A face estatal da exclusão social
A FACE ESTATAL DA EXCLUSÃO SOCIAL
- A INDIGNIDADE DA PESSOA HUMANA PROVOCADA -
O princípio da dignidade da pessoa humana é a fórmula jurídico-normativa que impede a mercantilização do homem, conforme já anotado, porque com ele o sistema de Direito absorve um conteúdo ético axiomático, que impõe o respeito à igualdade humana e à singularidade da pessoa como dado universalmente sujeito ao respeito de todos.
Com o acolhimento desse princípio, o Estado é obrigado a adotar políticas públicas inclusivas, ou seja, políticas que incluam todos os homens nos bens e serviços que os possibilitem ser parte ativa no
processo socioeconômico e cidadão autor da história política que a coletividade eleja como trajetória humana.
O Estado deve impedir que o homem se despoje do seu valor-fim dignificante e veja-se recolhido às sombras socio- econômicas e políticas; que ele seja renegado pela sociedade e, como antes observado, veja-se repudiado pelos seus e, envergonhado de si mesmo, rejeite-se e anule-se como cidadão.
Por isso é que todas as formas de excluir o homem do ambiente social de direitos fundamentais, de participação política livre, de atuação profissional respeitosa, de segurança pessoal e coletiva pacífica
são inadmissíveis numa perspectiva, proposta ou garantia de Estado Democrático. O Estado somente é democrático em sua concepção, constitucionalização e atuação, quando respeita
o princípio da dignidade da pessoa humana. Não há verbo constitucional, não há verba governamental que se façam legítimos quando não se voltam ao atendimento daquele princípio. Não há verdade constitucional, não há suporte institucional para políticas públicas que não sejam
destinadas ao pleno cumprimento daquele valor maior transformado em princípio constitucional.
Estado e o (neo)liberalismo: a volta ao Estado do não-direito
O Direito do Estado Democrático fez-se instrumento da idéia de Justiça que determinada sociedade adota em momento histórico especificado. Ao abrigar o princípio da dignidade da pessoa humana, a idéia de Justiça que se põe na base do sistema fundamental elaborado é o que se contém no homem, seus valores, seus desejos, suas dores.
Para resguardar e respeitar o homem, o Direito do Estado Democrático põe o prumo de sua elaboração na possibilidade da pessoa de cumprir a sua vocação atendendo aos seus apelos pessoais voltados, é certo, ao aperfeiçoamento do grupo social de que faz parte. No encontro do outro na praça de todos, o homem faz-se digno quando, honesto consigo, oferece-se respeitoso ao outro.
Ao Estado compete atuar, adotar comportamentos e ter ações em perfeita coerência com esta condição digna do homem livre, igualmente considerado em relação às oportunidades para que
realize as suas vocações e faça-se fraternalmente vinculado ao todo na ciranda política do encontro social. Como o Estado não é uma sociedade de anjos (tampouco de demônios, seja certo dizer), o Direito impõe-se para que não seja a praça pública arena de lutas, mas reinado de encontros de homens dados a saber-se o outro e no outro para serem felizes sem que seja necessário nada saber além de sua própria humanidade.
Sem o Direito, os interesses individuais prevaleceriam e os mais fortes realizariam os seus em detrimento de todos os outros que serviriam a toda a comunidade. As conquistas dos dois últimos séculos foram exatamente pela juridicização de matérias que importassem em interesses sociais, de tal modo não ficassem eles em desvalia diante da força do mercado, do laissez-faire, laissez-passer que le monde va de lui même, fase do império da não-lei e da desumanização das relações entre homens, alguns, como no dizer de Rousseau, tão ricos que
podem o outro comprar, e esse, tão miserável, pode se vender.
