Pecatum

A idéia de pecado nas diferentes visões filosóficas de Sto. Agostinho, São Tomás de Aquino, Kant, Leibniz, Nietzsche, Hegel, Kierkegaard, Marx, Sartre, Russel e Habermas. A autora delineia o significado atual do pecado. Gisele Leite

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Pecado vem do latim peccatum, para o cristianismo, é a desobediência ou transgressão voluntária à lei de Deus. O pecado é considerado uma falta moral que denigre o indivíduo espiritualmente, e não apenas como simples não-cumprimento de uma regra oculta. “O mal moral consiste no pecado” Leibniz, Teodicéia.

Os sete pecados capitais são: a luxúria, gula, inveja, avareza, orgulho, preguiça e ira. Tecer avaliações sobre os pecados é mesmo tema da teologia. Mas procuremos igualmente esboçar uma visão filosófica e cultural sobre estes setes pecados.

A ética cristã está centrada demasiada na relação pessoal de cada um com Deus, concebido como criador onisciente, onipotente e onipresente..

Os filósofos cristãos trouxeram alguns elementos da tradição filosófica, redimensionando-as dentro da concepção cristã. A purificação da alma já era mesmo prevista por Platão e é remodelada por Santo Agostinho (no século III) calcada na idéia da necessidade de elevação ascética para se compreender os desígnios de Deus.

Já a ética aristotélica foram remodelada novamente por Santo Tomás de Aquino (século XIII) resgatando a felicidade como fim último dos homens e identificou Deus como a fonte dessa felicidade.

A ética grega e a cristã se diferencia por dois importantes aspectos. O primeiro representado pelo abandono do racionalismo (não é pela razão que se alcança a perfeição moral e sim através do amor e da boa vontade). Aliás, a fé, amor, caridade e piedade são virtude recomendadas especialmente pela ética cristã.

A ética cristã tratou a moral (como os estóicos e epicuristas já o faziam) sob ponto de vista estritamente subjetivo e pessoal; uma relação entre o indivíduo e Deus, desagregando-o de sua condição social e acentuando a importância da subjetividade nunca vista antes.

A liberdade para a ética cristã passou a existir na relação interior de cada indivíduo com Deus. E Santo Agostinho tenta justificar a existência do mal, se tudo vem de Deus. E Deus é bondade infinita. Então, introduziu-se a acepção de liberdade como livre-arbítrio.

Onde cada indivíduo pode escolher livremente entre aproximar-se de Deus ou afastar-se Dele. E o afastamento de Deus, de acordo com Santo Agostino seria o mal.

A acepção do livre arbítrio esvaziou completamente a noção grega de liberdade concebida como possibilidade de realização plena dos indivíduos em seu meio social. A liberdade perde sua dimensão social e, aderiu a um caráter pessoal, subjetivo e individualista.

Com o fim da Idade Média com o Renascimento há uma retomada do humanismo e, com isto, revalorizou-se a autonomia humana.

No Iluminismo tal antropocentrismo fica mais evidente, e a moral não mais se baseia em valores religiosos, e sim, em valores originados da compreensão acerca do que seja a natureza humana.

É a natureza racional bem exposta por Kant que vai esboçar a nova ética moderna. Em diversos textos críticos kantistas (Crítica da razão prática e Fundamentação da metafísica dos costumes) aponta a razão humana como legisladora, capaz de elaborar normas universais, portanto, as normas morais possuem sua origem na razão.

As normas morais devem ser obedecidas como deveres, que se confundem com a própria noção de liberdade. Pois no pensamento kantiano, o indivíduo que obedece a uma norma moral atende assim à liberdade da razão, ou seja, àquilo que razão livremente delibera como correto.

A sujeição à norma moral é o reconhecimento de sua legalidade, conferida pelos próprios indivíduos racionais.

Kant reforça tal idéia ao consagrar que só pode ser considerado um ato moral aquele ato praticado de forma autônoma, consciente, e por dever.

