Deliberação nos Tribunais Constitucionais: Modelo seriatim versus per curiam
A prática deliberativa do Supremo Tribunal Federal, cujas reuniões de plenário são transmitidas ao vivo pela TV Justiça e pela Rádio Justiça, tem suscitado, no meio jurídico, um intenso debate.
O professor André Rufino do Vale, em trabalho denso que constitui a sua tese de doutorado intitulada “Argumentação Constitucional: um estudo sobre as deliberações nos tribunais constitucionais”, e que nos inspirou neste artigo, tratou com profundidade esta questão. O doutorando visitou diversas cortes constitucionais em vários países, dentre os quais Espanha e México, e comparou as práticas de deliberação desses tribunais com as do Supremo Tribunal brasileiro. A tese foi aprovada em fevereiro de 2015, na Universidade de Alicante, na Espanha, em convênio com a Universidade de Brasília (UnB). [1]
Critica-se o sensacionalismo que envolve as decisões da corte brasileira, em seções que se arrastam em múltiplas discussões, muitas vezes acaloradas, com votos parnasianos extremamente extensos e recheados de teorias longínquas, rebuscadas no preciosismo da literatura jurídica que a vaidade faz aflorar.
O professor, diplomata e ex-ministro da Fazenda e do Meio Ambiente Rubens Ricupero, em entrevista à revista eletrônica Consultor Jurídico, assim se expressou sobre o nível de alta exposição dos ministros do STF, no julgamento da Ação Penal 470, conhecida por “mensalão: “os membros da corte se expõem demais, o que acaba diminuindo-os frente à população”. Para o professor, a imensa maioria é formada de pessoas que se pavoneiam com uma vaidade absurda, e não são capazes de manter um comportamento como o que um magistrado deveria ter, de discrição. E acrescenta: “pessoas que se expõem, como esses ministros – falando, gesticulando, mostrando egos superdimensionados - na verdade se diminuem perante a população”. [2]
A intensificação dessa postura levou o ministro Teori Zavascki a manifestar um profundo desconforto pessoal com o que ele classificou de “fenômeno generalizado", no qual juízes, em desacordo com a Lei Orgânica da Magistratura, tecem comentários públicos sobre decisões de outros juízes, relativas a processos em curso. Para o ministro, esse é um fenômeno que não depõe a favor da instituição.
A prática deliberativa das cortes constitucionais varia de acordo com a modelagem institucional que cada sistema assume, e está fundamentalmente relacionada a dois aspectos: o primeiro aspecto é o ambiente institucional onde ocorrem as deliberações, que podem ser fechados ou secretos, por um lado, ou abertos ou públicos por outro; o segundo, consiste na forme da entrega ou da apresentação dos resultados (acórdão), que pode ocorrer em texto-único, conforme o modelo per curiam ou por meio de texto composto, característico do modelo seriatim. O Supremo Tribunal Federal esposou este último.
A denominação de Supremo Tribunal Federal foi adotada no Decreto nº 510, de 22 de junho de 1890, conhecido por “Constituição Provisória”, e confirmada pelo Decreto nº 848, que organizou a Justiça Federal, do mesmo ano.
Já nos primórdios da nossa Suprema Corte, no início da República, observa-se que, no plenário, o clima de harmonia entre os ministros nem sempre estava presente. Alvo da atenção do público, os ministros dificilmente podiam evitar o clima tenso da competição. Esmeravam-se na apresentação e justificativa dos votos e buscavam impressionar o público com suas erudições. Rixas e ressentimentos pessoais geralmente afloravam nesses embates, mas o decoro, reforçado pelo ritual, era mantido.
O elevado nível de exposição é próprio da forma de deliberar e entregar a decisão colegiada, adotada pelo Supremo Tribunal Federal: o modelo seriatim.
