NOSSO PRIMEIRO CÓDIGO CIVIL DEMOROU QUASE UM SÉCULO

Após a independência em 1822, o Brasil ainda levou quase um século (94 anos) para ter um Código Civil próprio. Até lá, a Lei de 20 de outubro de 1823 [1] determinava, provisoriamente, a continuidade da aplicação das Ordenações Filipinas de 1603, composta por regulamentos, alvarás, decretos e resoluções promulgadas pelos reis de Portugal e vigentes à época da independência, até que surgissem os novos códigos civil e criminal.

A Constituição Imperial de 1824 estabeleceu no art. 179, XVIII,[2] a organização, o quanto antes, de um Código Civil e Criminal, fundado nas sólidas bases da justiça e da equidade. O Código Criminal, sancionado em 1830, não demorou. O código civil só entraria em vigor 92 anos depois.

Lastreados na concepção do direito como um sistema racional sujeito a um método dogmático e conceitual, os códigos oitocentistas eram ordens fechadas e rígidas, completamente impermeáveis a qualquer forma de integração às inovações econômicas e sociais.

Só em 1855, o governo imperial resolveu iniciar o processo de elaboração do Código Civil brasileiro. No entanto, entendeu que antes da codificação era preciso fazer uma prévia revisão da numerosa e espessa legislação brasileira, nomeando para a tarefa o grande civilista baiano Teixeira de Freitas. O próprio jurisconsulto avaliou a situação em que se encontrava a nossa legislação, qualificando-a como “um imenso caos de leis complicadas e extravagantes”. Em 1858, foi aprovada a Consolidação das Leis Civis, com 1.333 artigos.

Ainda no mesmo ano, o governo Imperial, pelo Decreto nº 2.318, autorizou o Ministério da Justiça a contratar o próprio Teixeira de Freitas para a árdua tarefa de elaborar um Código Civil para os brasileiros. O resultado foi uma obra genial, com quase 5.000 artigos, que Freitas denominou de “Esboço de Código Civil”, que, ainda inacabado, não recebeu uma boa aceitação pelo fato de promover a unificação do Direito Civil ao Comercial.

Na sequência, outras tentativas de elaboração de um projeto de código civil também não chegaram a contento, tais como a do jurista português Visconde de Seabra (1871); do Conselheiro do Império Nabuco de Araújo (1872), que faleceu antes de concluído o projeto; de Felício dos Santos (1881) e de Antônio Coelho Rodrigues (1890).

Conforme nos ensina Maria Helena Diniz [3], em 1895, incumbiu-se uma Comissão Especial para indicar quais dos projetos apresentados e não aprovados deveria servir de parâmetro para o futuro Código Civil. A escolha recaiu sobre o de Coelho Rodrigues.

Em 1899, Campos Sales, por indicação de seu Ministro da Justiça, o paraibano Epitácio Pessoa, nomeou o cearense de Viçosa, Clóvis Beviláqua, professor de Direito Comparado da Faculdade de Direito de Recife, para elaborar o Código Civil, aproveitando, tanto quanto possível, o projeto anterior de Antônio Coelho Rodrigues.

Sintetizador de várias doutrinas, Beviláqua, um dos principais mentores da Escola de Recife, era conhecido por sua formação eclética. Divulgador do pensamento de Haeckel, Noiré e, principalmente de Herbert Spencer e seu positivismo evolucionista, Beviláqua sofreu grande influência do poeta e jusfilósofo Tobias Barreto, defensor e divulgador do germanismo no Brasil.

A nomeação do jurista cearense, defensor da linha teórica reformista da Escola de Direito de Recife, não agradou o senador Rui Barbosa que a considerou “um rasgo do coração, não da cabeça”. Alegava que uma tarefa dessa envergadura não deveria ser elaborada por uma única pessoa e que o encarregado da tarefa não possuía suficiente conhecimento do vernáculo. Epitácio Pessoa, no entanto, conhecia o Beviláqua de perto, uma vez que se formaram no mesmo ano na Faculdade de Direito do Recife.

Beviláqua aceita a encomenda governamental e em outubro de 1899, concluiu o projeto cuja elaboração iniciara em abril do mesmo ano. O governo, então, o submete a uma comissão revisora composta de respeitadíssimos jurisconsultos, no período de março a novembro de 1900, antes de enviá-lo à aprovação da Câmara dos Deputados que já no ano seguinte o aprova.

No senado, uma comissão presidida por Rui Barbosa já estava de prontidão, aguardando-o. Ao final de três dias, Rui apresentou duzentas e dezessete folhas manuscritas, com o seguinte título: “Parecer do senador Rui Barbosa sobre a redação do projeto do Código Civil”.

Um dos momentos maravilhosos destas polêmicas ocorreu entre os baianos Rui Barbosa e o médico, filólogo e professor de português Ernesto Carneiro Ribeiro, que elaborou a revisão da redação do texto do Código Civil. Este último havia sido professor de Rui Barbosa e Castro Alves nos bancos escolares do Liceu Baiano.