O Estado Social alterou esse quadro, passando a intervir no domínio econômico e ampliando o
domínio jurídico exatamente para evitar que a lei de mercado, que é a lei do não-humano, a lei do preço, a lei do que é sujeito à avaliação e que avilta o homem transformando-o em objeto ou coisa mensurável, dominasse as relações econômicas, políticas e sociais. O Direito cuidava, assim, para que o Estado não se ausentasse de sua tarefa maior de instrumento a serviço da realização do bem de todos os homens. O Estado Social era democrático, nisto que permitia houvesse um espaço livre de novas conquistas individuais, sociais e políticas, e jurídico, no
que dizia respeito à subsunção de governantes e governados ao direito posto à observância irrestrita e igual de todos.
O retorno do liberalismo voraz não se bastou na proposta do laissez-faire. Desde a década de 80, o que se tem é uma tentativa do império do dinheiro de desbastar todas as conquistas e voltar ao comércio de coisas e de homens. Só os que podem pagar pelos direitos, apenas os que podem mostrar merecimento pelo preço das coisas com que se ostentam socialmente é que se fazem titulares do direito de permanecerem membros do grupo. Aos outros cabe excluir-se da comunidade.
E se o Estado não permite agir senão incluindo os homens e universalizando os seus direitos, ao capitalismo agora fortalecido em sua goela titânica cabe destruir o Estado, máxime o Estado de Direito, substituindo-se a lei dos homens pela lei de mercado, que é a não-lei, que é a selva dos dinheiros com donos certos e destinos incertos, porque não-humanos nem justos. Esse Leviatã empresarial, monstro a engolir homens e países, tem em conta nada mais que a sua ganância insaciável por todas as formas de posse. E possui como quem tem uma mulher por uma mais que breve momento, gosto sem sabor de toque passageiro e fatal que não se sabe nem prospera porque nem se dá a ser um gesto sequer; possui pelo sentido destrutivo do que não se dá a
ser e destrói como anti-Midas, sem deixar existência após sua passagem. Esse Leviatã não quer nem precisa nem pode permitir a sobrevivência do Direito. Nem se diga a Democracia. Opõem-se o Estado liberal globalizante de hoje, o Leviatã do momento, e a Democracia. O liberalismo, que volta a mostrar a sua face inumana, abjeta o Direito. Com ele não poderia chegar onde chega: ao lugar da vergonha do ser humano que não é respeitado em sua dignidade no seio da comunidade em razão de sua condição humana. A indignidade provocada ou atribuída ao excluído deste velho liberalismo, que agora retorna, humilha
e degrada como novos campos de concentração espalhados nos eitões das grandes cidades, nos viadutos sem pontes e sem almas que abrigam-desabrigam os novos escravos brancos, legiões de
excluídos de direitos e de perspectiva de justiça e dignidade. Esses homens que escondem a face da indignidade que contra eles se comete, envergonham-se de si mesmos perante os filhos, a esposa, até perante os passantes amedrontados de ruas que viram pavilhões de sub homens indignados na fome e no desemprego provocado pela economia liberal.
E tal como brada Vivianne Forester, “não há nada que enfraqueça nem que paralise mais que a vergonha. Ela altera na raiz, deixa sem meios, permite toda espécie de influência, transforma em
vítimas aqueles que a sofrem, daí o interesse do poder em recorrer a ela e a impô-la... a vergonha deveria ter cotação na bolsa; ela é um elemento importante do lucro. A vergonha é um valor sólido, como o sofrimento que a provoca ou que ela suscita. ... Desse sistema emerge, entretanto, uma pergunta essencial, jamais formulada: é preciso ‘merecer’ viver para ter esse direito?... para ‘merecer’ viver, deve mostrar-se útil à sociedade, pelo menos àquela parte que a administra e a domina: a economia, mais do que nunca confundida com o comércio, ou seja, a economia de mercado.”
O liberalismo atual não quer o Direito, não pode com ele, não sobrevive se o homem puder ter a sua dignidade insculpida no sistema normativo fundamental e assegurada pela estrutura institucional. Daí por que se chega ao início de um novo século e de um novo milênio sob o signo da luta pelo primado da garantia da humanidade como elemento de respeito absoluto para que a dignidade do homem seja assegurada e seja ele o valor maior de todas as formas de convivência justa.
