“Loucos pelo poder e protegidos por uma memória deficientemente curta, os cínicos brilham no baile de máscaras, nos corredores do parlamento ou na camarinha dos partidos políticos.” (...)
 
 
 
 
Fiquem aliviados pois o século XXI brevemente irá desmoronar, tendo como principal trilha sonora um majestoso estrondo seguido de alaridos agudos vindos da carnificina deliberada do holocausto genético patrocinado pelo feroz capitalismo que produz sistematicamente a pauperização generalizada.

Exala esse pré-apocalipse os cheiros de pólvora, morte e indiferença dos senhores da guerra que lucram com o sangue e a subserviência.
 
O cinismo contemporâneo[1] é amoral e herdeiro de Diógenes que com outros gregos do século IV a.C., nada põem acima dos valores e aspiram uma moral superior dotada de virtudes sublimes e de estilo tenso e enérgico.
 
Alguns cínicos[2] arrastavam peixes na ponta de um barbante pelas ruas de Atenas, masturbavam-se em público, esbofeteavam os poderosos e interpelavam os mestres que em andrajos saíam pelos fundos e tomavam o cão por modelo, pois morde apenas aqueles que merecem.
 
Mas qual seria o objetivo de tudo aquilo? Perguntarão os aflitos. Desmistificar, pulverizar os ideais gregários e os pensamentos coletivos que geraram as civilizações nutridas pelas essências dos indivíduos, ou criticar o falso pudor, a obsessão da reputação, a submissão à autoridade, as ações e pensamentos interesseiros e sujeitos à vontade da maioria que quer impor suas palavras de ordem?
 
O cinismo de Diógenes travestido de velho, sujo e feio sendo repelente e vil, o autêntico cinismo filosófico valeu-se como remédio ao cinismo vulgar, restando o primeiro autorizado a cogitar de moral.
 
Enquanto que os cínicos vulgares estão em toda a parte, habitam o poder, controlam os meios de comunicação, estão nos quartéis, nas universidades, nos bancos, nos conselhos e confederações e todas as outras reuniões capazes de quintessenciar o poder antes de exercê-lo contra o maior número de empecilho.
 
Os cínicos vulgares se superam em renegar seus engajamentos pretéritos. Assim é perfeitamente possível notar que no passado disseram algo que, bem mais tarde, vieram a dizer justamente o contrário.
 
Não que se possa exigir coerência dos cínicos e nem que esteja promovendo uma caça às bruxas. Mas hoje enquanto celebram as virtudes do liberalismo ou promovem a ruptura com o capitalismo, e bem antes de se enforcar o último burguês, pretenderam mudar o sistema, entrando intimamente  dentro do sistema. Numa espécie de aborto espontâneo da bizarrice.
 
Loucos pelo poder e protegidos por uma memória deficientemente curta, os cínicos brilham no baile de máscaras, nos corredores do parlamento ou na camarinha dos partidos políticos.
 
O cínico vulgar pratica o travestimento habitualmente, dissimula-se com facilidade e finge ser outro que não é.
 
Ora se diz ser niilista mas é bom administrador comercial, ora exige a paixão pela desilusão e possui espantos existenciais diante do nada; noutro momento, tal qual o filósofo para senhoras, o falso cínico ensina a arte da desesperança, a necessidade de desfazer-se do ego, do eu e da paixão. Mas usa camisa de grife e tênis importado nas manifestações de rua. E, encobre o rosto temendo a identidade ou a repressão.
 
Propõe a diluição da subjetividade mas tudo devidamente editado, difundido, assinado e rubricado num registro que exacerba o pobre e tem orgulho de ser detestável.
 
O mais odioso dos falsos cínicos é o velhaco de plantão que espreita na imprensa e se disfarça de libertário, é o verdadeiro reciclador de ódios com os quais persegue implacavelmente tudo o que o supera em qualidade e, só resolve problemas do ego medíocre que se enfeita como pavão a exibir uma revolta sem propostas, sem líderes como numa catarse catatônica.
 
Todos os cínicos, tal qual o diabo, ilustram a mais suprema das imoralidades[3] sendo permitido que reivindiquem a casa do cachorro ao mesmo tempo em que perambulam em farrapos pelos palácios presidenciais rogando privilégios. O desejo de um, exclui, no entanto, a prática do outro. Talvez até a prática de um venha a proibir a reivindicação do outro.
 
Se os imorais triunfam do lado do cinismo vulgar, onde afinal estarão os cínicos originais e seguidores de Diógenes[4]? Onde estão os moralistas deste século iluminados pela luz a laser que substituiu a lanterna?
 
