Justiça gratuita e suas mudanças
Dr João Evangelista
Para tratar de uma inovação no NCPC – mas não no sistema processual –, vou utilizar termo típico do “disco de vinil” (que, apesar de ser uma tecnologia antiga, passa por uma espécie de ressurreição – algo que se vê no novo Código): lado A e lado B. Para os leitores que conhecem apenas CD ou MP3, vale esclarecer que, no LP (long play) de vinil, normalmente as principais músicas estava do lado A, ao passo que as menos conhecidas (ou mais obscuras) estavam do lado B. Por isso, muitas vezes apenas se ouviu (ou se ouviu muito mais) apenas o lado A.
Falemos desses dois lados da regulamentação da justiça gratuita no NCPC.
Hoje, falarei do “lado A”, ou seja, os pontos que, para mim, parecem boas escolhas do legislador em relação à justiça gratuita. Na próxima coluna (após as colunas dos demais autores), tratarei do “lado B” – as escolhas que não foram as melhores (na minha visão, por certo). Assim, retomo um tema a respeito do qual costumo me dedicar [1].
Portanto, dentre os pontos fortes do NCPC a respeito da justiça gratuita, destaco o seguinte:
1) Tratamento da justiça gratuita no próprio Código.
A gratuidade de justiça não é tratada no CPC/73, mas na L. 1.060/50.
Conveniente que um tema dessa relevância não fique apartado do corpo do CPC, especialmente para fins de melhor sistematização da matéria (harmonização com o todo do sistema processual).
Porém, vale destacar que a L. 1.060/1950 não foi totalmente revogada. Conforme art. 1.072, III do NCPC, ficam revogados “os arts. 2º, 3º, 4º,caput e §§ 1º a 3º, 6º, 7º, 11, 12 e 17 da Lei nº 1.060, de 5 de fevereiro de 1950”).
Além disso, se tudo regulado no próprio Código, é certo que facilita a assimilação das regras por todos os atores do processo.
Nesse sentido, por exemplo, a condenação do beneficiário da gratuidade, quando vencido na demanda, no ônus da sucumbência. Apesar de expressamente prevista no art. 12 da L. 1.060/1950, muitos juízes não aplicavam a regra. Quiçá por desconhecimento, já que não constava do CPC. Com a presença da regra no art. 98, § 4º, espera-se que deixem de existir tais decisões.
2) Terminologia utilizada:
No cotidiano forense é comum a utilização inadequada dos termos relacionados à gratuidade. A L. 1.060/50, em alguns momentos, trata da gratuidade e da assistência judiciária como sinônimos.
O NCPC, ao tratar do tema adequadamente, apenas pelo nome “gratuidade de justiça”, afasta a atecnia legislativa, ou seja, falta de técnica.
Augusto Tavares Rosa Marcacini [2] foi dos primeiros a bem diferenciar os conceitos de assistência jurídica [3] (orientação ao hipossuficiente, em juízo ou fora dele – CF, art. 5º, LXXIV, assistência judiciária (serviço de postulação em juízo, principalmente, mas não só, exercido pela Defensoria Pública) e justiça gratuita (isenção do recolhimento de custas e despesas processuais).
O NCPC regula apenas a justiça gratuita. Mas, com o nome tecnicamente correto, pode permitir que, aos poucos, deixe se ser utilizado o termo assistência judiciária de forma inadequada.
3) Forma de requerer a gratuidade:
Explicitando e facilitando como pode ser feito o requerimento de gratuidade, o art. 99 do NCPC permite requerer a justiça gratuita: (i) na petição inicial, (ii) na contestação; (iii) na petição de ingresso de terceiro, (iv) no recurso e (v) por simples petição.
Está justificada a hipótese (v) porque a parte pode, inicialmente, não necessitar da gratuidade, mas, durante o processo, em primeiro grau e antes do recurso, ter necessidade do benefício.
Portanto, ampla liberdade no momento de se requerer (como já se reconhece hoje), mas isso previsto em lei para afastar qualquer discussão a respeito disso.
4) Forma de impugnar a gratuidade:
Temos, aqui, sensível alteração. No sistema ainda vigente, a impugnação à justiça gratuita é autuada em apartado, e há uma peça específica para isso.
Agora, essa impugnação será nos próprios autos, inexistindo peça própria para isso. Ou seja, conforme a petição que a parte tiver de apresentar, em seu bojo, será aberto um tópico para impugnar a gratuidade deferida pelo juiz. Boa simplificação e afasta a necessidade de mais um incidente processual.
E isso ocorrerá: (i) na contestação, se a gratuidade for deferida ao autor; (ii) na réplica, se a justiça gratuita for deferida ao réu; (iii) nas contrarrazões, se a gratuidade da justiça for deferida no recurso; ou (iv) por simples petição, se a gratuidade for deferida em outro momento processual.
5) Especificação de quais despesas estão abrangidas pela gratuidade:
Um dos assuntos que gera algumas discussões atualmente, considerando a omissão da L. 1.060/50, é a abrangência da justiça gratuita.
Para evitar esse debate, o NCPC traz um longo rol de despesas inseridas na gratuidade de justiça. O § 1º do art. 98 tem nove incisos, que enfrentam as principais despesas e custas envolvidas em processo judicial. Tanto de situações que sempre estiveram incluídas no conceito de justiça gratuita (como custas), passando por temas polêmicos (perícia e despesas com cartórios extrajudiciais) até novidades (“outros exames”, além do DNA).
