Após passar 10 anos sem ter causa julgada, advogado recorre à Organização dos Estados Americanos

Um juiz estadual do 1º grau recebe em média 1.551 casos novos por ano no Brasil, enquanto o magistrado federal assume mais de dois mil, segundo dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Porém não é fácil esperar mais de 10 anos e não ter a causa julgada, como é o caso do advogado Renato Artero, 50 anos. Sua família tinha uma empresa de distribuição da Antarctica, no interior de São Paulo, mas ele perdeu o negócio após a fusão que gerou a Ambev em 1999. Tratado há 11 anos pelo mercado como um “nome sujo”, Renato e mais 39 pessoas em situação semelhante recorreram ao Tribunal Regional Federal da 3ª Região, em 2005, mas o caso foi transferido para a Justiça estadual de São Paulo em 2014 para começar do zero. Até hoje, ainda está na 1ª instância, sem ser julgado.

Em 11 anos, Renato adoeceu, sofreu perdas econômicas e de direitos simples, como ter uma conta bancária e um nome limpo. Mas decidiu fazer parte de um pequeno grupo, porém cada vez mais crescente, de pessoas que recorrem ao exterior para buscar Justiça não alcançada em seu próprio país. Seu caso hoje é uma das 99 petições do Brasil que foram feitas à Comissão Interamericana de Direitos do Homem da Organização dos Estados Americanos (OEA), sendo uma das 40 petições já aceitas, o que já é visto como uma vitória parcial.

A instituição é conhecida por acatar denúncias contra estados membros por graves violações aos direitos humanos. O Brasil é o quinto país do mundo que mais recorre a OEA e o segundo que tem mais pedidos acatados. Somente no ano passado, a Comissão recebeu 2.164 petições das Américas, 23% a mais que no ano anterior, de acordo com dados da Comissão Interamericana de Direitos Humanos.

A situação de Renato ainda não tem prazo para ser analisada, mas está nas mãos da mesma Comissão que decidiu um famoso caso brasileiro, o de Maria da Penha. Em 1983, Maria da Penha sofreu uma dupla tentativa de homicídio por parte do marido, Marco Antônio Heredia, mas ele continuou em liberdade durante 15 anos em virtude de medidas protelatórias da Justiça brasileira. Maria da Penha recorreu à Comissão da OEA, que responsabilizou o Brasil em 2001 por omissão e negligência no que diz respeito à violência doméstica contra a mulher. Depois de 18 anos sem ver a solução do seu caso, portanto, a Comissão internacional recomendou a adoção de políticas públicas e o Brasil terminou sancionando a Lei nº 11.340 - a Lei Maria da Penha.

Renato não levou um tiro nas costas, nem chegou a ficar tetraplégico, como Maria da Penha, mas conseguiu recorrer a OEA, que aceita os casos de violação em duas possibilidades: quando há demora da decisão final no país de origem ou se esgota a possibilidade de recursos internos. A petição é movida por ele e mais 39 pessoas, todas da Associação dos Distribuidores e Ex-Distribuidores dos Produtos da Ambev. É o resultado de um descaso. No TRF3, o processo inicial passou nove anos para decidir se Conselho Administrativo de Defesa Econômica, que autorizou a fusão das cervejarias Brahma e Antarctica, ficaria no polo da ação. Como não ficou, o caso passou a Justiça estadual.

Os distribuidores se sentiram prejudicados após a fusão e alegam que tanto sofreram violação dos Direitos Econômicos como violação dos Direitos Humanos. Alguns autores da petição, inclusive, já falecerem sem verem o caso julgado no Brasil. A Ambev foi procurada pelo Diario de Pernambuco, mas disse que preferia não se pronunciar.

Como a petição feita por Renato já foi aceita, ela está tramitando para se encerrar com a decisão da Comissão, que antes notificará as partes para emitir um relatório. “Eu perdi um galpão para pagar a indenização de funcionários, mas até hoje tenho dívidas tributárias, não consigo abrir conta no banco e tenho o nome sujo. Até hoje, tenho que usar o cartão da minha mulher”, declarou Renato, com a voz embargada, ao falar do peso que é sempre depender de alguém quando precisa resolver algo. “Não é só questão de prejuízo financeiro. O psicológico afeta muito. Te dá depressão, você tem que tomar remédio, tem síndrome do pânico… Quando isso aconteceu, eu tinha trinta e poucos anos”, declarou, em entrevista ao Diario.

