ESTADO DEMOCRÁTICO E DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA

Para se ter uma sociedade democrática há de se ter, necessariamente, o pleno acatamento ao princípio da dignidade da pessoa humana. Como agora pensada e estruturada a democracia nos diversos sistemas vigentes, aquele princípio é axioma jurídico, o qual se firma e se afirma como fundamento do sistema constitucional.

O surgimento do conceito de dignidade da pessoa, no século XVIII, no fluxo das idéias iluministas, veio à baila como a busca e garantia “a finalidade última das democracias”. O pós-guerra de 45, momento no qual a humanidade passa a dotar de importância fundamental o
princípio da dignidade da pessoa, vê-lo transformar-se de valor-base dos direitos fundamentais em princípio estruturante do Estado Democrático.

A democracia tem o seu fundamento no homem e nele faz repousar a sua finalidade, pelo que a dignidade da pessoa é o núcleo central e referencial daquele regime político. Num Estado que se constitucionalize segundo os fundamentos democráticos, qualquer política contrária não apenas à dignidade, mas à dignificação da pessoa humana, ou seja, à sua possibilidade de transcender e lançar para lá de seus próprios e permanentes limites, o que se pode facilitar a partir de condições sociopolíticas postas à sua disposição.

O regime democrático não pode buscar como fim senão a concretização de políticas públicas que revelem ao homem a melhor situação sociopolítica para o bem de todos que compõem a família humana, em respeito à sua individualidade e em benefício da coletividade.

Por isso é que a dignidade da pessoa humana é não apenas um princípio fundamental da democracia, mas também um valor fundante das organizações sociais que, contemporaneamente, atuam com o Estado, mas não necessariamente dentro de sua estrutura burocrático-governamental. A democracia haverá de ser considerada na sociedade e não apenas cobrada do Estado.

O que se discute, ainda, no Direito é em que se fundamenta esse princípio que é fundante da escolha e organização constitucional democrática do Estado.

Tem-se asseverado que “la dignité est affirmé comme un principe fondateur de l’ordre politique au sens large d’ordre social, libre, juste et pacifique. Mais en dépit du vocabulaire religieux (proclamer sa foi dans), ce fondement n’est pas justifié. Comme le dit le cardinal Jean Marie Lustiger, c’est ‘le fondement non fondé de l’ordre social et politique’.”

Sendo a democracia o regime político que tem como finalidade garantir ao homem uma estrutura sociopolítica destinada a permitir-lhe realizar-se como ser livre, vocacionado a viver segundo as suas opções concertadas com os demais em igualdade de condições para que cumpra o seu destino, é que a dignidade da pessoa humana emerge como superlei pré-estatal, que se põe no sistema constitucional como princípio fundamental matricial de todas as demais normas, quer de princípio, quer de preceito, que se conjuguem na formulação constituinte. Tendo-se como opção constitucional de um povo a Democracia, aquele põe-se como princípio jurídico axiomático, quer dizer, sobre cuja existência, rigor e eficácia dominantes não se discute, apenas se dando a concretizar segundopolíticas públicas que podem ser adotadas segundo paradigmas diversos.

Princípio constitucional que é, o respeito à dignidade da pessoa humana obriga irrestrita e incontornavelmente o Estado, seus dirigentes e todos os atores da cena política governamental, pelo que tudo que o contrarie é juridicamente nulo. Tudo quanto indigne o homem por outro é criminoso; tudo quanto o indigne partindo de ação ou omissão estatal é contrário ao próprio Estado Democrático e define a nulidade absoluta do
comportamento ou da política que a tanto conduza com a responsabilidade de quem tenha assim atuado em nome da pessoa política.

Quando o Estado não faz a opção democrática não se obriga ao acatamento do princípio da dignidade da pessoa humana, pela óbvia razão de que o autoritarismo e o totalitarismo revertem os termos iniciais do axioma jurídico havido naquele princípio, tornando o Estado fim e o homem meio, e esse, como exposto por Kant, tem um preço e não uma dignidade. Ora, quando o Estado reduz o homem a meio – tal como se deu no nazismo ou como se dá nas diversas faces do fascismo ainda hoje tão melancolicamente praticado – o homem perde o respeito à sua dignidade, reduz a algo que se faz objeto de substituição, ao contrário da concepção democrática.

Daí por que Constituições como a da União Soviética não cuidavam daquele princípio, o que, entretanto, se contém expressamente no art. 21-1 na Constituição da Rússia, de 1993, segundo o qual: “A dignidade da pessoa é protegida pelo Estado. Nada pode justificar seu abatimento.” Igualmente, a Constituição portuguesa, de 1976, em seu art. 1o, estatui que “Portugal é uma República soberana, baseada na dignidade da pessoa humana e na vontade popular e empenhada na construção de uma sociedade livre, justa e solidária”.

O Brasil, como antes observado, positiva como fundamento expresso do Estado Democrático de Direito, em que se constitui a República Federativa, o da dignidade da pessoa humana. Segundo tal
princípio é que se afirmam, no art. 3o daquela Lei Fundamental, os objetivos do Estado voltados à dignificação do homem, com a definição de imperiosa observância de políticas públicas que erradiquem do Brasil condições indignas que se põem a nu pela desigualdade social, econômica, regional, pela pobreza e miséria que aviltam e envergonham os que nessa situação se encontram.

Sem dignidade não há democracia e sem esta todos os fundamentos constitucionais da organização política da sociedade brasileira são postos por terra e a Constituição, de Carta da Libertação torna-se Lei de Libertos, válida somente para quem esse estágio já atingiu, mas que os tornam cúmplices de todas as formas de indignidades contra todos os outros. Sem o respeito à dignidade da pessoa humana também não há que se cogitar de Poder exercido legitimamente, pois a legitimidade tem sua única expressão no homem respeitado em sua essência e em sua transcendência de ser dado a superar-se para remeter-se a si mesmo como fonte de certeza do outro e para o outro.