A Eternidade da Vida Humana em Face da Revolução Biotecnológica.
De fato, o aparato tecnológico, posto à disposição do ser humano, tem possibilitado não só o prolongamento da vida em situações nas quais o conteúdo e aparência de humanidade se apagavam, assim como tem permitido o diagnóstico precoce de gestações nas quais o produto da concepção, por incompletude, tão pouco apresenta tais características.
No que tange às possibilidades de sobrevivência, sobretudo na qualidade de vida, e a reflexão para reduzir o vácuo entre a velocidade das descobertas científicas e os valores que devem orientar seu uso, erige-se o biodireito e a bioética.
Hoje se tem em pauta que todo conhecimento é transitório e superável, bem coerente com a própria forma de evolução da ciência que ocorre através de rupturas e, não da forma lenta e gradual como se imaginava.
As acelerações impressas pelas constantes descobertas de novas tecnologias têm efeito exponencial, exigindo assim, constantes adaptações sociais e novos posicionamentos jurídicos e políticos.
Contudo, há um custo psíquico (individual e grupal) que deve ser pago pelas inovações que abalam os valores sobre a existência humana. Na verdade, por meio de novo paradigma, para juízo e disciplina de fatos.
A idéia de mulheres casadas pudessem ser inseminadas com o sêmen de outro homem que não fosse seu marido, representava o adultério científico, e uma violenta transgressão aos valores que o Código Penal Brasileiro de 1969 punia com pena, o delito de adultério. Hoje tal delito desapareceu em virtude da 11.106/2005.
Hoje há a possibilidade de seleção dos caracteres genéticos do futuro bebê e o descarte dos não desejados e (ou) excedentes e, ainda clínicas que produzem óvulos em laboratórios se apresentam como grande ajuda aos casais inférteis.
Assim, pelo perfil contemporâneo de família os papéis ora se confundem, se conjugam, somam-se necessidades e, excluem-se membros como idosos que são civilizadamente esquecidos em abrigos, hospitais e moradas especiais. (Estatuto do Idoso).
A própria morte despiu-se dos odores clássicos e dos choros e tormentos peculiares para passar a acontecer em ambientes preservados das UTIs. A dor camuflada e reprimida pelos fartos recursos da moderna indústria farmaco-química.
Então a vida, humanamente vegetal nos espreita, e outros casos como o “Terry Schiavo”, (“O Caso Schiavo Um exemplo paradoxal de Distanásia?” - Armando Raggio. - http://www.sbbioetica.org.br/docs/O%20Caso%20Schiavo.doc).
Assim, o Bem é relativizado, pois entre este e a realidade medeiam uma série de contingências.
As antigas categorias antagônicas como público/privado, macho/fêmea não mais exercitam a oposição e delimitação nítida e, sim a complementariedade.
Nesse tempo instável no qual os significados são freqüentemente relidos, livres da existência da moldura rígida e conservadora, adquirindo uma flexibilidade que bem define o paradigma da contemporaneidade, o biodireito desponta na importância absoluta da tutela da dignidade da pessoa humana.
Ao contrário sensu assume o Direito o encargo de ordenar condutas e, disciplinar situações de forma segura e concreta, não podendo se render às incertezas a provisoriedade dos esquemas científicos e, ainda resultantes da fluidez ética moderna ou da necessidade de refletir expectativas de diferentes segmentos sociais.
Pelo menos em tese, tanto a ética quanto a bioética e sua base principalista se harmonizam com os postulados do direito penal mínimo.
O Frankstein de Mary Shelley de forma simbólica, evidencia a associação estabelecida entre o uso do conhecimento para a criação da vida, tarefa outrora exclusiva de Deus, e os monstros gerados, resultado fatídico da pretensão humana de participar da criação.
Ocorre que, in casu, a identidade não é ameaçada ou perdida ou ao revés, se supõe reafirmada pelo poder, posse e consumo.
Se bem que a história tem testemunhado que as práticas mais absurdas do ser humano resultaram menos da técnica e, mais dos sistemas políticos e exatamente econômicos, permanecendo a angustiante dúvida sobre qual o roteiro ideal para o fato final que é a morte.
Nesse sentido, a bioética aparece como uma preocupação no estabelecimento de ícones que sinalizem a caminhada da ciência ou da comprometida a essência do humano.
A bioética inicialmente definida pela Enciclopédia of Bioethics como “o estudo sistemático da conduta humana no campo das ciências da vida e da saúde, enquanto examinada à luz dos valores e princípios morais”. Buscando mesmo a construção de “um panorama multi e interdisciplinar de paradigmas”.
