Coisa Julgada Inconstitucional: A relativização da coisa julgada e a consagração do princípio da segurança jurídica


I - Aspectos da coisa julgada

Coisa julgada é a decisão judicial sobre a qual não há que se falar nova discussão e caracteriza-se pela imutabilidade. Em outras palavras, coisa julgada é a decisão judicial que transita em julgado, nos moldes do art. 6º, §3º da Lei de Introdução ao Código Civil é a “decisão de que já não caiba recurso”. Na coisa julgada, o direito congrega-se ao patrimônio do seu titular por força da proteção que recebe a imutabilidade da decisão judicial.
É dita material quando o conteúdo da decisão judicial proferida é liquidante, naquele ou noutro processo. É uma espécie de pacificação do conflito para o qual foi outorgado à apreciação do Estado-juiz. É formal quando dos atributos dos efeitos da decisão passa essa sentença a dispor de imutabilidade e indiscutibilidade, quando, em determinado processo, não está apta a interposição de recurso, seja ele ordinário ou extraordinário, nos termos do artigo 467 do CPC.
A coisa julgada impede uma nova propositura da mesma ação ou posterior recurso (função negativa). É oportuno dizer que a ação é idêntica a outra quando esta detém os mesmos elementos (partes, causa de pedir e pedido). Exemplo claro de ações não idênticas é o caso da ação de revisão de alimentos fundamentada na modificação da situação do pai que descobriu-se posteriormente (por exame DNA) que não é, na realidade, o pai da criança. Tal fato não ofende a coisa julgada que se formou com a sentença de mérito.
Forma-se coisa julgada quando a fase recursal não foi conhecido por intempestivo ou esgotamento dos meios recursais. O momento da formação da coisa julga, em outras palavras, é justamente o momento em que a sentença torna-se impugnável.
Quando as partes entram em litígio, o que se espera é dar um fim a essa disputa. É o que se exige para que a calmaria reine entre as partes litigantes. Por isso é que a lei adjudica à sentença a qualidade de lei entre as partes processuais, é o que se chama autoridade da coisa julgada.
Na realidade, porém, ao instituir a coisa julgada, o legislador não tem nenhuma preocupação de valorar a sentença diante dos fatos ou dos direitos. Impele-o tão-somente uma exigência de ordem prática, quase banal, mas imperiosa, de não mais permitir que se volte a discutir acerca das questões já soberanamente decididas pelo Poder Judiciário. Apenas a preocupação de segurança nas relações jurídicas e de paz na convivência social é que explicam a res idicatta.
Ao formar lei entre as partes a sentença também fica sujeita a um controle de sua constitucionalidade, assim como qualquer ato de qualquer poder.