Busca de soluções externas tem sido frequente

De acordo com a advogada Maristela Basso, professora de Direito Internacional da Faculdade de Direito de São Paulo (USP), é cada vez mais frequente o questionamento de violação dos Direitos Econômicos e Humanos e busca de soluções externas. No caso da fusão da Ambev, especificamente, ela ressalta que houve danos irreparáveis com após a fusão, entre eles, a falta de pagamento de indenizações devidas a todos os distribuidores. A fusão da Ambev extinguiu cerca de mil empresas do ramo de distribuição, na época, e afetou a vida de mais de 60 mil pessoas.

Segundo Maristela, no processo de fusão, a Ambev assinou um termo de compromisso e desempenho junto ao Conselho Administrativo de Defesa Econômica do Brasil que não foi cumprido. O caso é tão polêmico que já provocou uma audiência pública na Câmara dos Deputados, onde os representantes da Ambev também não compareceram, alegando motivos de agenda. Da mesma forma, não houve representantes do Conselho Nacional de Justiça.

“Nós estamos lidando aqui com pessoas, pessoas que estão aqui, pessoas que se emocionam, pessoas que ficaram absolutamente sem condições e sem identidade para tocar a sua própria vida, com todo o impacto que isso tem não apenas nelas diretamente mas também nas suas estruturas familiares”, declarou Érika Kokay (PT-DF), na ocasião.

Para Maristela Basso, que falou com o Diario por email, é comum empresas adotarem procedimentos no Brasil que não seriam aceitos em países desenvolvidos, contrários ao desenvolvimento sustentável, respeito aos direitos humanos e ao meio ambiente. A Justiça estadual de São Paulo também foi procurada para manifestar sua opinião, mas não respondeu até o fechamento desta edição. (A.M)

Os desdobramentos da Comissão

Comissão é formada por sete membros independentes que atuam de forma pessoal e tem sua sede em Washington, D.C. (Divulgação/OEA)

Comissão é formada por sete membros independentes que atuam de forma pessoal e tem sua sede em Washington, D.C.

A função da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), ligada à OEA, é promover a observância e a defesa dos direitos humanos nas Américas, englobando 35 países, incluindo o Brasil. Ela tem o direito de emitir relatórios que incluam alguns tipos recomendações: mandar suspender atos de violação, cobrar investigações, reparar os danos ocasionados, introduzir mudanças no ordenamento jurídico ou requerer adoção de outras medidas.

Entre os casos polêmicos do Brasil que estão na CIDH, um deles trata da Usina hidrelétrica de Belo Monte, no Pará. No final do ano passado, a Comissão deu início ao trâmite de petição apresentada em 2011 por organizações não governamentais brasileiras. O documento, na época, alegou haver violações contra a população que vive na região onde a usina hidroelética de Belo Monte, no Pará, está sendo construída. A CIDH se manifestou quatro anos depois de petição ser apresentada e já pediu informações ao governo federal, que ainda está no prazo para responder.

No ano passado, por exemplo, a CIDH também condenou o assassinato de 11 pessoas em Fortaleza, das quais sete tinham entre 16 e 17 anos de idade. Exigiu que esse estado desse continuidade aos inquéritos iniciados de forma rápida, objetiva e imparcial, e incluiu a hipótese de que os possíveis autores poderiam ser oficiais da força de segurança daquele estado.

Pernambuco já foi chamado a atenção pela OEA, em virtude de rebeliões nos presídios, que são acompanhadas pela Instituição desde 2011. Em outubro do ano passado, a organização cobrou investigação sobre entrada de armas no Complexo do Curado, que poderia ter a conivência de agentes públicos.

No caso de as recomendações da CIDH não serem acatadas pelo país, elas são remetidas à Corte IDH e o país pode até ser suspenso da OEA, o que é visto como uma vergonha. Um dos casos que está na Corte, segundo dados do site, diz respeito às execuções extrajudiciais de 26 pessoas - incluindo seis crianças - no âmbito das incursões policiais feitas pela Polícia Civil na Favela Nova Brasília, do Rio de Janeiro, em 18 de outubro de 1994 e em 8 de maio de 1995. Estas mortes foram justificadas pelas autoridades policiais mediante o levantamento de “atas de resistência à prisão”.

Por Diário de Pernambuco

Diário de Pernambuco
Enviado por Fátima Burégio em 28/02/2016
Código do texto: T5558479
Classificação de conteúdo: seguro