Inerentemente a qualquer discussão sobre as relações entre moral e direito, este tem sido convocado para prestar seu apoio na tutela de valores comuns sociais.
Eugenio Lecaldano preleciona que certos problemas surgidos com o desenvolvimento científico e tecnológico devem ser tratados exclusivamente dentro de regras morais, enquanto que outros, devem ser ortodoxamente regidos juridicamente.
O conceito de morte, reprodução assistida, o destino dos embriões fertilizados in vitro e desprezados, tem sido objeto de preocupação sobretudo dos bioeticistas.
A vida eterna prometida pelas religiões tende a ser substituída pela infinitude de existência material e já anunciada como meta da ciência.
Com a descoberta do seqüenciamento do genoma humano, afirmou Hans Georg Gadamer que o mundo dominado pela tecnologia havia se transformado em um antimundo artificial no qual se desenvolvia um ser humano artificialmente perfeito que, poderá ser privado de seu destino e de sua individualidade. A própria estética humana vem sofrendo com o avanço tecnológico, haja vista as esculturas lipoaspiradoras, as aplicações de silicones e, outros incrementos dispostos a atingir o belo fundamental.
O que sinaliza a necessidade de se construir normas que disciplinem o uso da ciência.
O Relatório Belmont é produto do trabalho de quatro anos da Comissão Nacional para a proteção dos seres humanos em pesquisa Biomédica e Comportamental constituída em 1974 pelo governo norte-americano, onde se ventilaram reflexões sobre algumas violações praticadas como: o das injeções de células cancerosas vivas em idosos doentes no Hospital Israelita de Nova York; o dos negros portadores de sífilis que ficaram sem tratamento para que se fosse observado o curso da doença (a pesquisa durou algumas décadas); e a inoculação de vírus de hepatite em crianças retardadas mentais, também em hospital público de Nova York.
Outro caso noticiado pelo jornal The New York Times em 2000, uma investigação médica em Uganda composta por cientistas norte-americanos co objetivo de observar doenças sexualmente transmissíveis assim como a sífilis e blenorragia, aumentavam os riscos de contaminação do vírus HIV.
Para tal fim, sob observação, restaram 415 ugandenses heterossexuais com o fornecimento de instruções de prevenção de contágio, inclusive com recomendação de uso de preservativos, distribuídos gratuitamente.
Porém os médicos jamais comunicaram as doenças aos cônjuges sadios ou medicaram os doentes, pois desejavam acompanhar o natural curso patológico a fim de saberem qual o momento e a forma mais adequada de intervenção.
Apesar da referida experiência ter sido proibida nos EUA, fora autorizada pelas autoridades ugandenses, segundo os padrões éticos, levando-se em conta que o grupo observado não teria usualmente acesso às drogas anti-HIV.
Ao final da experiência, 90% dos cônjuges foram infectados enquanto que, os médicos assistiram, sem intervir, à progressão da doença o que possibilitaria identificar o momento adequado de intervenção química.
O argumento perturbador utilizado por Thomas Quinn para justificar a ética procedimental diz respeito ao fato que o referido grupo observado não receberia, normalmente, até porque nas regiões e condições que viviam, sequer a atenção que lhe fora dispensada. Observa ainda que tal região da África, sub-Saara ocorre uma endemia devastadora dessa doença.
Assim, o grupo foi herói com disposição de beneficiar a humanidade e, não vítima indefesa de uma fraude e da crueldade tecnológica.
O editorial do New England Journal of Medicini admite claramente que os padrões éticos que disciplinam as pesquisas em pessoas humanas em países subdesenvolvidos são diferentes daqueles dos países desenvolvidos.
Autores mostram que importantes descobertas científicas frugalmente resultam de transgressões dos padrões éticos como aconteceu com a experiência de Tuskegee, na qual foi possível identificar múltiplas formas de sífilis e com aquelas realizadas pelos nazistas sobre dano e morte do tecido, usando prisioneiros dos campos de concentração). Vide (“Relatório Belmont ao Código de Regulamentos Federais. www.fhi.org/sp/RH/Training/trainmat/ethicscurr/RETCCRPo/ss/Contents/SectionVI/b6sl70.htm).
O principal questionamento é: Como os códigos éticos podem obrigar os cientistas a colocaremos os interesses das cobaias humanas acima daqueles da sociedade e da ciência? Haverá interesse legítimo da sociedade que esteja acima da dignidade humana? Em prol do progresso científico posso atentar contra a dignidade da pessoa humana?
A ética aplicada, portanto, procura promover uma articulação com ação concreta e, no caso específico, aquela que deve existir entre ciência e valor.