Em artigo publicado na internet, Moreira [4] nos informa que: “Para surpresa geral, ao invés de criticar os aspectos jurídicos do Código, Rui usou toda sua inteligência para mostrar que o mesmo estava mal redigido, com erros de linguagem, cacofonias, etc. Para dar uma ideia da profundidade das observações, refiro-me a um único exemplo: ao corrigir a redação do artigo 1503, § 65, Rui trouxe à baila uma discussão que se prolongou por 16 páginas, sobre a oportunidade de trocar o adjetivo possessivo pelo pronome (... passa a seus herdeiros... passa-lhe aos herdeiros). Com esta postura, para muitos considerada elitista, Rui não conseguiu agradar aos políticos (não era um homem realista) e tampouco aos escritores (purista da linguagem sem necessidade)”. Entre réplicas e tréplicas, o projeto emperrou no Senado.

Os senadores consumiram mais de uma década em debates, destacando-se as polêmicas intervenções de Rui Barbosa, defensor de que a pressa na votação “forçosamente haveria de produzir uma obra tosca, indigesta, aleijada”.

Segundo Castro [5]: a discussão somente foi retomada porque a Câmara propôs adotar o projeto até que o Senado tomasse uma posição. Assim sendo, o Senado aprovou o projeto, acatando as emendas de Rui Barbosa.

Em 1912, o projeto volta à Câmara, onde se iniciam os últimos debates, até a aprovação final em 1915.

Em janeiro de 1916 foi sancionado pelo presidente Venceslau Brás aquela que, conforme o próprio Beviláqua, seria a maior obra legislativa do Parlamento da República: o nosso primeiro código civil.

Com maestria, Beviláqua conseguiu conciliar as correntes conservadoras e a renovadoras, procurando não romper com os costumes e princípios jurídicos já arraigados e atendendo às necessidades já reclamadas pela evolução social reinante.

Inspirado no liberalismo econômico, o Código Civil de 1916 dava grande ênfase à proteção patrimonial. A propriedade privada e a liberdade contratual chegaram a merecer uma tutela absoluta, sem qualquer possibilidade de relativização. Vivíamos, em sua plenitude, a era dos códigos e da segurança jurídica, assecuratória do status quo conquistado pela revolução burguesa.

O Código Civil se afirmava como a constituição da sociedade civil brasileira que, seguindo o espírito individualista e patrimonialista da sua época, se caracterizava pelo voluntarismo baseado na autonomia da vontade.

Farias e Rosenvald [6] criticam essa característica das ordenações civilistas que tem a sua gênese na revolução burguesa. Conforme estes autores: “O individualismo desenfreado converte-se em egoísmo e, a reboque de ideais pretensamente libertárias e de uma igualdade formal, as constituições burguesas do século XIX e início do século XX camuflam um sistema jurídico profundamente exclusivista, no qual apenas existem espaços para certos protagonistas, portadores de interesses patrimoniais”.

Portanto, para atender a esse desiderato, o Código Civil de 1916 forjou um sistema fechado, que não admitia o ingresso do metajurídico, através de valores sociológicos e filosóficos capazes de oxigenar o ordenamento jurídico. A única qualidade do sujeito que efetivamente importava era a sua capacidade para a prática do negócio jurídico.

Ainda conforme Farias e Rosenvald [7]: no código de 1916, “as pessoas são tratadas, em termos abstratos, como declarante/declaratário, credor/devedor, sem se retirar a máscara dos concretos papéis que as diferenciam no domínio das operações econômicas e das relações sociais”.

O reflexo desse conservadorismo pode ser atestado pela influência das tradições do direito português no Código de Beviláqua, que facilmente se percebe nas palavras de Braga da Cruz apud Oliveira [8] ao afirmarem que o Código Civil brasileiro se constituiu, em pleno século XX, numa expressão mais fiel da tradição jurídica portuguesa do que o próprio Código Civil português, promulgado quase 50 anos antes”.

Djahy Ferreira Lima é contador e advogado.

REFERÊNCIAS

1. BRASIL. Lei de 20 de outubro de 1823. Câmara dos Deputados. Disponível em: http://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei_sn/anterioresa1824/lei-40951-20-outubro-1823-574564-publicacaooriginal-97677-pe.html. Acesso em 05.Set. 2017.

2. BRASIL. Constituição Federal (1824). Presidência da República. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constitui%C3%A7ao24.htm. Acesso em: 21 ago. 2013.

3. DINIZ, Maria Helena. Código Civil de 1916 In: BITTAR, Eduardo C B (Org.). História do Direito Brasileiro: Leituras da Ordem Jurídica Nacional. 2ª ed. São Paulo: Atlas, 2010. p. 232.

4. MOREIRA, Hélio. Disponível em: http://minhcronicas.blogspot.com.br/2009/10/duelo-da-inteligencia-um-advogado-rui.html. Acesso em 20 ago. 2014.

5. CASTRO, Flávia Lages de. História do Direito Geral e Brasil. 6ª ed. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2008. p.436.

6. FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Direito Civil: Teoria Geral. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009. p.20.

7. FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Direitos dos Contratos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011. p.17.

8. OLIVEIRA, Rita de Cássia. Percorrendo dos caminhos do Direito Civil Brasileiro. Revista Mosaico, Goiânia (GO), v.4, n.1, p. 134-149, jan./jun. 2011.

Disponível em: http://seer.ucg.br/index.php/mosaico/article/viewFile/2038/1290. Acesso em 11 set. 2014.

DJAHY LIMA
Enviado por DJAHY LIMA em 14/09/2017
Reeditado em 07/10/2017
Código do texto: T6114397
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