Os nietzschianos morreram ensandecidos de virtude e gritavam alto e forte acreditando que tudo era permitido desde a morte de Deus. Mas o que adianta tamanha permissão, se nos comportamos assustados com as nossas perspectivas. Numa crise em que o sujeito se transforma em objeto, e pior, num objeto descartável.
 
Mas o que afinal reivindica o povo? Por que não o fizera pelo voto? Por que é  tão vítima como algoz?
 
Os descendentes de Nietzsche agiram como hipermoralistas sendo praticantes de uma ética exigente e crucial a requerer uma política radical. Entre estes, há Michel Foucault[5] e Gilles Deleuze[6] que literalmente ignoraram as falsas aparências e ironizavam explicitamente as honrarias do poder.
 
Mas, existem ainda vivos os descendentes de Diógenes apesar de carentes da filosofia propriamente dita mas inventores de comportamentos tais como: um cantor que queima uma cédula de dinheiro ou a própria guitarra em público, um apresentador e animador de programas televisivos de auditório que se candidata a presidência da república ou um cômico que escracha todas as imperfeições de seu tempo agindo com uma lupa nas abertas feridas sociais.
 
Os autênticos moralistas do século XXI denunciam, criticam, recusam e movem manifestações populares efetuando arrastões, quebrando palácios oficiais, monumentos históricos, acendem suas fogueiras nas encruzilhadas dos paradoxos e dissertam sobre a moral da intenção embora também façam parte das negociatas dos ministérios e agremiações representativas, se regozijam no projeto suicida de uma democracia titubeante que ainda segura uma lanterna no escuro tateando a busca de uma faísca original.
 
Mas que tipo de homem lhe parece Diógenes?  Um desvairado que aponta que os oradores são servos do povo e enxerga nas coroas de louros a razão da febre do poder. Ou o enxergamos a passear em pleno dia empunhando uma lanterna e a repetir enfaticamente: - Procuro um homem. E não dejetos! ( TONAC, Jean-Philippe apud ONFRAY,1999,p.37).
 
Certa vez conta-se que Diógenes na presença de Alexandre, o Grande que se apresentou: - Sou o grande rei Alexandre da Macedônia. E, respondeu: - Sou Diógenes, o Cão[7]. Então o rei questionou-lhe. – O que fizeste para te chamarem de Cão? O que este respondeu: - Balanço a cauda diante daqueles que algo me dão, desato a latir atrás daqueles que nada me dão e mordo os descrentes.

Diógenes tal qual seus semelhantes contemporâneos (e não menos cínicos) empunham a impertinência, a insolência, a provocação e o impudor tão elevados como se fosse uma arte marcial.
 
Nada que lhes caia nas graças e, não esteja apto a receber uma mordida de cão serve, posto que a vida nada mais seja que um espetáculo indecente.
 
A ação violenta e espontânea marcando a oposição ao poder ou a uma decisão ou situação estabelecida por reprovação ou indignação corresponde apenas à recusa apaixonada da condição humana.
 
Gisele Leite
 
Referências
ABREU, Procópio (tradução); MARCONDES, D.(Revisão). Café Philo: as grandes indagações da filosofia (editado por) Le Nouvel Observateur. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.,1999.
JAPIASSÚ, Hilton; MARCONDES, Danilo. Dicionário básico de filosofia. 3.ed., Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1996.
ONFRAY, Michel[8]. Cynismes. Paris: Grasset, 1990.
______________. La Sculture de soi. Paris: Grasset, 1993.
FONSECA, Rubem. Cinismo. Crônica de Rubem Fonseca.  Disponível em: http://www.literal.com.br/rubem-fonseca/cinismo-cronica-de-rubem-fonseca/  .  Acesso em 13/11/2013.
 