O Relatório de Belmont estabeleceu três princípios: o do respeito pelas pessoas (autonomia), o da beneficência e o da justiça.
Como beneficência significa como a obrigação de maximizar o número de possíveis benefícios, minimizando os prejuízos.
O respeito pelas pessoas deve tomar por base as pessoas que autonomamente podem discernir e na proteção daquelas que são incapazes de decidir e discernir.
Quanto ao princípio da justiça, consiste na imparcialidade, na distribuição dos riscos e benefícios.
A Declaração de Helsink dotada de forte espírito humanista com o qual se procurou regulamentar a pesquisa clínica envolvendo seres humanos e, com isso colocar um limite aos horrores do nazismo.
Pretende-se alterar a expressão “tratamentos disponíveis”, que quer dizer, tratamentos adequados à realidade de cada país, mas que na prática, permitirá que, em razão de diferenças, morram africanos, asiáticos e pobres, viabilizando pesquisas das grandes empresas de medicamentos.
Até onde flexibilizar os valores morais de forma a atingir a felicidade e o sonho de bem-estar eterno, sem que isso signifique uma arma apontada contra o próprio sujeito que anuiu? Juridicamente, questiono até aonde o sujeito de direito pode consentir em ser objeto de direito , e alvo de experiências científicas?
Infelizmente o direito não tem ainda resposta para algumas dessas perguntas, até por não ter como oferecer comando seguro para todas as possibilidades.
A flexibilização da regra diante dos casos para se galgar justiça não significa porém, um casuísmo e decisionismo aleatório.
Ao contrário, requer densificação da moral na norma jurídica de forma que esta tenha legitimidade e, em sua aplicação, deixe o menor saldo possível de injustiça, segundo os que propugnam nesse sentido.
Phillip Reilly bioeticista americano alerta para uma nova eugenia. E, nesse futuro próximo, poderá o direito penal, por exemplo, condenar a mãe que destruir o produto da concepção com um prognóstico de esquizofrenia.
Assim, Jeffrey Kahn, diretor do University of Minnesota’s centre for bioethics diz que em breve, os pais escolherão os filhos como quem compra um carro, selecionando os acessórios que desejar.
“Poder-se-ia dizer que isto está a tornar-se como comprar um carro novo, em que se escolhem os acessórios”
(...)
“Suspeito mesmo que, se já
houvesse os testes apropriados, teríamos pais a pedir embriões com uma predisposição para a homossexualidade ou para não ultrapassarem, em adultos, o metro e oitenta de altura”
[Jeffrey Kahn, director do Centro de Bioética da Universidade de Minnesota. ]
Assim, um humanismo revigorado deve propor a nova sacralidade da vida com sua diversidade e pluralidade.
Tal humanismo recusa-se a admitir margens de tolerância que implicam num aborto com fins de eugenismo.
O destino de embriões humanos criogenizados por vezes é resolvido publicamente até com a chancela do Estado (como ocorreu na Austrália) com relação aos embriões conservados congelados procedentes de um casamento milionário, mas cujos pais morreram, antes da implantação.
Decidiu um comitê não jurisdicional que não seriam implantados a fim de que não fossem prejudicados os direitos sucessórios e, desta forma, foram os óvulos fecundados destruídos.
No Brasil, em São Paulo, a Clínica de Pesquisa em Reprodução Humana Roger Abdelmassih anuncia em publicação regular, que os embriões fecundados em laboratório, antes da implantação no útero materno são avaliados por técnicas que detectam eventuais alterações cromossômicas e genéticas, sendo transferidos à mãe apenas os normais.
Além dos diversos benefícios da ciência que pode prestar à humanidade, he de se alertar para situações emergentes novas desconhecidas, para as quais insistimos em não nos preparar.
Na Suécia há uma lei de março de 1985 que permite aos nascidos de inseminação artificial heteróloga que, alcançado a maturidade, possam investigar a sua paternidade genética.
Essa norma, como lembra Martín Mateo pauta-se nos códigos civis tradicionais e se opõe a outros critérios generalizados sobre o anonimato rigoroso que deve presidir tais procedimentos.
Não há uma legislação que assimile o ethos e busque a coerência jurídica, seja estimulando um novo conceito para vida, seja abrindo mão dos limites rígidos e definidos pela lei penal ou à luz dos princípios da isonomia.
No futuro, segundo Antonio Beristain, compreenderemos cada vez mais que o conceito de morrer é equívoco e plurivalente.
