DESACATO À AUTORIDADE

Caro leitor:

Se você já viu em uma repartição pública aquele aviso de "desacato à autoridade", citando artigo do código penal, não se assuste.

Não tem valor nenhum!

Claro, caro leitor, que o aviso foi colocado para que o usuário do serviço público pense duas vezes antes de ser mal criado ou coisa pior.

Mas nada mais do que isso.

Desacato é coisa muito diferente.

Quanto for buscar um serviço público, SEJA EDUCADO e exija, em contrapartida, ser TRATADO COM RESPEITO.

A educação e a gentileza, de ambas as partes, é o concreto que pavimenta as boas relações.

Se quer saber o que é desacato, e como ele é encarado pela BOA JUSTIÇA, leia a respeitável sentença do Juiz de Direito de Barra Mansa, Rio de Janeiro, que julgou um "suposto" crime de desacato, praticado contra policial, conforme segue abaixo.

Ela está disponível na internet; transcrevendo-a apenas estou facilitando a vida do bom estudioso que quer aprender as coisas da maneira correta.

Eis a boa lição:

ESTADO DO RIO DE JANEIRO – PODER JUDICIÁRIO

COMARCA DE BARRA MANSA

JUÍZO DE DIREITO DA 1ª VARA CRIMINAL

Processo nº 0012014-39.2013.8.19.0007

“Fuck you / I won´t do what you tell me”

• Zack de la Rocha

SENTENÇA

O Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro, com base no incluso termo circunstanciado, ajuizou ação penal em face de WAF, dando-o como incurso nas penas dos artigos 330 e 331 do CP, em concurso material, por ter se recusado a obedecer ordem de policiais militares no sentido de encostar na parede para ser revistado, e por tê-los desacatado ao dizer “vão se foder, eu conheço meus direitos, vão tomar no cu, seus filhos da puta”, tudo nos termos da denúncia de fls. 02/02-B, cuja narrativa passa a integrar, para todos os fins, o relatório desta sentença.

FAC às fls. 17/23 e CAC às fls. 25/27.

Às fls. 29/38, decisão proferida pelo JEACRIM declinando de sua competência em favor do juízo criminal comum, sob fundamento de que a soma das penas máximas cominadas aos crimes ultrapassava o limite bienal.

Denúncia recebida às fls. 40.

Nova FAC às fls. 41/44, e ainda outras CACs às fls. 47/50.

Regularmente citado (fls. 60-v), apresenta o réu resposta à acusação às fls. 61.

Às fls. 62, ratificou-se o recebimento da denúncia, ocasião em que se designou AIJ.

Certidão cartorária única às fls. 72.

Audiência realizada em 18 de março de 2015, consoante assentada de fls. 74.

Alegações finais ministeriais às fls. 80/90, nas quais se requer a condenação nos termos da inicial. Considera comprovadas as práticas delitivas, especialmente pelos depoimentos dos policiais militares, que reputa harmônicos e dignos de fé, sob invocação da súmula 70 do E. TJ/RJ. Tacha de isolada a tese autodefensiva, e salienta que não há excludentes de ilicitude ou de culpabilidade a beneficiar o acusado.

A Defesa apresenta suas derradeiras alegações às fls. 92/98. Ali, afirma que a prisão foi realizada de forma arbitrária pelos policiais, cujos relatos, assim, não gozam de credibilidade. Aduz que trouxeram versão fantasiosa, e segue pontuando contradições e inconsistências na narrativa por eles apresentada. Grifa que o motivo da abordagem não foi esclarecido ao acusado no momento em que ela se deu, eivando de ilegalidade a ordem a cujo atendimento se teria recusado, e que WAF estaria, ainda, tomado de cólera, estado de espírito que desnaturaria a configuração típica em discussão. No que tange ao desacato, pontua que nenhuma das expressões contidas na denúncia dirige-se ao rebaixamento da dignidade da função. Postula, portanto, a absolvição.

Eis o relatório. Passo a decidir.