Este modelo aberto ou público, tradicionalmente vinculado às Cortes Constitucionais dos países anglo-saxônicos de tradição consuetudinária (common law), é adotado minoritariamente por alguns poucos países, principalmente quando se toma por referência os julgamentos das diversas Cortes Constitucionais. As maiores referências do modelo seriatim podem ser encontradas nas práticas de julgamento das Cortes Constitucionais da Inglaterra e da Suíça. Outros países adotaram o modelo seriatim: Escócia, Irlanda, Canadá, Noruega, Suécia e Finlândia.
Não obstante a tradição inglesa e suíça, atualmente, a publicidade das deliberações encontra sua maior expressão em nações da América Latina, como Brasil e México. No caso dos referidos países, a publicidade tem sido levada ao seu máximo alcance, para permitir que as sessões deliberativas das Cortes Constitucionais sejam não apenas abertas à entrada do público em geral, mas que também possam ser acompanhadas instantaneamente pela TV Justiça (Brasil) e pelo Canal Judicial (México) por todo cidadão, em qualquer parte do território nacional. Os estúdios da TV Justiça e da Rádio Justiça estão localizados no subsolo do edifício-sede do Supremo Tribunal Federal, na praça dos Três Poderes, em Brasília.
Na Europa continental, se houve alguma tradição seriatin ela chegou ao fim com as monarquias absolutistas. Como servos do monarca absolutista, que concentravam em suas mãos todo o poder (inclusive o judicial), os juízes emitiam as decisões em nome do monarca, que detinha o poder de reverter uma decisão judicial e até substituir o juiz.
No Brasil, o modelo seriatim foi adotado desde 1891, quando começou efetivamente a exercer a jurisdição constitucional, ou seja, desde que o Supremo Tribunal Federal iniciou a sua histórica tradição de julgamentos.
Emília Viotti da Costa [3], nos ensina que já nos primeiros anos de funcionamento do STF, nos julgamentos mais rumorosos, o tribunal se transformava em um verdadeiro “teatro” aberto ao público, que lotava as galerias e a sala das sessões para aplaudir as brilhantes sustentações orais de juristas do quilate de Rui Barbosa, reconhecidamente um dos maiores advogados brasileiros de todos os tempos.
O público se manifestava ruidosamente, a favor ou contra um ou outro voto, e vaiava, assobiava, aplaudia os discursos e os acórdãos, apesar dos pedidos por “ordem no tribunal” e das reiteradas advertências do presidente da Corte, que ameaçava os manifestantes de expulsão.
A figura de Rui Barbosa e sua retórica lúcida e apaixonada comoviam aos presentes, muito deles estudantes de direito e profissionais liberais. Ruy arrogara a si a função de defensor da Constituição e das liberdades individuais e dava lições de liberalismo e democracia.
O modelo seriatim além de possibilitar as sessões plenárias abertas, com livre acesso ao público, admite o voto individual de cada um dos ministros, inclusive os que apresentam teses divergentes, e delibera por agregação das várias manifestações individuais, que formam um resultado final, conclusivo, representado pelo acórdão.
O ambiente institucional das deliberações se caracteriza, portanto, pela ampla abertura, pela liberdade irrestrita de acesso não só das partes e seus respectivos advogados, mas também de toda e qualquer pessoa que detenha interesse no julgamento. A regra geral é dar ampla publicidade, salvo apenas em casos excepcionais em que a deliberação a portas fechadas venha a se justificar, a exemplo dos casos de direito penal, de família e que envolvam interesses subjetivos de menores de idade.
A publicidade dos atos processuais é hoje mandamento constitucional: A Constituição Federal/1988, artigo 5º, inciso LX, preceitua: “a lei só poderá restringir a publicidade dos atos processuais quando a defesa da legitimidade ou o interesse social o exigirem” e o artigo 93, inciso IX, que prescreve: “todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade, podendo a lei limitar a presença, em determinados atos, às próprias partes e seus advogados, ou somente a estes, em caso nos quais a preservação do direito à intimidade do interessado no sigilo não prejudique o interesse público à informação”.