II - A Coisa Julgada Inconstitucional

Apesar de ser um fenômeno recente, a constitucionalização do Direito não é nada além do rumo certo da explanação jurídica, ao que poderia ter sido institucionalizado em nosso país bem antes de qualquer outro código que explicasse tal forma interpretativa sob a luz da constituição. Por ser a maior e principal fonte da interpretação jurídica e social, todo e qualquer ato que seja desconforme com os princípios, preceitos e normas constitucionais deve ser expurgado do âmbito jurídico, não é diferente com a sentença judicial.
A coisa julgada inconstitucional deve-se ser considerada que tal inconstitucionalidade é refernte à sentença, isto é, o que a coisa julgada faz é vincular esta ordem. Em verdade, em verdade há que se falar em uma “sentença inconstitucional” com autoridade de coisa julgada.
O termo “inconstitucionalidade” é aplicado latu sensu, em que é inconciliável ato e norma constitucional. Destarte, pode-se definir como sentença inconstitucional aquela na qual o comando não segue preceitos da Constituição.
A sentença é inconstitucional não apenas (a) quando aplica norma inconstitucional (ou com um sentido ou a uma situação tidos por inconstitucionais), mas também quando, por exemplo, (b) deixa de aplicar norma declarada constitucional, ou (c) aplica dispositivo da Constituição considerado não auto-aplicável, ou (d) deixa de aplicar dispositivo da Constituição auto-aplicável, e assim por diante. Em suma, a inconstitucionalidade da sentença ocorre em qualquer caso de ofensa à supremacia da Constituição, e o controle dessa supremacia, pelo Supremo, é exercido em toda amplitude da jurisdição constitucional, da qual a fiscalização da constitucionalidade das leis é parte importante, mas é apenas parte.
Como leis e atos administrativos, atos do Poder Legislativo e do Poder Executivo, respectivamente, estão submetidos ao controle de constitucionalidade, não se pode almejar modo diferente de controle da sentença, ato par excellence do Poder Judiciário. Do contrário fosse, o art. 2º da Carta Magna, que trata da independência e harmonia dos Poderes da União, estaria sendo seriamente ferido. Desse modo, visando a igualdade entre os Poderes, também a coisa julgada se submete ao crivo da Constituição e em caso de contradição deve ser retirada do ordenamento jurídico vigente, como qualquer outro ato dos outros poderes.
Necessário se faz falar que a coisa julgada inconstitucional só pode ser contestada caso a norma ainda esteja em vigor e não com base em norma superveniente. Não há que se falar em inconstitucionalidade por força de lei que revoga aquela taxada de inconstitucional. Caso a sentença tenha como base aquela outra lei, sendo ela à época constitucional, não há porque discutir sua constitucionalidade, a ansiedade do legislador é somente de pôr à coisa julgada proteção contra os efeitos da nova lei que apresenta regramento díspare da normalização do negócio jurídico objeto de decisão judicial irrecorrível e indiscutível, como garantia das partes envolvidas. É assunto de direito intertemporal na qual o princípio da irretroatividade da lei é consagrado, fazendo com que a segurança jurídica da sentença e das partes litigantes seja efetivada.
O tratamento dado pela Carta Maior à coisa julgada não tem o alcance que muitos intérpretes lhe dão. A respeito, filio-me ao posicionamento daqueles que entendem ter vontade do legislador constituinte, apenas, configurar o limite posto no art. 5º, XXXVI, da CF, impedindo que a lei prejudique a coisa julgada.[10]


III  A relativização da coisa julgada inconstitucional e a segurança jurídica

Relativizar a coisa julgada é desconsiderar sua autoridade, mediante fato posterior ocorrido e que leve, após sua análise, a mudança no status daquela decisão proferida sem os fundamentos precisos, para que aquele caso atingido seja revisto de forma mais escorreita.

EMENTA: AÇÃO DE NEGATIVA DE PATERNIDADE. EXAME PELO DNA POSTERIOR AO PROCESSO DE INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE. COISA JULGADA.

I – Seria terrificante para o exercício da jurisdição que fosse abandonada a regra absoluta da coisa julgada que confere ao processo judicial força para garantir a convivência social, dirimindo os conflitos existentes. Se, fora dos casos nos quais a própria lei retira a força da coisa julgada, pudesse o Magistrado abrir as comportas dos feitos já julgados para rever as decisões não haveria como vencer o caos social que se instalaria. A regra do art. 468 do Código de Processo Civil é libertadora. Ela assegura que o exercício da jurisdição completa-se com o último julgado, que se torna inatingível, insuscetível de modificação. E a sabedoria do Código é revelada pelas amplas possibilidades recursais e, até mesmo, pela abertura da via rescisória naqueles casos precisos que estão elencados no art. 485.

II – Assim, a existência de um exame pelo DNA posterior ao feito já julgado, com decisão transitada em julgado, reconhecendo a paternidade, não tem o condão de reabrir a questão com uma declaratória para negar a paternidade, sendo certo que o julgado está coberto pela certeza jurídica conferida pela coisa julgada.
A partir da discussão sobre a relativização (desconsideração) da coisa julgada surgem questões sobre a falha que pode gerar na consagração da segurança jurídica, princípio que é buscado pela formação da coisa julgada.
A segurança jurídica está amarrada à obrigatoriedade do Direito, à justiça que a decisão, lei ou ato proporciona. Ter um Direito escrito, para alguns doutrinadores é postulado principal de uma ordem jurídica, pois na vida em sociedade é necessário que uma ordem jurídica declare, em última instância, o que é lícito ou ilícito (a questão de se essas especificações são justas ou não cabe em outra discussão).[12]

