A NOVA LEI DE ABUSO DE AUTORIDADE: ENSAIOS SOBRE A INSEGURANÇA DO TEXTO

Foi no início da noite do dia 14 de Agosto de 2019 que a câmara dos deputados colocou de joelhos a justiça e os poderes da república do Brasil.

De forma sagaz, o presidente da câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ) colocou em pauta um projeto que veio do Senado Federal que versa sobre o abuso de autoridade.

Tal projeto de lei tem como suposto objetivo punir rigorosamente os agentes públicos que cometerem abuso de suas prerrogativas e funções.

Em primeiro plano, parece um bom projeto, visto que os quadros públicos vêm se tornando quase intocáveis no tocante à punibilidade.

A aposentadoria compulsória no caso de delito como sujeito ativo um magistrado, as lambanças feitas por parlamentares que usam de seus cargos eletivos para se beneficiar na vida privada e a falsa oficiosidade com a qual alguns integrantes do Ministério Público instauram investigações infundadas são provas de que é sim necessária uma regulação legal para que essas práticas sejam coibidas.

No entanto, tal projeto, além de estabelecer esses limites necessários, traz consigo inúmeros jabutis: termo do jargão político que é usado como definição para inconsistências identificadas em um projeto extenso.

Esses jabutis nada mais são do que um verdadeiro atentado garantista hiperbólico contra o sistema penal brasileiro.

Itens como a previsão de pena de detenção de até dois anos para o policial que utilizar algemas em um detido que não oferece risco ou resistência e a punição com prisão de até quatro anos para o magistrado que decretar medida de privação de liberdade de forma contrária às situações previstas em lei são exemplos que, sem pudor, escancaram a subversão da justiça em face da criminalidade.

Ora, imaginemos as seguintes situações:

a) Uma guarnição composta por dois policiais acaba de deter em flagrante dois acusados de roubo. Sabe-se que um policial deve dirigir e o outro tomar conta dos detidos. Imaginemos então que estes suspeitos não ofereceram nenhuma resistência ou perigo de fuga, até entrarem na viatura, o que – segundo a nova lei – impede que os policiais os algemem. O risco que esses policiais correm com os dois suspeitos desalgemados dentro da viatura é inestimável. A possibilidade de fuga é iminente. A nova legislação pune esses policiais com pena de detenção de até dois anos, apenas por fazerem seu trabalho com cautela e segurança.

b) Um juiz se encontra na fase decisória de um processo penal de abandono de incapaz. Uma mãe que abandonou seu filho e deixou-o à mercê do tempo, desemparado, com frio, fome e desespero, está prestes a ser condenada e receber uma pena privativa de liberdade. O juiz então a aplica. Com isso, o magistrado pode pegar até quatro anos de detenção por proferir tal sentença, visto que tal crime pode ser punido com uma pena alternativa, restritiva de direitos, pois a pena mínima prevista não ultrapassa quatro anos.

Em suma, os policiais podem ser presos, já os suspeitos que eles prenderam podem ser absolvidos, ou, se condenados, terão direito a todas as benesses do nosso sistema penal e até conquistar a liberdade antes dos agentes da lei.

O juiz, que foi coerente em sua sentença, neste caso, certamente ficará detido mais tempo do que a criminosa condenada por abandonar o próprio filho.

Nota-se a enorme inversão de valores, a ânsia de garantir direitos do acusado, o que se transforma em pesadelo para quem está do lado da aplicação correta e coesa da lei.

A leniência já conhecida da legislação brasileira acaba de ficar mais afrouxada do que nunca. Subverteram os servidores públicos, que detém a fé pública, à criminalidade. Os jabutis dessa lei simplesmente estipulam a desconfiança imediata do agente público, referendada também pela já vigente audiência de custódia.

Limitar os poderes do Estado não é uma má ideia, afinal todas as democracias sólidas exigem uma autonomia para as pessoas, as liberdades são respeitadas e o Estado deve servir ao povo e não o povo ao Estado.

Entretanto, quando uma legislação perversa dessa é travestida de simples limitadora, coloca-se em xeque toda a legitimidade de todos os poderes da república, trazendo uma brutal insegurança jurídica e o questionamento acerca do real objetivo dos congressistas em aprovar tão rapidamente o projeto, vez que muitos deles são investigados, o que os torna potenciais vítimas deste novo conceito de abuso de autoridade.

Vale dizer, no entanto, que a natureza da ação é pública incondicionada, o que traz um respiro mais sensato para a utilização destes dispositivos, vez que o Ministério Público que irá propô-la. O que não impede, dentro do prazo legal, que haja uma ação privada por parte do ofendido, a chamada ação privada subsidiária da pública.

Ainda há a chance deste projeto não vigorar, vez que seguiu para sanção do Presidente da República, o que não o impede de vetar total ou parcialmente o texto apresentado.

Como dito, há bons pontos no projeto que punem objetivamente condutas reprováveis de abuso de autoridade e limitam poderes de agentes públicos. Logo, espera-se que o presidente observe os bons pontos do projeto, levando-os à sanção e que os jabutis sejam expostos e vetados.