A razão é a única fonte legítima da moralidade, aconselha: “age apenas segundo uma máxima (ou princípio) tal que possas ao mesmo tempo querer que ela se torne lei universal”. Kant.

Este é o imperativo categórico (o que deve ser observado sempre em todo ato moral). Se não puder ser universalizada a ação, esta não será moralmente correta e só poderá ser realizada como exceção e, nunca como regra.

Kant acredita que nossa vontade é também afetada pelas inclinações que são os desejos, as paixões, os medos, e não apenas pela razão. Precisamos educar nossa vontade para alcançar a boa vontade, que é unicamente guiada pela razão.

Para Kant, a natureza humana é uma natureza racional que supera os instintos, retirando-se assim do determinismo natural, ainda que isto implique no sacrifício da felicidade pessoal.

A reflexão ética contemporânea desemboca numa moralidade com uma base exterior e transcendental centrando-se no próprio homem e pautando a origem dos valores e normas morais. Surgiu também a reação contra o formalismo excessivo de Kant.

Tal ética postula o dever como norma universal sem se preocupar com a condição individual de cada um diante desse dever.

Kant nos fornece a forma da ação moralmente correta mas silencia quanto ao seu conteúdo. Hegel é o primeiro a questionar Kant. E chama atenção para o fato do conteúdo histórico-social da moralidade.

Assim, para Hegel a moralidade assume conteúdos diferenciados ao longo da história das sociedades, sendo a vontade individual apenas um dos elementos da vida ética de uma sociedade em seu conjunto.

A moral resulta de uma relação entre cada indivíduo e o conjunto social. E se manifesta tanto nos códigos objetivos como na cultura, nas instituições de uma dada sociedade.

Segundo Hegel, a moral é uma relação dialética entre os indivíduos e sociedade. Os códigos morais tem um aspecto eminentemente histórico-social que se manifesta no cultura e nos costumes de cada época.

A crítica de Hegel a insuficiência da ética kantiana é um marco definitivo na reflexão ética contemporânea. Assim, o próprio homem seria apenas um meio pelo qual a razão absoluta se realiza. E assim, se dilapida a autonomia do sujeito.

Então, para Hegel o sujeito não é sujeito, é espírito ou razão que se manifesta por meio dos indivíduos.

Resgatar o indivíduo concreto que restou perdido na idéia abstrata de uma razão que paira sobre os homens, e combater o racionalismo exacerbado, tornou-se a missão de vários filósofos contemporâneos.

Kierkegaard foi um crítico feroz a Hegel, enfatizando a subjetividade como algo irredutível à esquematização racionalista.

Kierkegaard influenciou também a psicanálise que desenvolveu elementos para se pensar a ação moral ao reconhecer o que o inconsciente determina, na maioria das vezes, nas ações humanas.

Aliás, num outro artigo da autora, ressaltou-se o romantismo de Kierkegaard. (em idéias com o título de O romântico Kierkegaard).

Em comum tais pensamentos pautam a recusa do racionalismo absoluto a partir da existência do aspecto irracional presente no homem.

Nietzsche a seu turno, também criticou o racionalismo ético que considerava repressor e inibidor do pleno desenvolvimento da liberdade.

Nietzsche teria enxergado a moral dos escravos caracterizada pela disciplina e moderação das paixões e emoções fortes. A moral teria concebido as noções de pecado e culpa, de castigo como forma de limitar o desenvolvimento da vida.

A ética nietzschiana seria uma ética proposta por Aristóteles fundada nos desejos e na vontade de potência, tendo como modelo as virtudes guerreiras dos antigos gregos.

O questionamento da moral como elemento regulador da vida em sociedade foi fruto da reflexão nietzschiana

Também Freud reconheceu o caráter repressivo da moral, e questionando o elemento racional como elemento determinante da ação moral.

Mas Freud não indagou sobre a necessidade da moral como instância reguladora, pois sem ela a própria civilização humana estaria em grande risco.

Já para Karl Marx o homem não é nem essência e nem “recipiente” no qual o espírito se manifesta, o indivíduo é o ser social, enfatizando que a moral é uma produção social e atende a determinada pela demanda social.