As deliberações dos tribunais são entregues por meio do acórdão, que em linguagem jurídica vem de “acordam” (3ª pessoa do plural do presente do indicativo do verbo acordar). O substantivo acórdão, portanto, é a resolução ou decisão tomada coletivamente pelos tribunais.
A apresentação das decisões do tribunal, no modelo seriatim, se caracteriza por um agregado de posições individuais de cada um dos membros do colegiado, cujos votos são expostos “em série” (daí o significado do termo seriatim) em um texto composto.
A deliberação, comumente, não se desenvolve com o objetivo de produzir um texto final com uma única ratio decidendi que possa representar a posição unívoca e impessoal da Corte, mas como uma proclamação sucessiva das decisões individuais dos membros do tribunal.
O resultado é apresentado em texto composto pelos diversos votos e suas respectivas ratio decidendi, o que torna bastante complexa, em alguns casos, a tarefa de definir com precisão o fundamento determinante da decisão do tribunal, desconsiderando-se o que teria sido, apenas, mero comentário lateral na decisão (obter dictum).
Por fim, normalmente conclui-se pela extração de um texto “mínimo comum” que contemple os distintos argumentos. Assim sendo, no modelo seriatim, a ratio decidendi de cada um dos juízes adquire uma importância fundamental e passam a estar vinculados a suas próprias decisões e argumentos. Não são estranhos, neste modelo, a produção de um “overrruling pessoal”, hipótese em que determinado juiz venha a rever o seu próprio posicionamento.
Em cada país, podemos constatar alguma forma de desalinhamento com a pureza dos modelos seriatim e per curiam. Obedecendo a tradição britânica do Common Law, a Suprema Corte americana adotou originalmente o modelo seriatim. Portanto, entre 1793 e 1800 a Suprema Corte americana anunciava suas decisões através das seriatim opinions, ou seja, cada justice pronunciava seu voto individualmente e o conjunto de todas as opiniões expostas em série e dessa forma apresentada ao público. A partir de 1801, quando John Marshall se tornou Chief Justice, a corte passou a adotar a prática de anunciar seus julgamentos em uma single opinion. A redação do acórdão ficou sob a competência do Chief Justice, que através da construção colegiada mais comprometida com a unidade institucional da Corte, entregava a opinion of the Court lastreada em uma única ratio decidendi.
Conforme Damares Medina, em artigo na revista eletrônica Consultor Jurídico em que cita (Henderson, 2007): “O Chief Justice Marshall esteva à frente da Suprema Coorte dos Estados Unidos por 35 anos, e assinou em seu nome a grande maioria das decisões da Suprema Corte no período em que a presidiu. A norma do consenso foi paulatinamente abandonada após 1941, sendo que, atualmente, a Suprema Corte adota um sistema híbrido no qual emite a opinião da Corte com o registro dos votos divergentes, em separado (Sunstein, 2015). [4 ]
Há vantagens e desvantagens na adoção do sistema aberto, conforme juristas dos mais diversos matizes. A justificação da adoção de modelo com estas características é bastante evidente e encontra-se no valor da transparência e na ideia de disclosure, tão cultivados nas democracias contemporâneas.
Nos países que o adotam, entende-se que a ampla transparência dos atos judiciais (neste caso específico, as deliberações) e a maior visibilidade e fluência da pluralidade argumentativa, permitem uma maior fiscalização e um controle mais eficiente da atividade judicante, inclusive no âmbito da jurisdição constitucional, por parte dos cidadãos. Na defesa do modelo o ministro Marco Aurélio tem ressaltado o fato positivo da transparência das múltiplas visões que podem existir dentro de uma mesma corte.
Quanto às desvantagens do modelo seriatim, tem-se apontado, entres outras, o “fator-surpresa”, tanto do voto do relator quanto dos demais ministros. O voto do relator, em tese, deveria ser um modelo paradigmático, a orientar o voto dos demais ministros. Essa falta de sincronia tem dificultado sobremaneira o papel convergente a um texto único e a uma ratio decidendi.