No que se refere, inicialmente, ao crime de desobediência, constato que a ordem emanada dos policiais – para que o acusado assentisse com sua revista pessoal – revestiu-se de duvidosa legalidade, o que nos força à conclusão pela ausência deste elemento normativo do tipo inscrito no art. 330 do Código Penal. Vejamos, brevemente, a suma da prova oral regularmente produzida em juízo.

De início, o PMERJ O. refere que se dirigiram até determinada localidade após receberem notícia, via sala de operações, de que lá havia um indivíduo realizando algum tipo de arruaça, inclusive portando uma arma de fogo que já havia sido mesmo disparada para o alto. Após realizarem rondas, ninguém foi encontrado de início, mas depois visualizaram o acusado, que possuía características condizentes com aquelas indicadas na denúncia que motivou a diligência. Na abordagem, o réu recusou-se a obedecer às ordens, além de xingar e aparentar extremo nervosismo. Proferia diversas palavras e expressões de baixo calão, inclusive aquelas descritas na peça acusatória. Quando ordenado que parasse com aquilo, não cumpriu a determinação e tentou evadir-se. Quando viram o acusado, ele saía de um beco muito escuro, e trajava indumentária parecida com aquela indicada pela sala. A ordem inicial, dada por seu colega, foi no sentido de que ele parasse e levantasse as mãos, sendo que sequer houve tempo para explicar a razão pela qual estavam realizando a abordagem, já que ele estava muito exaltado. Confirma-se que o acusado disse que conhecia seus direitos. Hoje, devido ao tempo decorrido desde então, o depoente não se recorda das roupas que o réu vestia na ocasião, mas se lembra da coincidência entre as que ele usava e as que eram descritas na notícia recebida via rádio. Com ele, não foi encontrada arma. Na DP, verificou-se que ele estaria evadido do sistema prisional. A fuga que ele tentou empreender não teve êxito, pois o colega do depoente o segurou pela blusa.

Na sequência, o PMERJ C. ratifica a informação recebida via rádio, acrescentando que ela detalhava que o sujeito que estaria transtornado no local já havia até mesmo proferido ameaças diretamente a famílias que lá residiam. Após realizarem algumas rondas, perceberam que o acusado, ao visualizar a guarnição, correu, deu meia-volta e arremessou algum objeto por cima de um muro – provavelmente, a arma de fogo que era referida no acionamento pela sala de operações. Na volta, ao ser abordado, agiu em conformidade com o narrado pela exordial acusatória. Lembra-se de que foram ditas diversas palavras chulas, e que eventualmente o acusado dizia ainda que conhecia advogados. No que tange à suposta arma, tentaram entrar no local onde teria sido dispensada, mas perceberam que no quintal havia diversos cachorros bravos, o que impediu a sua apreensão. Não foi possível contatar o proprietário do imóvel, devido à geografia específica do local. Tais fatos foram narrados em sede de Delegacia. A ordem para que WAF parasse partiu de ambos os policiais. Não disseram, num primeiro momento, a razão da abordagem, já que isso não é possível em qualquer diligência desse tipo. Normalmente isso é feito posteriormente, só no decorrer da busca. O réu estava muito exaltado, e não foi encontrada arma de fogo com ele. Contiveram-no valendo-se dos meios necessários, mas ninguém saiu machucado. A guarnição chegou a localizar uma pessoa que teria visto os disparos realizados pelo réu. Porém, como ela não quis figurar na qualidade de testemunha, não foi conduzida à DP pelo depoente.

O acusado, finalmente, afirma que não xingou os militares nem desobedeceu a suas ordens. Apenas disse que sabia seus direitos, e questionou a razão pela qual o estariam abordando e prendendo, já que nada de ilícito havia sido encontrado com ele.

