“Mudar é a nossa essência, mesmo sabendo-se que a nossa essência não muda nunca. Nossa essência não muda nunca, para permitir que possamos mudar sempre, sem mudarmos a essência imutável de nós mesmos. A mudança na essência imutável tem que ver com esperança. Mudamos, porque acreditamos em algo diferente. Em algo diferente que só o tempo, aliado à possibilidade de mudança, permite-nos alcançar. A esperança é uma busca de mudança, o desejo inescapável da nossa imutável essência.”
No final de agosto (dia 28) a sentença do Doutor Fernando Antonio de Lima, Juiz de Direito da Comarca de Jales, no interior do Estado de São Paulo, foi proferida. Não era uma sentença comum.
Ao contrário da tendente banalização do dano moral, quando reconhecido, e da redução do indenizatório - porque, afinal, ou tudo não passa de mero dissabor ou o dinheiro não apagará jamais a dor daquele que a sofreu, ou, por último, pouco basta ao pobre para que se baste indenizado - o corajoso juiz, em sentença entremeada de citações (Guimarães Rosa, Paulo Freire, Machado de Assis), fundamenta sua decisão.
O Autor, que amargou mais de três horas para ser atendido na agência bancária – 3h02min -, teve a causa ganha. Ao final, foi determinado que se oficiasse ao Ministério Público, à Prefeitura e ao Procon.
Tudo porque o juiz, que é titular da Vara do Juizado Especial Cível e Criminal da Comarca de Jales, não se conforma com os repetidos casos de filas intermináveis e pouco caso que as instituições financeiras fazem de seus clientes e usuários. Não foram esquecidos os elevadíssimos lucros que as corporações contabilizam todos os anos, em detrimento do bem atender.
Se para alguns julgadores basta saber quanto ganha o que padeceu, para o Doutor Fernando Antonio importa quanto ganha quem prejudicou. A recomendação está prevista no Código de Defesa do Consumidor, embora passe muitas vezes ignorada.
A demora nas filas é situação tão cotidiana que o magistrado recomenda aos oficiados a pesquisa no banco de dados do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJSP), para que se instaure inquérito civil e o banco seja multado, pelas inúmeras vezes que a instituição "furta" o tempo do consumidor, bem precioso, analisado sob a ótica dos princípios constitucionais.
Suas vinte e uma laudas foram - e serão - motivo de crítica. Afinal, os Juizados Especiais norteiam-se pelos princípios da simplicidade e da oralidade.
Não basta, entretanto, ser sucinto. É preciso extirpar o mal pela raiz. É preciso reduzir o número de processos, reduzindo, também, se possível, o número de infrações. Como?
Utilizando os meios que o Estado coloca à disposição.
Não é uma sentença comum: é bela. Uma ode à vida, uma análise do tempo e de seus efeitos. Uma obra inatacável, excelente matéria para quem procura tema para monografia.
Não bastou ser bela: não há palavreado difícil: tanto a faxineira como o doutor compreendem cada termo, cada frase. Se é longa, não é enfadonha, nem peca pela verborragia: não há palavras vazias.
Irreprovável também o capricho de quem a redigiu. Ao copiar a sentença, o sistema suprimiu diversos “erres” e “esses”, “is” e “tes”, que corrigi (se alguma falha passou, a mim o descrédito, não ao autor). O original exibe português perfeito, irretocável.
Imagino-a fruto de muito pensar, de estudo dirigido em tese a ser defendida. Se assim é, ganham os jurisdicionados, que veem a aplicação da teoria à prática, o que é raro.
O comum é apartar o pensado em livros e palestras e aplicar, no que se julga, a jurisprudência dominante, sem a concretude desejada ao caso concreto.
O tempo como utilidade: é obra pensada e acabada: “Mudamos para manter imutável a nossa essência de aspirar constantemente à mudança. Essa aspiração inescapável de mudança precisa do tempo. Temos o direito ao tempo, assim como ao ar. Se perdermos o ar, perdemos a vida física. Se nos escapa o tempo, perdemos o intangível da nossa substância. O eu físico se perde com a falta de ar; o eu espiritual se perde com a falta do tempo. O tempo, essência do eu, que promete um ontem diverso do hoje e um hoje diferente do amanhã, vai com a liberdade, e com o amor, e com o afeto, e com o trabalho, e com a sobrevivência. O tempo vai com a essência de nós mesmos. Subtrair o tempo é tirar-nos a liberdade, o amor, o afeto, o trabalho, a sobrevivência. É tirar-nos a possibilidade de mudança, da mudança que nos diferencia de nós mesmos nas fases diversas e evolutivas da existência, nesse caminhar que nos descolore dos vícios e nos agrega novas virtudes. Quem nos subtrai o tempo, subtrai nossa essência imutável de mudança, nossa aspiração à esperança, nosso contato profundo com a vida e com as mais diversas manifestações que o amor nos provoca no manuseio do tempo. Sem tempo, não há amor, nem esperança, sem tempo não há vida em sua profundidade espiritual, em sua espiritualidade essencial.”
Se a sentença for confirmada - foi destaque no site do TJSP - e o exemplo deste juiz se multiplicar, eu e você veremos cumprida a determinação para que os bancos atendam os clientes - e não clientes - no tempo máximo de quinze ou vinte minutos, conforme determinado em lei.
É justo. E eficaz.
Pois em um país em que são necessárias leis de prioridade ao idoso e de tempo máximo em filas – e tais leis não são cumpridas nem exigido o seu cumprimento -, alguma coisa vai mal. Muito mal. Porque o dever-ser jamais chegará a ser.
Para ler a sentença, na íntegra, acesse: http://producaojuridica.blogspot.com.br/2014/09/fila-em-banco-e-causa-para-indenizacao.html?view=magazine
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Maria da Glória Perez Delgado Sanches