Estado e globalização
Ao nazismo do início do século correspondem as forças contemporâneas direitistas com o globalismo fascista, que, mais que o socialismo excludente, é o capitalismo expulsivo, aquele que elimina o homem de seu respeito a si mesmo por fazê-lo crer-se despojado de honorabilidade e respeito social. Fosse pouco o retorno do velho liberalismo, travestido de discurso novo, aliou-se a ele dado igualmente antigo e que se quisera ultrapassado, que é o da globalização do Poder. Quem detém o poder e acha-se capaz de impô-lo a todos os outros promove a sua extensão. Foi assim desde os romanos. Tem sido assim, agora, com os norte-americanos após a queda dos muros do leste europeu. Globalização não é o mesmo que mundo sem fronteiras. Fosse assim, os Estados Unidos
teriam arrebentado aquilo que eles teimam em manter a separá-los dos mexicanos. Como a rede de informações e o sistema de telecomunicações facilitou os contatos entre povos e pessoas, fala-se na inevitabilidade da globalização.
É bem certo que a tecnologia aproximou os homens. Mas não se há de esquecer que o homem fala facilimamente com o desconhecido do outro lado do planeta e mantém a sua dificuldade de conversar com o seu filho. O encontro humano mais estreito é sempre o mais difícil. Afinal, de perto se vê o outro. E o que o homem tem dificuldade é de
sustentar o olhar que o enxerga. A globalização faz cada um de nós mais cúmplice e mais culpado pelo que ocorre com qualquer outro
homem sobre a terra; mas também deixa-nos cada vez mais insensíveis ao sofrimento que se vê à maneira de jogos televisivos bem-editados em nossos aparelhos. Globalização não é igual para todos os povos. Há os que determinam a globalização e os que a sofrem. Ou, dito de outra forma, há os que globalizam e os que são globalizados.
Os direitos, as riquezas e as benesses de uns e de outros são diferentes, claro. Porque a globalização é processo político-econômico de luta por poder. Diz-se que ele é inexorável e fatal. O que é fatal não precisa
ser, contudo, uma fatalidade. O câncer pode ser fatal. Nem por isso se há deixar de lutar contra ele até se encontrar a fórmula certa de vencê-lo. O que é fato não há de permanecer como fatalidade; o que é determinado não se põe como determinismo. Não se há de submeter, pois, a uma contingência criada pelos interesses econômicos para se explicar o que não está para ser explicado, mas para ser resolvido de maneira coerente com o princípio da dignidade da pessoa humana.
A “demonização” do Estado, a partir do “thatcherismo” da Inglaterra, ou dos empresários que fizeram de Margareth Thatcher o seu porta-voz mais impositivo e modelar, precisa ser demonstrada como algo que se projeta como criação voltada não apenas contra as instituições jurídicas e políticas criadas pelo homem em seu proveito, mas contra o próprio homem, que conquistou com grandes lutas os seus direitos e os vê na iminência de serem perdidos ou, pelo menos, que estão sendo
permanentemente desrespeitados em benefício de interesses econômicos gravosos.
Há de se atentar que prevalece, hoje, no Direito Constitucional o princípio do não-retrocesso, segundo o qual as conquistas relativas aos direitos fundamentais não podem ser destruídas, anuladas ou combalidas, por se cuidarem de avanços da humanidade, e não de dádivas estatais que pudessem ser retiradas segundo opiniões de momento ou eventuais maiorias parlamentares.