Transplantes de órgãos, tecidos, manutenção de vida com agrupamentos de vida com equipamentos sofisticados, morte cerebral são realidades que despertam múltiplas perguntas: a quem pertence a vida? O ser humano tem o poder de decidir sobre sua própria morte? Será a liberdade um princípio absoluto? Existe algum princípio absoluto?
É fato que o conceito de morte é mesmo insatisfatório.
Outros autores, além dos sinais clássicos da morte apontam e distinguem a morte clínica (paralisação da função cardíaca e respiratória), da morte biológica (destruição celular), da morte cerebral (paralisação das funções cerebrais) hoje caracterizada encefálica já que atinge o córtex e estruturas mais profundas.
Existe, segundo Mota Maia, vida técnica quando há ausência irreversível das funções cerebrais, embora não haja consenso sobre a aferição definitiva da atividade elétrica do cérebro.
Há estados de parada cardíaca respiratória, os quais não correspondem a um conceito de morte.
Apesar de todos os recursos técnicos existe uma dificuldade de se precisar o exato momento da morte. Cícero Coimbra, médico neurologista pós-graduado pela Universidade de Lung faz sérios questionamentos sobre a morte encefálica. Assim como também há dificuldade de se precisar a duração do puerpério.
De outro lado, formou-se um novo consenso sobre as propriedades que devem estar presentes para que se possa utilizar o termo morte: paralisia irreversível do encéfalo e não apenas cortical já que, aquela compromete definitivamente a vida de relação e a coordenação da vida vegetativa e não apenas a vida de relação.
A vida técnica é mantida friamente por sofisticados equipamentos onde há um estado absoluto e definitivo de inconsciência, ao lado de outros sinais, distingue-se portanto de outra vida, onde é possível estabelecer uma relação com o meio de controlar as próprias funções.
Esta vida técnica pode morrer já que sua sustentação apenas se dá como meio de salvar outra vida.
Havendo morte clínica, sem que haja morte cerebral para o direito penal, é possível falar-se conforme o caso em homicídio doloso ou culposo.
A oportunidade de ter filhos física e mentalmente saudáveis pode ser uma conquista, assim como os testes podem representar a libertação de culpa da maioria das mães que geram crianças doentes.
Mas pode significar também que caminhemos para um mundo no qual a diversidade seja um estorno e homens como Abrahan Lincoln ou Machado de Assis não teriam existido, o primeiro por ser portador da Síndrome de Marfam e, o segundo por ser Epilético.
Aliás, qual teste pode garantir a integridade de caráter? Não era Hitler saudável, abstêmio e vegetariano?
O limite que pode ser oposto a pesquisa científica descomprometida e ao uso de suas descobertas será aquele que construímos com uma ética capaz de contemplar as diferenças de cada grupo, sem perder de vista a dignidade humana.
A vida pode morrer se gestada fora do útero para implante posterior podem morrer, as com diagnóstico genético desfavorável podem ser abortadas.
Também se pode morrer de fome a vítima da violência institucional e social, pode adoecer na solidão e morrer esquecida no desleixo dos hospitais a relacional ou socialmente desprezada.
Arthur Caplan mostra que é preciso, nesse momento, que conheçamos mais sobre o que seja a vida, por meio mesmo da criação de novas formas de vida, a partir do genoma mínimo, matéria que tem sido objeto de discussão no Instituto para Pesquisa Genômica.
Tal organismo que seria semelhante a uma bactéria, poderia ser criado pela remoção dos genes de um outro já existente ou com auxílio de uma máquina sintetizadora de DNA, onde seriam colocados juntos todos os genes necessários à vida, mais uma membrana celular necessária.
Numa etapa posterior, seria proporcionar um ambiente adequado para a sobrevivência do organismo.
No discurso bioeticista, há uma forte convicção de que há mais significado para a vida que, sob certo sentido, significa apenas alguma coisa capaz de metabolizar e se reproduzir.
Alertamos que a vida é muito mais do que isso, se existe em outros planetas, se é recriável por máquinas artificiais; se quisermos tornar realidade o ideal iluminista de liberdade igualdade e fraternidade e da solidariedade libertadora.
Somos convocados a refletir sobre o significado da vida pelas intermediáveis interlocuções dos médicos cientistas, bioeticistas e cidadãos para conservarmos de forma menos artificial e anacrônica de preservação e tutela da vida e que atenda sem medo as revoluções que hão de vir.
Há de se conciliar a ciência progressista ao mínimo respeito da dignidade da pessoa humana, pois sem o ser humano, não haveria ciência e nem a necessidade de se progredir, e ultrapassar as velhas barreiras da morte.