A coisa julgada é corolário do princípio da segurança jurídica, pois é qualidade de não mais se discutir o assunto que a torna indispensável a dirimir conflitos nas relações sociais. Se a decisão é justa ou não o que ocorre é que ela irá formar coisa julgada e caso dessa decisão ser tomada com bases inconstitucionais, chega a consagrar uma segurança jurídica falha e não lograda no principal fim do Direito que é a busca da decisão justa. A legitimidade destas expectativas é baseada em processos de normatização e aplicação do Direito, que garante a norma jurídica seja obedecida. E a forma mais garantidora dessa objetividade e respeito é justamente seguir os princípios da lei que rege todas as outras, a Constituição. O Direito tem como função social a integração da ordem jurídica e legitimação dos juízos que são emitidos pelo Poder Judiciário, para isso deve preencher dois requisitos: a da aceitabilidade racional e a da decisão consistente.
Ao ser julgado um caso com base em lei ou ato inconstitucional, não parece ser justo (por mais “justeza” que se entenda da decisão) que essa decisão vigore no mundo jurídico viciada pela mácula da inconstitucionalidade. A segurança jurídica não pode nascer do puro e simples fato da decisão ter sido tomada e dela criar-se um campo de força que impede sua rediscussão ou “renegociação” dessa decisão que foi tomada por bases não constitucionais. Para que as decisões não sejam discricionárias, deve-se apreender que os juízes ajustam a prática decisória e interpretativa no trabalho jurisdicional construído ao longo de gerações. Sendo obrigado a resolver todos os casos litigiosos, o juiz pressupõe que sempre haverá solução, afastando, portanto, as “lacunas”, e que essa solução somente servirá para aquele caso, o que afasta antinomias. A atividade judicante é controlada por um comprometimento (no sentido de obrigação) institucional de motivação dos seus argumentos com base no direito, tornando o magistrado um estudioso das conjeturas legais em que se baseia sua atividade.
A segurança jurídica proporcionada pela relativização da coisa julgada inconstitucional é a reiteração e aplicação correta do princípio em questão, pois não há mais insegurança em uma decisão do que ser esta uma decisão que não supre o primeiro item da sua validação (e da validação de qualquer ato): a conformidade com a Constituição. Não se pode assegurar que a segurança jurídica seja representada unicamente pela coisa julgada (como já foi explicitado acima, a coisa julga é corolário da segurança jurídica, apenas mais um). A segurança jurídica é mais consagrada pela aplicação da norma à luz da Constituição. O termo da sentença não é sua mera publicação e intimação, e sim a sua efetiva conformidade com o que a Lex Mater entendeu por bem garantir ao cidadão.

Conclusão


A reforma do Código de Processo Civil se propôs não a demolir as instituições daquele que vigia anteriormente, o escopo é a racionalização do processo brasileiro, uma forma de torná-lo maleável na administração judiciária, não no sentido de que qualquer forma seria aceita, e sim no sentido de que a formalidade quando necessária fosse deixada de lado a garantir um processo célere, coisa que a própria Constituição Federal garante aos cidadãos. As inovações trazidas por essa reforma fazem com que o processo seja esmiuçado de maneira que o maior número de casos seja abarcado pelos artigos ali presentes.
A relativização da coisa julgada (material, formal ou inconstitucional) mostra-se, então, como importante instrumento de garantia de segurança jurídica, que vai valorar, criar o seu juízo de valor e expôr na sentença a norma que aplicou na decisão. Ainda assim, nem toda sentença pode ser acolhida no procedimento brasileiro. A Constituição determina que as decisões sejam fundamentadas e, por uma interpretação extensiva, fundamentadas com normas estritamente constitucionais. No entanto, segundo a análise exposta no trabalho, mostrou-se que o princípio da segurança jurídica é fundamental para a possível aceitação da formação autêntica da autoridade da coisa julgada, visto que é necessário analisar o bem jurídico protegido em cada caso.
Clusius
Enviado por Clusius em 04/10/2017
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