Não se há de cogitar em retroceder no que é afirmador do patrimônio jurídico e moral do homem havido em conquistas de toda a humanidade, e não apenas de um governante ou de uma lei. Os direitos conquistados, especialmente aqueles que representam um avanço da humanidade no sentido do aperfeiçoamento da sociedade e que se revelam nos direitos sociais, não podem ser desprezados ou desconhecidos, devendo, antes, ser encarecidos e podendo ser ampliados. O que se apregoa com a globalização neoliberal é o oposto deste princípio: é o retrocesso aos
parâmetros do século XVIII, quando o homem tinha apenas alguns parcos direitos individuais, formalmente postos e garantidos sem qualquer força ou eficácia, sem que se obrigasse, ainda, o Estado a prover a sociedade de condições econômicas e políticas sujeitas aos interesses de todos, e não apenas de minorias.
A globalização neoliberal quer o não-Estado ou, pelo menos, o Estado do não-direito, no qual governantes cumprem ordens do comando econômico internacional, o qual, à sua vez, é supra estatal
e tem como única finalidade o lucro, obtido a qualquer preço, mesmo que seja o preço do homem. Nesse modelo estatal, ou pouco estatal, ou, pelo menos, estatal tão pouco público, o homem é nada em si mesmo; vale pelo que paga e paga pelo que pede. Nesse caso, o Estado é não um ente de inclusão, mas uma causa de exclusão, porque representa os interesses de quem detém o poder econômico político não-estatal, aquele que se orienta pelos seus próprios e únicos interesses particulares e, nessa condição, é agente que exclui todo aquele que não atenda a tais fins. Nesse modelo dito neoliberal globalizado ou globalizante, a exclusão é provocada porque a inclusão de todos no âmbito de titulares de direitos não interessa, não garante, não é fonte de lucros. O Estado passa a ser meio de realização de interesses privados, valendo-se do homem para os fins ditados pelos detentores do poder econômico internacional. A perversão do sistema é total; total é o seu modelo; totalitário é o seu regime: é o nazi-fascismo econômico impondo-se às organizações políticas, que exclui do âmbito de direitos todos os não-pertencentes à raça escolhida, a dos endinheirados que podem pagar pela produção lucrativa.
Pois este modelo perverso e adverso ao homem encontra voz e vez em dirigentes que, escolhidos até pelas urnas, submetem-se aos comandos da economia, parcelas das quais responsabilizam-se pelos
financiamentos das campanhas eleitorais e, depois, cobram a promissória a se resgatar ao preço dos cidadãos excluídos. Este modelo degrada o ser humano e elimina do seu vocabulário e de sua prática o princípio da dignidade, fazendo do homem apenas mais uma mercadoria social, aquela que deve ser mantida ou eliminada segundo a sua capacidade de pagar, ou não, pelo seu direito à vida.
Estado Contemporâneo e direitos sociais: trabalho/emprego e dignidade.
Muitas são as faces da exclusão social provocada pelo Estado e praticadas no Estado contemporâneo. Todavia, o que mais se considera como a marca da sociedade contemporânea é a da que advém das
condições sociais do homem em relação a seu desempenho profissional.
A organização política ocidental centra como valor básico o trabalho. Na encíclica Laborens in exercens, a Igreja reitera a sua consideração de ser o trabalho um direito do homem e um dever da sociedade.