Em síntese, estão abrangidas pela gratuidade, não sendo o caso de pagamento por quem é beneficiário da justiça gratuita:
I –custas judiciais;
II – despesas com correio;
III – despesas com publicação na imprensa oficial (dispensada a publicação em outros meios de comunicação);
IV – indenização devida à testemunha (dia de trabalho da testemunha, que se ausenta para ir à audiência);
V – custo do exame de DNA (já previsto na lei) e de “outros exames considerados essenciais” (novidade – que poderá ser realizado por hospital público, nos termos do art. 95, § 3º);
VI – honorários de advogado, perito, intérprete ou tradutor;
VII – custo com a elaboração de memória de cálculo, quando necessário para a fase satisfativa;
VIII – depósitos devidos “para interposição de recurso, propositura de ação e para a prática de outros atos processuais inerentes ao exercício da ampla defesa e do contraditório” (dispositivo que acaba sendo residual, para afastar a necessidade de pagamento de e não incluída nos incisos anteriores).
IX –emolumentos devidos a cartórios extrajudiciais (notários ou registradores) para atos cartoriais necessários à efetivação de decisão judicial [4].
Isso evita debates, recursos, discussões laterais, pois o legislador já define o que está coberto pela gratuidade.
6) Permissão para o juiz indeferir a gratuidade requerida pela parte, mas não de plano.
Apesar da previsão legal de presunção relativa de necessidade (art. 99, § 2º), o NCPC expressamente permite ao juiz indeferir a gratuidade, “se houver nos autos elementos que evidenciem a falta dos pressupostos legais para a concessão da gratuidade” (art. 99, § 1º).
Mas, para evitar prejudicar a parte, o juiz somente poderá indeferir o pedido após a comprovação documental de fazer jus à gratuidade.
Parece-me uma solução bem lógica, que pode evitar abusos.
Se a situação de penúria financeira é patente, a gratuidade será deferida. Se o magistrado tem dúvidas, deve determinar a produção de provas – mas não de plano indeferir (exemplo concreto da cooperação do art. 6º). Simples e prático.
Isso pode minorar situações de flagrante abuso no uso da gratuidade, em que a parte utiliza a justiça gratuita como uma forma de “litigar sem risco”, sem nada ter de pagar.
Essa possibilidade de indeferimento pelo juiz é criticada por alguns [5], mas também já encontra apoio na doutrina [6].
7) Expressa previsão de possibilidade de justiça gratuita para a parte patrocinada por advogado particular.
Reforçando a distinção entre assistência judiciária e justiça gratuita, o NCPC permite expressamente a concessão de justiça gratuita para a parte tiver como patrono advogado particular (art. 99, § 3º).
Ainda que já seja a posição majoritária atualmente, vez ou outra há decisão judicial em sentido inverso. Assim, com a previsão legal, espera-se que o debate se finde.
8) Definição quanto ao recurso cabível a respeito da decisão que aprecia a gratuidade.
À luz da L. 1.060/50 e do CPC/73, o assunto é polêmico e incongruente. Apesar de a decisão que aprecia a impugnação ser interlocutória, a firme jurisprudência do STJ [7] reconhece ser cabível a apelação, considerando o art. 17 da L. 1.060/50 [8].
O art. 101 do NCPC resolve o problema, existindo 3 possíveis situações:
(i) se o juiz indeferir a gratuidade, cabe agravo de instrumento;
(ii) se a impugnação à justiça gratuita for acolhida, cabe agravo de instrumento;
(iii) se o juiz decidir a gratuidade na sentença, cabe apelação.
Ou seja: se interlocutória, cabe agravo de instrumento; se sentença, cabe apelação. Exatamente como deveria ser no CPC/73 [9].
9) Previsão quanto ao pagamento de multas pelo beneficiário da justiça gratuita.
Tal qual já exposto no item 6, muitas vezes, infelizmente, a parte (e seu patrono) utilizam a justiça gratuita para uma “aventura” judicial, em que se pode pleitear sem pagar nada.
Nesse contexto, em boa hora prevê o NCPC que, se houver condenação ao beneficiário da justiça gratuita ao pagamento de multas (como a por litigância de má-fé), a multa é devida e deverá ser paga, ao final – sem qualquer ressalva quanto à mudança de condição financeira da parte (art. 98, § 4º).
Além disso, se houver má-fé, haverá a condenação ao pagamento de até 10 vezes o valor das despesas devidas a título de multa, em favor da Fazenda Pública (art. 100, p. u.).
Portanto, são inovações que facilitam o acesso à justiça, simplificam o procedimento, buscam evitar abuso dos requerentes da gratuidade e, especialmente, pretendem obstar debates laterais e incidentes, para que se possa focar na discussão do mérito. Elogios ao legislador por essas regras.
Mas, como dito, não temos apenas o “lado A”. Há outras previsões que, creio, trarão dificuldades para o cotidiano forense (gerando, especialmente, as indesejadas discussões laterais). Mas isso é o “lado B” da gratuidade, (lado que, infelizmente, também terá de “tocado e ouvido” no dia a dia forense).