Em entrevista à revista eletrônica Consultor Jurídico, em setembro de 2015, o professor André Rufino do Vale defende a tese de reuniões prévias. [5] O ministro Cezar Peluso tentou fazer reuniões prévias e fechadas, mas encontrou resistência por parte de alguns ministros. No México, que adotou a realização de reuniões de deliberação prévia, crítica que se faz é que as reuniões de plenário acabam se transformando em mero teatro, posição que é endossada pelo Ministro Marco Aurélio.
Outro aspecto que pesa desfavoravelmente ao modelo seriatim é a necessária convergência para o que se considera uma grande inovação introduzida pelo art. 926 do novel Código de Processo Civil, que sinaliza a plena efetivação da uniformidade da jurisprudência dos tribunais. Não é uma tarefa fácil implementar uma cultura de precedentes, quando o tribunal fala por meio de 11 vozes, muitas vezes conflitantes, e não como um tribunal colegiado. Conforme nos lembra Damares, o elemento central de uma cultura de precedentes é o coeficiente de estabilidade das decisões, especialmente no caso da Suprema Corte de um país.
O segundo modelo de deliberação, muito próximo do modelo europeu-kelseniano, é denominado per curiam, expressão latina que significa “pelo tribunal”, e se caracteriza pela prática da forma de deliberação fechada ou secreta praticada e adotado pela maioria dos órgãos colegiados europeus: França, Itália, Alemanha, Espanha e Portugal, entre outros.
No modelo de deliberação per curiam os juízes se reúnem secretamente, numa sala especial do edifício sede do tribunal, em ambiente fechado, sem a presença tanto do público em geral como das partes e de seus respectivos advogados e, conjuntamente, analisam e debatem as matérias deliberativas, sob o compromisso de manter segredo de tudo o que ali se fala e se escuta. Nem aos contínuos são permitidos transitar para servir água, chá ou café.
O espaço reservado para as deliberações contempla o propósito de proporcionar a cada membro do colegiado a garantia da independência necessária para o desenvolvimento de um julgamento livre, longe dos olhares do público e das pressões externas.
A garantia da independência e da livre expressão dos magistrados é vista como uma justificativa importante para a adoção do modelo per curiam, que surgiu e se desenvolveu no contexto histórico francês, que, após a revolução de 1789, cuja ideia predominante passou a ser a de uma “vontade de Deus” ou de uma “vontade do Monarca” para uma “vontade geral”, da soberania popular exercida por meio de seus representantes.
Em suas origens, o modelo parece ter sofrido também algumas influências das práticas de julgamento aplicadas no processo canônico pela Igreja Católica, cujas decisões estavam associadas à autoridade da instituição e à imagem de verdade e justiça.
O modelo adotado por cada país, seja de deliberações abertas ou fechadas; sejam apresentadas em texto único ou composto, ou mesmo em modelos híbridos, estrará sempre relacionado com o seu processo histórico político-jurídico.
REFERÊNCIAS
[1] VALE, André Rufino. Argumentação Constitucional: Um estudo sobre a deliberação nos Tribunais Constitucionais http://repositorio.unb.br/bitstream/10482/18043/3/2015_AndreRufinodoVale.pdf
[2] RICÚPERO, Rubens. http://www.conjur.com.br/2016-nov-13/entrevista-rubens-ricupero-diplomata-ex-ministro-fazenda
[3] COSTA, Emilia Viotti da. O Supremo Tribunal Federal e a construção da cidadania. 2ª Ed. São Paulo: Ieje; 2007.
[4] MEDINA, Damares. http://conjur.com.br/2015-set-28/damares-medina-instabilidade-decisoes-stf-gera-inseguranca
[5] VALE, André Rufino do. http://conjur.com.br/2015-set-13/entrevista-andre-rufino-vale-doutor-direito-procurador-federal