Também as Constituições modernas, desde a mexicana, de 1917, e a de Weimar, de 1919, cuidam do trabalho como direito, no exercício do qual o homem realiza as suas vocações, produz e faz-se membro ativo da sociedade. Este direito social não existe sem que todos os demais direitos sociais, tais como o da educação, da saúde, da seguridade social, dentre outros, restem integralmente comprometidos em sua existência e, o que é mais, em sua eficácia. O trabalho e a condição do homem-trabalhador enfatizam a extinção da figura do escravo, tendo-se o
homem como o sujeito de sua produção e não objeto que com ela se confunde. Todavia, a sociedade ocidental, de uma forma muito especial, assimilou, desde a Revolução Industrial, o trabalho ao emprego. Passou-se a garantir o emprego como direito fundamental e não mais apenas o trabalho, o que estabeleceu, então, a valorização do empregado e não do cidadão trabalhador. Ao emprego associou-se a ideia de trabalho e de força de trabalho na sociedade e o empregado passou a ser dignificado em detrimento do trabalhador não-empregado. O denominado
trabalhador autônomo não se fez o profissional mais freqüentemente encontrado, pois esse como o denominado profissional liberal passaram a constituir fatias mínimas da sociedade. A própria economia denominou-se formal quando dotada da estrutura de trabalho organizada em empregos, absorvendo a mão-de-obra de empregados compreendidos segundo a legislação social vigente. Contudo, contrariamente a outros períodos da História, quando em algumas fases passageiras, os
trabalhos e empregos oferecidos diminuíam em função de fatores eventuais, como guerras, por exemplo, a tecnologia conduziu a um novo quadro, no qual os empregos estão se extinguindo em função da substituição do trabalho que antes era executado pelos homens e que é agora desempenhado por máquinas. Onde, antes, havia dez caixas de banco, hoje pode se contar com apenas um ou dois, porque parte das atividades que eram por eles desenvolvidas (tais como recebimento de depósitos bancários, etc.) passaram a sê-lo por máquinas. Esse emprego não está sendo aproveitado apenas temporariamente; ele extinguiu-se para o homem. E esse não é, portanto, um fenômeno passageiro, mas uma situação que se põe para permanecer.
Se o emprego está passando por uma inequívoca modificação com a extinção de alguns dos seus nichos, nos quais se absorvia a mão-de-obra produtiva, não é certo que o trabalho, igualmente, está acabando. Ao contrário, ele pode estar modificando-se em benefício do homem, se houver vontade política de se chegar a isso.
E tanto se dá porque o trabalho é arte do homem, sua criação, na qual se põe a marca de sua ação única. Logo, a não ser que se cogite da substituição do homem pela máquina, sempre haverá trabalho, mas não qualquer trabalho. A idéia é mesmo a de superar a fase do homem usado para fazer-se braçal ou mera força substitutiva de coisas. Mas o trabalho como criação do homem para o homem não está a se acabar. O que tende a modificar significativamente é uma forma de prestação
do trabalho, a relação de emprego como vinha sendo exercida desde a Revolução Industrial, com as modificações que foram sendo acrescentadas pelo advento dos direitos sociais.
Ocorre que a economia, como o próprio Direito, continuam a basear-se, essencialmente, no valor do trabalho, no princípio de seu primado sobre o capital, mas formula como sua manifestação mais comum a ser assegurada o emprego. Assim se dá na Constituição brasileira de 1988, que estabelece o valor do trabalho como fundamento do Estado Democrático de Direito, ao lado da dignidade da pessoa humana (art. 1o, III e IV), como direito fundamental individualmente exercitável (art. 6o), como fundamento da ordem econômica (art. 170, VIII).
Desses valores sociais, tidos como fundantes da própria organização política e composição estrutural do Estado brasileiro, formula-se a obrigatoriedade de atuar o Poder Público no sentido de dar
concretude a tais princípios. O desemprego é uma negativa de trabalho. Quer dizer: nega-se o direito ao trabalho àqueles que, dispondo de vontade e condições de trabalho, a ele não têm acesso por dependerem de uma estrutura na qual lhe seja possibilitado prestá-lo. Os que desempenham tarefas que não podem ser desenvolvidas senão mediante certas condições, por exemplo, metalúrgicos, portuários, etc., dependem do emprego, por serem especializados em atividade que não pode ser desenvolvida isoladamente ou em condição autônoma.
Verifica-se, pois, que sem que as políticas públicas sejam adotadas considerando-se os fins estabelecidos constitucionalmente como próprios, pode-se conduzir a ordem econômica em direção ao desemprego evitável e aviltante para o ser humano, e comprometedor da realização integral dos objetivos sociais.