[1] O cinismo como ação filosófica demonstra a impossibilidade da efetivação da moral iluminista. Invoca normas universais enquanto promove sua transgressão particular. O cinismo mantém o enunciado independente da enunciação, o que evita recalque, frustração ou punição do superego.
[2] Esclarece Rubem Fonseca que a palavra cínico vem do grego kynós que significa cão, animal cuja a vida seria igual à pregada pelos cínicos, pois morde aqueles que merecem, é capaz de distinguir os amigos dos inimigos, e principalmente porque o cínico é capaz de viver como o cão, indiferente às convenções sociais.
Hoje, infelizmente pelos desvios diacrônicos, este termo se refere àquelas pessoas desavergonhadas, impudentes que desdenham dos escrúpulos alheios.
Entre os cínicos modernos temos o Peter Solterdijk que é o cultuado autor de “Crítica da razão cínica” e propôs um Conselho de cientista e filósofos para criar um discutível "Parque Genético Humano" para salvar a espécie da imbecilidade e brutalização induzida pelas mídias. Habermas atacou Sloterdijk porém mais confundiu do que esclareceu.
[3] Uma pequena amostra da ousadia de Diógenes e do seu pensar a respeito da liberdade foi dada quando este estava lavando verduras e Platão lhe disse: "se cortejasses Dionísio, não estarias lavando verduras". Então, Diógenes lhe respondeu: "E se lavasses verduras não terias que cortejar Dionísio".
O cinismo propunha a ética do mínimo baseada na ascese rigorosa que não pode ser dissociada de certo hedonismo.
A satisfação através do essencial para a vida não decorre de uma renúncia ao corpo com vistas aos valores espirituais, mas constitui a base de um prazer verdadeiro.
O desapego pregado pelos cínicos que passaram ser vistos como desalmados é explicado pois os cínicos procuravam seguir a natureza. Portanto, não valorizavam a educação e a cultura, por exemplo, vistos como formas de degenerar e fugir do estado de natureza.
Sabedoria na acepção cínica era viver bem conforme a virtude (que significava seguiros impulsos da natureza). Ser totalmente franco, sincero e transparente. Ao contrário da convenção, da conveniência ou do artifício.
[4] O cinismo como corrente filosófica fora fundado por um discípulo de Sócrates, chamado Antístenes, porém seu nome mais representativo fora Diógenes de Sínope que pregava basicamente o desapego aos bens materiais e externos.
Mas, posteriormente ser cínico passou ter significado prejorativo de pessoas sem pudor e indiferentes ao sofrimento alheio mas que em nada se assemelha a origem
filosófica e ideológica do cinismo. Nada do que Diógenes escreveu, se é que de fato escrevera, chegou até nós. Tudo o que se sabemos ao seu respeito fora contado por outros, em especial, por Diógenes Laétios, na obra "Vida e Doutrinas dos Filósofos Ilustres". Talvez por essa razão se dê maior destaque as passagens anedóticas de sua vida.
 
[5] Michel Foucault (1926-1984) foi filósofo e professor de História dos Sistemas de Pensamento no Collège de France des 1970 até 1984. Todo seu trabalho foi desenvolvido em uma arqueologia do saber filosófico, da experiência literária e da análise do discurso. Seu trabalho também se concentrou sobre a relação entre poder e governamentalidade e das práticas de subjetivação.
Foi feroz crítico das instituições sociais, especialmente a psiquiatria, medicina, prisões e por suas ideias e da evolução da história da sexualidade. Centrou-se na vida e nos diferentes processos de subjetivação. Destacou que as relações de poder permeiam toda a sociedade. E as interações sociais são versões derivadas da guerra civil.  Afirmou que a política é a continuação da guerra por outros meios.
[6] Gilles Deleuze (1925-1995) filósofo francês e foi professor de História da Filosofia na Universidade de Lyon. Promoveu número significativo de cursos, e graças a sua esposa, Fanny Deleuze, uma importante parte de suas aulas foi transcrita e disponibilizada no site de Richard Pinhas (webdeleuze).

Promoveu uma filosofia da imanência, dos diagramas, dos acontecimentos. As principais influências filosóficas terão sido Nietzsche, Henri Bergson e Spinoza.
Uma das grandes contribuições de Deleuze foi ter se utilizado do cinema para expor sua forma de pensamento, através dos conceitos de imagem-movimento e imagem-tempo. Deleuze foi um dos filósofos que teorizou as instâncias do atual e do virtual (já elaboradas por outros pensadores), construindo um olhar sobre o mundo a partir das possibilidades: "Um pouco de possível, senão sufoco" (Foucault).
[7] Diógenes acreditavam que os humanos viviam artificialmente e de forma hipócrita e vil. O que o fez estudar o cão que é capaz de realizar suas funções corporais naturais em público, sem constrangimento, come qualquer coisa e nem faz estardalhaço sobre o lugar onde dormir. Cachorros vivem o presente sem ansiedade e não possuem pretensões da filosofia abstrata.
E aprendem instintivamente quem é amigo e quem é o inimigo. Diferentemente dos humanos que enganam e são enganados uns pelos outros.
Os cães reagem com honestidade frente à verdade. Indagado sobre qual raça de cão seria, respondeu: - Quando tenho fome, um maltês, quando estou saciado, um molosso, aquela espécie que as pessoas mais elogiam, mas com a qual todavia não têm coragem de sair para caçar por causa da fadiga. Assim não podeis conviver comigo, porque tendes medo de sofrer." Provavelmente o Diógenes fora o mais folclórico dos filósofos.
[8] Michel Onfray é filósofo francês, fundador da Universidade Popular de Caen. Possui um interessante site (http://mo.michelonfray.fr/) . 
GiseleLeite
Enviado por GiseleLeite em 20/07/2016
Reeditado em 20/07/2016
Código do texto: T5703494
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