA, Robert. Tradução de Rosane Bujes. Disponível em:https://pt.globalvoices.org/2017/09/23/racismo-um-assunto-tabu-dentro-da-comunidade-latina-nos-estados-unidos/ Acesso e 9.4.2019.
Os afrodescendentes no Brasil e nos EUA.
Negros aqui e lá.
O presente texto expõe as diferentes lutas dos negros no Brasil e nos EUA e, aponta para cruel invisibilidade do segregacionismo brasileiro e para necessidade de mobilização em rol dos direitos dos negros e de igualdade e justiça.
Palavras-Chaves: Negros. Segregacionismo. Preconceito. Políticas Públicas. Racismo.
Estranhamente o nosso país se orgulha em ser uma democracia racial ao passo que nos Estados Unidos há uma estridente aspereza e hostilidade nas suas relações interraciais. Aliás, desde o fim da Segunda Grande Guerra Mundial, os chamados afroamericanos representavam somente doze por cento do total da população norte-americana, mesmo assim, os negros têm demonstrado ter uma vigorosa força política em seu país, bem maior do que a obtida pelos afrobrasileiros que representam mais de cinquenta por cento de toda população brasileira.
Relembremos as conquistas dos afroamericanos já ocorridas no pós-guerra, quando em sua primeira fase compareceram ao movimento em prol dos direitos civis nas décadas de cinquenta e sessenta. E, lá os progressos foram extraordinários e a segregação, por fim, foi vencida quando o sufrágio definitivo fora estendido também ao negro através do Ato dos Direitos de Voto em 1965 , quando o próprio governo americano instituiu políticas públicas voltadas para a igualdade de oportunidades e ação afirmativa para combater o racismo.
Tais conquistas mudaram o Estado que antes era firme impositor de desigualdade racial, passando a ser o exatamente oposto, isto é, assumindo ser um poderoso oponente da discriminação racial e fiador das oportunidades para o povo negro (e outras minorias raciais, como os índigenas norte-americanos, porto-riquenhos, mexicanos e latinos em geral) em áreas como educação, saúde, moradia e emprego.
Consigne-se que as conquistas políticas do negro continuaram na década de setenta, principalmente em níveis estaduais e regionais. Assim, observou-se que afrodescendentes foram elementos para as câmaras municipais e legislativos estaduais nos EUA, e principais comarcas norte-americanas como Los Angeles, Chicago, Detroit, Washington e Filadélfia que foram governadas por prefeitos negros.
Apesar de que em nível nacional deu-se na década de setenta um período de estagnação e incerteza principalmente em face do assassinato de líder Martin Luther King em 1968.
Num primeiro momento, e tendo vencido as mais violentas formas de discriminação racial, o movimento pelos direitos civis conseguiu cumprir seus objetivos. Mas, os tipos de discriminação ainda continuaram, e continuam a existir ainda que de formas sutis e difíceis de detectar, o que dificulta ainda mais a mobilização de pessoas demonstrando seu repúdio.
Num segundo momento, os programas políticos de oportunidades iguais possibilitaram que uma nova geração de afroamericanos viesse a ter acesso às universidades, tornando-os assim parte da sociedade civil e de profissionais liberais da classe média. Observou-se que a jovem e crescente elite negra correspondente a pelo menos vinte por cento da população negra conseguiu ter o sonho americano realizado.
Ainda assim para combater o racismo sedimentado ao longo de muitos séculos não é realmente fácil e, infelizmente, nem será rapidamente extinto.
Enquanto que essa nova classe média negra se beneficiava de oportunidades abertas pelas políticas públicas, o mesmo não acontecia com outras minorias, principalmente os latinos. E, a grande parte da população negra ainda permanecia com baixa participação na renda nacional norte-americana, e permaneceu quase que imutável entre 1960 a 1980.
E, na década de setenta houve uma retomada progressiva do ressentimento e de ódio dos brancos contra os programas governamentais que presumivelmente favoreciam os negros e, tal movimento encontrou sua maior expressão durante a eleição de Ronald Reagan que chegou à presidência e, prometeu eliminar os programas de igualdade de oportunidade e reduzir a ajuda governamental aos menos favorecidos, que, em grande parte, são negros.
Diante desse contexto surgiu a necessidade de revitalizar o movimento negro para defender e reafirmar as conquistas já alcançadas nas décadas anteriores. Surgiu Jesse Jackson, um ex-colaborador de Luther King que emergiu como novo líder reconhecendo a necessidade se estender para além da população negra e, assim, criar uma aliança interracial que englobaria várias etnias não brancas, e, mulheres e simpatizantes brancos e liberais. Formou-se o famoso conceito de coalização arco-íris de Jackson .