Deve-se enfatizar que o desemprego não é um fenômeno fatalmente posto e igualmente válido para todas as sociedades. Ao contrário. As condições sociais, ambientais, políticas diferenciadas conduzem
a experiências paralelamente diversas. Por exemplo: num País em que o espaço territorial seja amplo e ainda não integralmente utilizado, as atividades relacionadas à agricultura e a outras formas de emprego no campo podem ser amplamente adotadas, de tal modo que o desemprego não assole essa sociedade.
Por outro lado, num país eminentemente rural, no qual predomine a economia agrária, os problemas de emprego/desemprego são inteiramente diferentes daqueles de países cuja economia é industrial.
Num como noutro caso, a adoção de políticas públicas é que haverá de considerar tais realidades e operar sobre elas quando de sua definição. O desemprego não é mera decorrência de determinadas circunstâncias que caiam do céu ou nasçam do inferno; é uma construção ou uma desconstrução social nascida de opções políticas postas a partir de dados relevados e fixados pelo Poder Público, que devem responder pelas conseqüências daí decorrentes. Por isso é que se tem a denúncia reiterada de que o desemprego que decorra de negativa dos
objetivos nacionais – nos quais se toma o homem como centro da organização político-econômica, ou do acatamento dos princípios da ordem econômica e social – é provocado pelo Estado, e as políticas
que a ele conduzam são, portanto, nulas, porque agressivas ao princípio da dignidade da pessoa humana, da valorização do trabalho e determinantes da exclusão social. A que se põe em detrimento
do homem-trabalhador, membro de uma sociedade na qual a relação trabalho/emprego ainda não se desfez, nem tende a ser inteiramente desfeita de imediato. As necessidades tecnológicas que levam à
extinção de empregos e a impedimento do trabalho precisam ser consideradas conjugadamente com os imperativos éticos de uma convivência digna, na qual o homem não seja conduzido à vergonha de
não poder trabalhar e, por conta disso, de não se impor respeitosamente como cidadão atuante em benefício de todos. Afinal, como saliento “não é o desemprego em si que é nefasto, mas o sofrimento que ele gera e que para muitos provém de sua inadequação àquilo que o define,
àquilo que o termo ‘desemprego’ projeta, apesar de fora de uso, mas ainda determinando seu estatuto.”
O desemprego provocado pelas políticas públicas ditas neoliberais globalizadas não apenas anula o direito ao trabalho, mas vilipendia o trabalhador quanto mais, em nome de resguardar algum trabalho, dele retira as suas garantias, às vezes diminuindo o seu conteúdo.
Há abuso de poder quando, em nome de uma possível ou pretensa necessidade de se reduzirem custos para garantir a empresa, o empresário leva à extinção de direitos assegurados ao trabalhador
e não flexibiliza a relação de emprego, mas a desestabiliza, anulando a própria condição do trabalho e do trabalhador. A precarização do emprego pode ser tão vil ao trabalhador quanto a determinação
do desaparecimento do emprego, porque em qualquer caso coloca-o em condição de instabilidade
absoluta perante o empregador e a sociedade, nela incluída a sua comunidade mais próxima, inclusive dos seus dependentes.