O que se colhe de tal quadro é que há diversas contradições nos relatos dos milicianos, o que atrai fragilidade para a reconstrução dos fatos que operaram. Primeiramente, veja-se que não há qualquer tipo de registro da informação que teriam recebido da sala de operações, que poderia ser capaz de atrair algum fundamento para a realização da abordagem no acusado – a “fundada suspeita” a que alude o art. 240, §2º do CPP. Essa carência poderia, eventualmente, ser superada caso os policiais lograssem apresentar, com suficiente solidez, real e legítima motivação a sustentar a diligência. No entanto, como já adiantado, incidiram em inúmeras divergências: por exemplo, o PMERJ O. conta que foi C. quem primeiramente ordenou que WAF parasse, erguesse as mãos e autorizasse a revista, ao passo que o segundo policial já refere que ambos lhe dirigiram essa determinação. Mais: o policial C. também narra detalhe sobremaneira relevante, que contudo não chegou a ser pontuado por seu colega de farda – o de que foi visto o momento em que o acusado arremessou algo por cima de um muro, provavelmente a tal arma de fogo que foi mencionada na notícia supostamente recebida através da sala de operações. Segue ainda relatando que foi até realizada busca naquele jardim, o que restou impedido pela presença de cães bravos. Nada disso, entretanto, chegou a ser aduzido em sede policial pelo próprio C., consoante se percebe de fls. 03-v. O. também, pelo seu depoimento, nada sabe sobre a suposta testemunha das ameaças proferidas pelo réu preteritamente à sua abordagem, o que também causa espécie, já que se conta mesmo que esta pessoa teria referido vários pormenores sobre a conduta inconveniente e/ou ameaçadora de WAF, e que ainda teria sido liberada pelos policiais por ter solicitado que não constasse como testemunha dos fatos.

Há, assim, bastantes dúvidas em torno da legalidade da ordem emanada da guarnição. Não foi afastada a possibilidade de que tenha se tratado de uma simples – e ilegítima – abordagem “de rotina”, para meras “averiguações”. Existe a necessidade, aliás, de que se elida essa hipótese de maneira especialmente plena: é que essa espécie de procedimento, como informam as próprias regras de experiência, marcam o dia a dia da atividade policial, visto materializarem a incidência seletiva do sistema penal em termos de criminalização secundária por seus critérios tipicamente racistas e classistas – isto é, dissociada de qualquer suspeita concreta de prática criminosa, já que sustentada fundamentalmente na identificação de estereótipos a ela mais vulneráveis[1].

Em casos tais, faz-se necessário, inclusive, fomentar a desobediência como meio de fortalecimento da própria democracia desenhada em nosso projeto constitucional. Em se tendo em mente a ideia de que atos de protesto não necessariamente se traduzem em manifestações coletivas organizadas[2], trata-se de verificar a obviedade de que a já mencionada clientela típica da criminalização compõe uma “minoria endêmica”, notoriamente excluída dos processos decisórios atinentes à programação de práticas policiais e penais. É a carência dessa “liberdade de caneta” – expressão de Kant – que se revela proporcional à legitimação da desobediência[3].

Dessa maneira,

“(…) as regras derivadas de um mecanismo político que inviabiliza permanentemente os interesses de um determinado grupo social são corruptas, no sentido aristotélico do termo. Constituem um desvio interesseiro do sistema político. A consequência para quem está comprometido com o ideal da democracia é que tais regras corruptas não merecem obediência. Merecem principalmente (e moralmente) a nossa desobediência. Historicamente, até mesmo na Bíblia pode-se encontrar esse conceito. Em Isaías encontramos a seguinte afirmação: ‘Ai dos que decretam leis injustas e dos que editam decretos opressivos’ (Isaías, 10:2-1).”[4]

Mas não é qualquer injustiça simples que autoriza a (melhor, obriga à) desobediência, já que nesse caso devem ser observados os mecanismos institucionais de correção. Somente a permite a

“injustiça estrutural. A ‘desobediência civil’ questiona o resultado da parcialidade, baseada estruturalmente em uma maioria de decisão que representa apenas seu próprio interesse como grupo social. A influência política que este grupo detém é tão determinante que o define como ‘maioria’, ainda que numericamente represente uma mínima parcela da sociedade! A lógica desse tipo de decisão é transformar o papel do processo democrático em um mecanismo em que as disputas de um grupo de interesse na sociedade são diferenciadas e permanentemente neutralizadas, tornando esse grupo minoria endêmica.”[5]

Parece evidente que a operatividade concreta das agências policiais e penais se conforma numa estrutura de injustiça, cujos prejudicados veem diante de si bloqueados os acessos formais para minorá-la[6].