É verdade que não obteve sucesso na formação de tal coalizão pois suas posições antissemitas foram destrutivas ao alienar o apoio da etnia que tradicionalmente sempre foi simpática às aspirações dos negros. Apesar dessa falha, a campanha promovida por Jackson para sua candidatura democrata em 1984 demonstrou ter grande força política, vencendo eleições em diversos vários do Sul dos EUA e, galgando até vinte e cinco por cento de votos em Estados mais industrializados tais como Illinois e Nova York e, forçando assim, o comprometimento do partido democrata em manter e até estender as conquistas políticas dos negros adquiridas na década de sessenta.
O movimento dos negros nos EUA entra na década de oitenta com fôlego renovado. Em 2008 Barack Obama foi o primeiro presidente negro dos EUA. E, tal fato foi considerado por muitos como o anúncio de uma nova era, sem as tensões raciais que haviam marcado a história do país.
Já aqui no Brasil, há um caminho mais longo e árduo. E, sabemos que a experiência norte-americana não pode ser comparada com a do Brasil. É difícil refutar o mito da democracia racial que tem longa tradição na história de luta dos negros. E, nesse último século, as políticas públicas e, a mais famosa foi a Frente Negra Brasileira , que foi banida por Getúlio Vargas de 1937.
O que já corresponde à uma evidência conclusiva da contínua existência de discriminação e desigualdade racial na sociedade brasileira.
Após o pós-guerra tais movimentos têm atraído milhares de seguidores e tem sido um estímulo para dar continuidade ao debate público sobre as deficiências e incongruências do paraíso racial brasileiro Porém, nenhum deles, conseguiu gerar um movimento de massa, com expressivo peso moral e político como fez Luther King, Julian Bond , Jesse Jackson e outros líderes de expressão nacional nos EUA.
Porque não Brasil não temos essa liderança? A resposta vem do caráter paternalista e autoritário das relações sociais e políticas brasileiras, que, mesmo durante os períodos de democracia, torna muito difícil a construção de movimento político de massa que seja autônomo e nacional.
Cumpre igualmente observar que o movimento pelos direitos civis nos EUA surgiu e obteve suas vitórias na região mais tradicionalista, autoritária e repressora do país, ou seja, nos Estados do Sul dos EUA .
Mas, sozinho o autoritarismo não consegue explicar as diferentes trajetórias das lutas dos negros nesses dois país, deve-se ver também a natureza das relações raciais brasileiras, onde não existe a separação racial imposta pelo Estado, tal como se verifica na segregação ianque ou ainda no apartheid da África do Sul. O caráter mais relaxado ou, mesmo, frouxe da hierarquia racial brasileira acaba por minar a mobilização e resistência da política afrobrasileira de múltiplas formas.
O fato de haver integração dos afrobrasileiros nas instituições básicas da sociedade, reduz necessidade do povo negro de desenvolver instituições sociais e culturais próprias, e, por essa razão, de modo mais autônomo, conforme a segregação racial exigiu nos EUA. O nosso país não compartilha com os EUA de ter a tradição de igrejas e faculdades independentes, que favoreceram sensivelmente a formação de base ideológica e institucional e de liderança para o desenvolvimento do movimento dos direitos civis.
Aqui também não vige um limite evidente e claro existente entre negro e branco, o que torna possível a cooptação, por parte do grupo branco, de afrobrasileiros particularmente talentosos e ambiciosos.
Assim, num sistema mais rígido, onde os indivíduos permaneçam em sua casta racial e, assumem posições de liderança dentre desta. Infelizmente, aqui não é impossível para estes negar a sua própria negritude, por vezes, se assumindo tão-somente como morenos , e daí ser mais difícil existir e manter a identidade afrobrasileira, para se tornar um exercício consciente de força que muitos ainda relutam em assumir.
Registre-se ainda que de forma mais efetiva o sistema de hierarquia racial brasileiro labora contrário a formação de movimento político afrobrasileiro, sendo depreciada a base moral desse movimento, sendo incapaz de mobilizar tantos os brancos oponentes ao racismo quanto os negros.
Finalmente, os segregacionistas restam impossibilitados de legitimar seu sistema que contradiz visivelmente os princípios que definem uma sociedade livre e democrática que são os valores como justiça, igualdade e liberdade, além da preservação da dignidade humana.
Enquanto que brutalidade do racismo ianque expôs sua fraqueza, aqui, entre nós, vige certa flexibilidade e uma sutileza bem peculiar do racismo brasileiro reafirmando sua força.
Conclui-se que para haver a indignação moral contra a desigualdade racial é mais difícil de ser gerada num país onde a discriminação baseia-se em formas silenciosas, inconsistentes e hipócritas, ficando cada vez mais difícil de identificar e transformar em ação política. Impede mesmo que haja a indignação contra o racismo bem como a necessidade de combater injustiças que transitam livremente na sociedade brasileira.