O desemprego causa medo, vergonha e um desgaste social que indigna o ser humano, o qual, por sua causa, fica alijado do processo social de habilitação política para participar ativamente das relações no seio da sociedade em que vive. O desemprego é o fator mais atual e perverso de exclusão social porque ele expulsa da sociedade quem poderia e gostaria de produzir para o benefício de si mesmo e de todos e que se vê repudiado por um dado diante do qual se põe como impotente. O desempregado é considerado vencido, aquele que não foi capaz de pôr-se a salvo da desventura da exclusão e que se torna, por isso, escravizado num sistema que o conduz às portas da morte, pelo menos da morte social. E, “é dessa maneira que se prepara uma sociedade de escravos, aos quais só a escravidão conferiria um estatuto. Mas para que se entulhar de escravos, se o trabalho deles é supérfluo? Então,
como um eco àquela pergunta que ‘emergia’ mais acima, surge outra que se ouve com temor: será ‘útil’ viver quando não se é lucrativo ao lucro? Aqui desponta, talvez, a sombra, o prenúncio ou o vestígio de um crime. Não é pouca coisa que toda ‘população’ ... seja mansamente conduzida por uma sociedade lúcida e sofisticada até os extremos da vertigem e da fragilidade: até as fronteiras da morte e, às vezes, mais além. Não é pouca coisa, também, que aquelas mesmas pessoas que o
trabalho escravizaria sejam levadas a mendigar... Não é pouca coisa ainda, que aqueles que detêm o poder econômico, vale dizer, o poder, tenham a seus pés aqueles mesmos agitadores que ontem
contestavam, reivindicavam, combatiam... não podemos ignorar que ao horror nada é impossível, que não há limites para as decisões humanas. Da exploração à exclusão, da exclusão à eliminação ou até mesmo a algumas inéditas explorações desastrosas, será que essa seqüência é impensável?”
CONCLUSÃO
Toda forma de preconceito é indigna e a sua manifestação é antijurídica. Lesa-se por ela o princípio enfatizado. A exclusão social é fator de indignidade e de indignação que põe o homem à margem de sua própria sociedade, carente de seu respeito próprio e de sua honorabilidade social, porque se põe como alguém que não é útil e, note-se aqui, no sentido utilitário, de não dar lucro, de não ser fonte de utilidade segundo os paradigmas de uma economia que rejeita o homem.
O desempregado é, hoje, vítima de preconceitos. Vivendo cada vez mais nas sombras de muros e viadutos encostados nos quais se recolhem e se escondem, tornam-se invisíveis aos próprios cidadãos. A cada chegada de visitante ilustre os membros da sociedade fazem desaparecer esses
vultos indesejáveis, que deixam à mostra de todos o insucesso humano não do vivente destas sombras, mas do sobrevivente das parcas e precárias luzes de uma economia feita para as moedas e não para as pessoas. A dignidade da pessoa humana que é, então, atingida, não é apenas aquela do excluído, mas daquele que se pensa ou se deseja incluído, mas que baixa os olhos a cada desempregado taciturno e
sombrio como quem se recolhe da própria imagem indesejada.
As políticas que produzem a exclusão, que fabricam novos guetos exterminadores, onde a vida tem um preço que não foi devidamente pago, segundo os padrões do mercado, não são públicas, não são
democráticas, não são humanas. E, então, a que se reduz a humanidade senão a uma ilusão do que poderia ter sido viver com o outro, se nem ao menos se fez possível ter um modelo de vida em que o homem fosse e permaneça sempre como o valor supremo independentemente de nome, profissão ou condição? Se nem ao menos se conseguiu pensar uma organização que servisse ao homem ao invés de ser ele a servi-la?
Se nem ao menos se conseguiu entender que o Justo é o próprio de todos os homens e que não há. Justiça para uma pessoa quando ela não prevalece para todos? Contra todas as formas de desumano tratamento, em detrimento do princípio da dignidade da pessoa humana, pela inclusão no direito e pelo direito de todos os homens, aponta para o humanismo ético voltado à realização do ser humano integral, aquele que integra o homem ao todo e propõe a crença no homem, certo de que o homem supera-se sempre e em todos os sentidos.
A dignidade da pessoa humana é a prova de que o homem é um ser de razão compelido ao outro pelo sentimento, o de fraternidade, o qual, se às vezes se ensaia solapar pelo interesse de um ou outro ganho, nem por isso destrói a certeza de que o centro de tudo ainda é a esperança de que a transcendência do homem faz-se no coração do outro, nunca na inteligência aprisionada no vislumbre do próprio espelho. Afinal, mesmo de ouro que seja o espelho, só cabe a imagem isolada. Já o
coração, Ah! coração tudo cabe.