Com todo o dito, fica afastada a imputação atinente à desobediência. Passemos, portanto, a perscrutar a procedência quanto ao crime de desacato.

De saída, o que se percebe da própria narrativa apresentada pela denúncia é que as palavras atribuídas ao acusado foram, verbis, “vão se foder, eu conheço meus direitos, vão tomar no cu, seus filhos da puta”. É cediço que, “no crime de desacato, para a perfeita subsunção da conduta ao tipo, o que se perquire é se a agressão, ofensiva à honra e/ou dignidade do agente público, foi a ele dirigida em razão da função pública exercida, ou seja, busca-se a motivação, a causa da conduta reprovável, estabelecendo-se o nexo causal” ((HC 21.228/PI, Rel. Ministra LAURITA VAZ, QUINTA TURMA, julgado em 20/02/2003, DJ 24/03/2003, p. 247). Em sendo assim, podemos colocar em xeque – como fez a Defesa em suas alegações finais – se a intenção do réu, com aquelas ofensas, teria se orientado ao menosprezo das funções públicas exercidas pelos militares. Isso porque não há, em princípio, sequer menção às indigitadas funções, de maneira que a tipificação exata dessa conduta pode ser controvertida.

É possível, entretanto, que se argumente no sentido de que o contexto logra dar conta dessa intenção. Afinal, os insultos teriam ocorrido no momento da realização da revista, e ainda teriam sido acompanhadas da verbalização “eu conheço meus direitos”. Com isso, estar-se-ia pretendendo manifestar que os policiais estariam exercendo indignamente suas atribuições, visto que agiam ilegalmente, ou seja, violando direitos de cuja titularidade tinha ciência o acusado.

A presença ou não dessa finalidade pode ser debatida à luz da própria carência de provas quanto à legalidade da busca pessoal, já amplamente demonstrada na análise quanto ao delito de desobediência. Mas, além disso, há outra importantíssima razão para que se rechace a imputação concernente ao desacato: a sua não recepção pela ordem supralegal que passou a viger após sua tipificação no ano de 1940, especialmente pela proteção à liberdade de pensamento e de expressão conferida pelo art. 13 da Convenção Americana de Direitos Humanos – o chamado Pacto de São José da Costa Rica, ratificado pelo Brasil e promulgado pelo Decreto 678/92.

Trata-se de tese que está longe de ser inédita, na medida em que há registro de seu acolhimento por Poder Judiciário nacional[7], bem como de que tenha sido deduzida pela combativa Defensoria Pública do Estado de São Paulo perante a Comissão Interamericana de Direitos Humanos em pelo menos duas oportunidades – 2012 e 2015[8]. Entre essas duas ocasiões, especificamente em 2013, a Comissão chegou a advertir o Brasil para que procedesse à adequação de sua legislação aos preceitos convencionais[9].

Entendemos despiciendas maiores digressões quanto à debatida natureza dos tratados internacionais de direitos humanos relativamente ao ordenamento interno, face à pungente penetração no meio jurídico da (já não tão mais) recente pacificação, pelo STF, de que eles ostentam caráter supralegal. Limitamo-nos a anotar a remissão ao HC 92817/RS e aos REs 349.703 e 466.343, todos julgados no último mês de 2008.

Se é assim, as leis internas brasileiras devem adaptar-se ao quanto disposto nos tratados que se incorporaram a nosso ordenamento jurídico, por meio do processo que passou a se designar de controle de convencionalidade. No que se refere especificamente ao crime de desacato, ainda previsto no art. 331 de nosso CP, é sólida a orientação da CIDH – à qual manifestamos desde já adesão – de que tal tipificação viola a liberdade de expressão tutelada pela CADH, o que leva aquele órgão a permanentemente fiscalizar os países participantes do sistema interamericano nesse sentido, produzindo um relatório a cada biênio relativamente ao tema. No informe de 2004, a preocupação da Relatoria para a Liberdade de Expressão da CIDH foi manifestada nos seguintes termos:

“14. Las leyes de desacato otorgan una protección a los funcionarios públicos de la que no disponen el resto de integrantes de una sociedad, e invierte el principio democrático que procura la sujeción del gobierno – y en consecuencia, de los funcionarios públicos – al escrutinio público, para prevenir o controlar el abuso del poder. Los ciudadanos tienen derecho de criticar y examinar las actitudes de los funcionarios en lo que se relaciona con su función pública. Este tipo de leyes, pueden tener un efecto disuasivo en quienes desean participar en el debate público por temor a acciones judiciales o a las sanciones, particularmente cuando no distinguen entre los hechos y los juicios de valor. La posibilidad de probar la verdad, al transferir la carga de la prueba a quien se manifiesta, no reduce este efecto, especialmente en los casos de los juicios de valor que no admiten prueba. Em palabras de la Comisión ‘(…) la amenaza de responsabilidad penal por deshonrar la reputación de un funcionario público inclusive como expresión de un juicio de valor o uma opinión, puede utilizarse como método para suprimir la crítica y los adversarios políticos’. Según la argumentación de la Comisión, el orden público encuentra su máxima garantía em una democracia funcional, por lo tanto, defender la figura de desacato en aras de la preservación del orden público contradice la lógica que sustenta la protección de la libertad de expresión y pensamiento en la Convención Americana.

15. Desde su creación, la Relatoría ha analizado el problema de las leyes de desacato por el peligro de que se conviertan en un mecanismo para silenciar el debate pluralista y democrático en torno de la gestión pública. El principio 11 de la Declaración de Principios sobre Libertad de Expresión se aboca a este problema:

16. Los funcionarios públicos están sujetos a un mayor escrutinio por parte de la sociedad. Las leyes que penalizan la expresión ofensiva dirigida a funcionarios públicos generalmente conocidas como ‘leyes de desacato’ atentan contra la libertad de expresión y el derecho a la información.

17. Las preocupaciones de la Comisión y de la Relatoría son compartidas por otros organismos intergubernamentales, y organizaciones de la sociedad civil de todo el mundo, que se han manifestado en el mismo sentido y han abogado por la derogación de estas leyes. A pesar de esto, en varios Estados de las Américas sobreviven estas normas.”[10]

Isso quando, nos relatórios anteriores, já havia sido assentado que mesmo a utilização de tipos mais gerais, como calúnia, injúria e difamação, poderia ensejar também violação à liberdade de pensamento e de expressão:

“17. A Relatoria para a Liberdade de Expressão ressaltou, nos Relatórios anuais anteriormente citados, que a opinião da CIDH em relação com o tipo penal de desacato também apresenta certas implicações em matéria de reforma das leis sobre difamação, injúria e calúnia. O reconhecimento do fato de que os funcionários públicos estão sujeitos a um menor, e não a um maior, grau de proteção frente às críticas e ao controle popular significa que a distinção entre as pessoas públicas e privadas deve-se efetuar, também, nas leis ordinárias sobre difamação, injúria e calúnia. A possibilidade de abuso de tais leis, por parte dos funcionários públicos, para silenciar as opiniões críticas é tão grande no caso destas leis como no das leis de desacato.”[11]

E, para aplacar eventual desassossego no sentido de que a orientação pretende tornar absolutamente livres e impunes os ataques à honra de funcionários públicos, tem-se o cuidado de consignar o seguinte:

“20. No se trata aquí de negar el honor de quienes ejercen una función pública, sino que, su posible lesión cede frente a otro bien –en este caso la libertad de expresión – al que el cuerpo social le otorga preponderancia. En todo caso, los ataques al honor y a la reputación pueden protegerse por medio de sanciones civiles, siempre y cuando éstas sean proporcionales y permitan la consideración de la real malicia”[12].