Há milhões de negros brasileiros que sofrem continuamente injúrias e aflições decorrentes da discriminação racial. E, mesmo há também milhões de brasileiros, de diferentes etnias e origens que sofrem muito com as mais corriqueiras ofensas, como da miséria, desnutrição, ausência de real acesso à educação, ausência de real acesso ao pleno emprego, à saúde pública e se submetem não só a poluição ambiental, como também aos desmandos de sucessivos governos corruptos e combalidos que ainda se perpetuam no poder.
Evidentemente o racismo opera a mais grave ofensa e, na medida em que a sociedade é racialmente dividida, mais se torna vulnerável à dominação e exploração das ditas camadas sociais superiores. E, mesmo os membros do grupo racial dominante sofrem em si mesmo a situação, quando se aglomeram na multidão de “brancos pobres” da América do Sul e do Brasil que enfrentam múltiplos desafios agudos e presentes numa sociedade brasileira imersa numa recessão econômica expressiva, onde até o racismo perde importância, em face de sociedades mais prósperas e mais equânimes como revela ser os EUA.
Há muitos fortes obstáculos para a criação e atuação de um movimento antirracismo e, mesmo a partir de 1980 os variados partidos políticos reconhecem publicamente a existência de discriminação racial e desigualdade racial em nosso país, tanto que até instituíram comissões especiais e grupos de trabalho para prepara políticas nessa área .
Nosso país infelizmente historicamente tem preferido ignorar qualquer indicação de desarmonia racial em suas fronteiras. Observa-se que recentemente os líderes negros têm gerado significativo capital político capaz de chamar a atenção para um dos mais cruéis aspectos das relações raciais brasileiras como a que existe na repressão policial de afrobrasileiros e o preconceito por parte de órgãos jurisdicionais penais, de que "negro é bandido até que se prove o contrário" . Precisamos denunciar tais práticas para gerar aquele senso de indignação moral que é tão importante para agregar o movimento afrobrasileiro.
Faz-se necessário criar um movimento nacional de massas, os líderes afrobrasileiros tem um íngreme percurso a seguir, o que obrigatoriamente inclui a educação . E que se estenda até as áreas mais renitentes e tradicionais, onde a até hoje a mobilização negra enfrenta mórbidos obstáculos políticos, sociais e culturais.
É verdade que o movimento afrobrasileiro enfrenta um inimigo mutante, disfarçado e, principalmente, invisível , que precisa ser revelado e desmascarado para enfim poder ser derrotado. Precisamos conclamar para uma segunda e definitiva abolição , para combater o injusto e triste segregacionismo racial.
Referências:
ANDREWS, George Reid. O negro no Brasil e nos Estados Unidos. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-64451985000200013 Acesso em 09.4.2019.
DOMINGUES, Petrônio. Uma história não contada: negro, racismo e branqueamento em São Paulo no pós-abolição. São Paulo: Senac, 2003.
FREYRE, Gilberto. Casa Grande e Senzala, Rio de Janeiro, Schmidt Editor, 1933.
HASEBALG, Carlos. Discriminação e desigualdades raciais no Brasil, Rio de Janeiro, Graal, 1979.
MOURA, Clóvis. Dicionário da Escravidão Negra no Brasil. São Paulo: EDUSP, 2005.
NUCCI, Guilherme de Souza. Racismo: uma interpretação à luz da Constituição Federal. Disponível em: http://www.cartaforense.com.br/conteudo/colunas/racismo-uma-interpretacao-a-luz-da-constituicao-federal/5447 Acesso em 9.4.2019.
RAMOS, Arthur: O Negro Brasileiro, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1934; 2. ed. São Paulo, Ed. Nacional, 1940.
REIS, Fábio Wanderley. O mito e o valor da democracia racial. Disponível em: http://books.scielo.org/id/v7ywf/pdf/reis-9788599662793-16.pdf Acesso em 9.4.2019.
RIBEIRO, Darcy. O Povo Brasileiro. São Paulo: Companhia de Bolso, 2003.
SCHARCZ, Lilia Moritz: O espetáculo das raças: Cientistas, Instituições e a Questão Racial no Brasil 1870-1930. São Paulo, Companhia das Letras, 1993.
SOUZA, Jessé. A Elite do Atraso. Rio de Janeiro: Leya, 2017.
VALENCIA, Robert. Tradução de Rosane Bujes. Disponível em:https://pt.globalvoices.org/2017/09/23/racismo-um-assunto-tabu-dentro-da-comunidade-latina-nos-estados-unidos/ Acesso e 9.4.2019.