As relações sociais se transformam ao longo da história e, com isso, transformam-se os indivíduos e as moralidades. Moral segundo Marx é uma forma de consciência própria a cada momento determinado do desenvolvimento da existência social.

Os valores não são absolutos e nem mesmo universais, mas têm um valor relativo às condições reais das quais se derivaram.

O conceito de liberdade segundo a modernidade reflete a existência de indivíduos numa sociabilidade que estimula a competitividade e a exacerbação da subjetividade como valores.

A moral seria uma das formas assumidas pela ideologia dominante em cada sociedade. Toda criança tem direito á educação, tal princípio ético e jurídico que se universalizou nas sociedade atuais. No entanto, o acesso à educação de boa qualidade permanece como um privilégio.

A primeira questão é o relativismo ético, não há base objetiva e universal sobre a qual se possa erguer um sistema moral único, válido para todos os homens.

A consciência moral humana é formada pelo conjunto de princípios e de valores herdados de cada cultura. Portanto, o conteúdo moral e ético varia no tempo e no espaço.

A Igreja medieval julgava moralmente correto queimar um homem vivo na fogueira por ele ter cometido atos que atentasse à fé cristã.

A moral é fruto de um padrão cultural vigente , a ética fica reduzida a ser apenas uma ótica.... Refletindo assim uma visão de mundo e criadora de laços e normas para vida social com certo grau de ordem e solidariedade.

A virtude estaria na tolerância, no respeito aos diferentes sistemas morais que entre si, admitam conviver pacificamente.

Ao contrário, existem filósofos que afirmam ser possível estabelecer um conjunto de valores objetivamente válidos para os seres humanos.

A ética objetiva se inspirar no conceito de natureza ou na condição humana. Enquanto para os pensadores cristãos “o homem é feita à semelhança de Deus” para Kant a natureza humana é essencialmente razão, e para Marx ou Sartre tal natureza humana não existe como um dado concreto e pronto e, sim, porque é construída socialmente.

A necessidade de valores universais, a moral não seria capaz de resolver os problemas sociais que geram a violência e as atrocidades, uma vez que tais problemas possuem origem na estrutura social da qual a moral é apenas uma forma da expressão.

A ética humanista baseia-se em valores válidos que devem orientar os desejos humanos. Bertrand Russel afirma que o grande fito da ética seria produzir desejos harmoniosos em vez de desejos discordantes, o que aumentaria o grau de felicidade.

Embora não seja tarefa fácil combater os medos irracionais, a todos os preconceitos elaborados pela ignorância e a dissolução dos fanatismos (políticos, religiosos).

O mundo e os homens deveriam ser objeto permanente de estudo científico. A ciência já reflete a busca incessante da uma verdade mais plena. A vida feliz, portanto conforme Russel, é aquela inspirada no amor e guiada pelo conhecimento.

Outra doutrina contemporânea que tenta responder a fundamentação de uma ética universal se partiu da análise da linguagem e tem em Jurgen Habermas um de seus maiores nomes.

A ética discursiva é fundamentada no diálogo, no consenso entre os sujeitos. É a razão que serve como última base para ação moral.

A razão em Habermas é a razão comunicativa que não está pronta e nem acabada mas se constrói a partir de um argumento que leva a um entendimento entre os indivíduos.

É uma razão interpessoal e não subjetiva. Define-se como uma razão processual. A ética discursiva é uma aposta na linguagem e na capacidade de entendimento entre as pessoas na busca de uma ética universal baseada em valores válidos e aceitos consensualmente.

Mas haverá condições para um diálogo livre e igualitário numa sociedade tão desigual? Esta é uma luta que ainda travamos...

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Fonte: propriedade intelectual da autora.

23/08/2004

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LEITE, Gisele. Peccatum. Jus Vigilantibus, Vitória, 23 ago. 2004. Disponível em: <http://jusvi.com/doutrinas_e_pecas/ver/2175>. Acesso em: 20 jun. 2007.

GiseleLeite
Enviado por GiseleLeite em 20/06/2007
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