Cuida-se de operar a simples incidência do princípio da ultima ratio, tão negligenciado pela cultura não só dos operadores do direito, mas de praticamente toda a sociedade ocidental, que, condicionada a conferir exclusivamente respostas penais a qualquer conflito, tem obnubilada a visualização de soluções que possam se afigurar menos autoritárias e, por isso, mais adequadas. Faz-se mister afastarmos de nosso jardim “os obstáculos que impedem o sol e a água de fertilizar a terra”, pois “logo surgirão plantas de cuja existência eu sequer suspeitava”[13], e assim esvanecerão as inquietudes que proporciona a crença mecanizada e cega no sistema penal.

Por todo o exposto, JULGO IMPROCEDENTE a pretensão punitiva estatal e ABSOLVO, por conseguinte, WAF da imputação que contra si nestes autos foi formulada, com base no art. 386, VII do CPP. Sem custas. Proceda o cartório às anotações de praxe.

Publique-se, registre-se, intimem-se.

Barra Mansa, 12 de agosto de 2015

ANDRÉ VAZ PORTO SILVA

JUIZ DE DIREITO TITULAR

[1] Cf. ZAFFARONI, E. Raúl, BATISTA, Nilo, ALAGIA, Alejandro, SLOKAR, Alejandro. Direito Penal Brasileiro: primeiro volume – Teoria Geral do Direito Penal. Rio de Janeiro: Revan, 2011, especialmente pp. 46-53..

[3] SABADELL, Ana Lucia e SIMON, Jan-Michael. Protestos Sociais, direitos fundamentais e direito a desobediência civil. In: Revista Brasileira de Estudos Constitucionais, ano 8, n. 30, p. 521-544, set./dez. 2014. Belo Horizonte: Fórum, 2007, p. 538.

[4] Ibid., p. 535.

[5] Ibid., p. 536.

[6] Por mais que não valha alongarmo-nos no tema, consignamos apenas que a imperiosidade da desobediência em casos tais também é teoricamente sustentada na medida em que se a aproxima da estratégia revolucionária de êxodo à captura pelas forças transcendentes. A estas se opõem as formas da imanência, manifestadas de maneira especialmente libertadora, na pós-modernidade, na figura do pobre – justo aquele alvo preferencial da violência penal imperial. Sobre o tema, são estimulantes as quase poéticas lições de HARDT, Michael e NEGRI, Antonio. Império. Rio de Janeiro: Record, 2012, p. 174-177.

[7] Recebeu ampla divulgação a sentença proferida pelo professor e juiz do TJ/SC Alexandre Morais da Rosa no bojo dos autos de nº 0067370-64.2012.8.24.0023. Seu teor encontra-se disponível, por exemplo, em <http://emporiododireito.com.br/desacato-nao-e-crime-diz-juiz-em-controle-de-convencionalidade/>. Acesso em 11 de agosto de 2015.

[8] Cf. o que se noticia em <www.defensoria.sp.gov.br/dpesp/Conteudos/Noticias/NoticiaMostra.aspx?idItem= 58131&idPagina=3086>.

[9] Cf. <http://oglobo.globo.com/brasil/comissao-da-oea-adverte-brasil-sobre-risco-liberdade-de-expressao-10599125>. Acesso em 11 de agosto de 2015.

[10]Disponível em <http://www.oas.org/es/cidh/expresion/docs/informes/desacato/Informe%20Anual%20Desacato%20y%20difamacion%202004.pdf>. Acesso em 11 de agosto de 2015.

[11] Disponível em <http://www.cidh.oas.org/annualrep/2002port/vol.3i.htm>. Acesso em 11 de agosto de 2015.

[12]Disponível em <http://www.oas.org/es/cidh/expresion/docs/informes/desacato/Informe%20Anual%20Desacato%20y%20difamacion%202004.pdf>. Acesso em 11 de agosto de 2015.

[13] HULSMAN, Louk. Penas perdidas: o sistema penal em questão. Niterói: Luam, 1993, p. 140. A célebre passagem acerca dos cinco estudantes, na página 99 da mesma obra, é bastante elucidativa quanto à necessidade de confiarmos na priorização de respostas não-penais para situações interpessoais conflitantes.

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Obrigado pela leitura;

volte sempre.

Sajob - setembro / 2015