A prova testemunhal no processo administrativo disciplinar militar
1. Considerações iniciais
As forças militares são essenciais para a preservação do Estado de Direito. Possuem um conjunto de normas próprias, as quais são representadas no aspecto interno pelos denominados regulamentos disciplinares que buscam preservar os dois princípios essenciais da vida militar, a hierarquia e a disciplina. Os códigos disciplinares foram recepcionados pela vigente CF, mas qualquer modificação em suas normas somente pode ocorrer por meio de lei proveniente do Poder Legislativo (estadual ou federal).
Ao deixar o mundo civil, o futuro integrante das forças militares sabe que estará sujeito a um conjunto de normas diferenciadas das existentes na sociedade civil, mas isso em nenhum momento significa que a condição de cidadão terá sido abandonada, pois a CF a tutela mesmo que o administrado queira abrir mão dessa qualidade. A existência do Estado de Direito pressupõe em primeiro lugar o respeito ao texto constitucional que é a norma fundamental de qualquer Estado que tem como base a lei.
O militar que venha a praticar faltas disciplinares chamadas de transgressões deve ser punido, uma vez que a existência das garantias constitucionais não significa a defesa da impunidade, ao contrário, tem por objetivo legitimar o poder por meio da aplicação justa da lei. O abandono da autotutela, ou do uso da chibata, tem por objetivo fortalecer o Estado criado por meio de um sociedade livre e democrática.
A teoria geral do processo informa o processo penal, civil, trabalhista, e o processo administrativo, que foi judicializado em atendimento ao art. 5o, inciso LV, da CF. No Estado de São Paulo, a I-16 PM prevê expressamente a aplicação das normas do Código de Processo Civil e Código de Processo Penal ao processo administrativo. As normas administrativas por falta de um Código próprio necessitam de complementação na busca do efetivo exercício da ampla defesa e do contraditório, que pressupõem a igualdade entre a defesa e a acusação.
2. Ônus da Prova
Em decorrência do devido processo legal, o ônus da prova no processo administrativo pertence à administração pública e não ao acusado. O Estado-administração deve comprovar que o militar feriu o preceito previsto no regulamento disciplinar. Deve-se observar que este princípio ainda não é inteiramente aplicado na área do direito administrativo militar, pois alguns administradores, em desrespeito à Constituição Federal e à Convenção Americana de Direitos Humanos, invertem o princípio quase que obrigando o militar a comprovar a sua inocência.
O Estado, que é o titular do jus puniendi, por força do contrato social que afastou a auto-tutela, assumiu para si o direito de punir. Esse direito também existe na esfera administrativa militar que possui estreita relação com o direito penal. Mas, a existência dessa prerrogativa por parte do Estado impõe uma contraprestação, qual seja, demonstrar que o acusado efetivamente praticou o fato que lhe é imputado, sob pena de nulidade do ato praticado, inclusive com consequências no campo do direito civil.
É importante se observar, que ao contrário do que ocorre no direito penal, na esfera administrativa não existe a prevalência do princípio da imparcialidade para que se possa alcançar a efetiva aplicação da Justiça. Essa afirmação tem como fundamento o fato da mesma autoridade administrativa exercer a função de julgador e ser responsável pela colheita das provas durante a instrução probatória. Existem normas administrativas que invertem a obrigação do Estado de demonstrar a culpabilidade do acusado e transferem ao militar esta tarefa, o que é incompatível com as modificações introduzidas pela CF/88.
3. A Testemunha no Processo Administrativo
A testemunha, no processo administrativo militar, assim como ocorre no processo penal e civil, presta depoimento sob o compromisso de dizer a verdade, sob pena de praticar o crime de falso testemunho ou falsa perícia previsto no Código Penal. Além disso, a testemunha deve comparecer quando intimada sob pena de praticar o crime de desobediência (art. 330 do CP), uma vez que esta se encontra à disposição da Justiça, ou da Administração Pública.
No Estado de São Paulo, apesar dos protestos que vêm sendo apresentados pelos advogados junto às Seções de Justiça e Disciplina (SJD) da Polícia Militar, a I-16 PM determina que o acusado deve trazer as testemunhas de defesa que foram arroladas na defesa prévia, sob pena de perder a possibilidade de produção da prova. As testemunhas de acusação, ao contrário das testemunhas de defesa, serão intimadas, e se encontram sujeitas às penalidades previstas em lei, permitindo-se inclusive caso seja necessário que sejam conduzidas coercitivamente perante a Organização Policial Militar (OPM), após o deferimento da diligência pelo juiz Corregedor.
Os julgadores da administração pública policial militar devem pautar a sua atividade pelo princípio da imparcialidade, pois prestam esse juramento antes de analisarem qualquer causa, mesmo não sendo bacharéis em direito, na busca da efetiva aplicação da Justiça. Mas, no exercício dessa atividade, deve-se observar que qualquer testemunha antes de ser testemunha de acusação, ou de defesa, é testemunha do juízo, ou nos processos administrativos, testemunha da administração militar (federal ou estadual).
Em que pese a acusação recair no processo administrativo sobre a mesma pessoa que é responsável pelo julgamento, não se pode esquecer que se aplica ao direito administrativo disciplinar a teoria do processo, segundo a qual a acusação e a defesa encontram-se em posição de igualdade, não podendo existir cerceamento à ampla defesa e ao contraditório. Poderia se afirmar que não existe nenhuma contradição nas atividades desenvolvidas pela autoridade militar, pois esta delega seus poderes a um oficial para que este emita um parecer, o qual poderá ser acolhido ou não. Mas, não se pode esquecer que o parecer não deixa de ser um julgamento, e que a colheita de provas tem sido realizada em desrespeito ao princípio da igualdade entre as partes.
A norma existente na I-16, que determina que o acusado apresente as testemunhas de defesa para serem ouvidas, fere expressamente o direito de igualdade entre as partes e traz prejuízos para o militar. As pessoas em regra não gostam de serem testemunhas por vários motivos, entre eles, o medo de sofrerem alguma represália. A testemunha somente comparece em juízo quando devidamente intimada, e em alguns casos costuma faltar quando da primeira intimação. Além disso, existem funcionários públicos que somente podem prestar depoimento quando devidamente requisitados.
A imposição da administração pública estadual ao acusado do dever de apresentar as testemunhas de defesa sob pena de preclusão da prova, com base em uma norma administrativa é inconstitucional, e deve ser afastada, sob pena de se estar cerceando o direito a ampla defesa e ao contraditório.
4. Considerações Finais
As normas jurídicas existem para serem cumpridas, e quem viola a lei ou os preceitos de uma corporação deve ser punido, para se evitar a impunidade e a crença de que o Estado Democrático de Direito permite a prevalência do desrespeito à lei. Com o abandono da auto-tutela, para que alguém possa ser punido é necessário a existência de um processo, onde deve ser assegurado o devido processo legal, sem o qual ninguém perderá os seus bens ou a sua liberdade.
A punição, segundo os regulamentos militares (federal ou estadual), existe para que o punido possa aprender a respeitar a hierarquia e a disciplina, e não mais volte a transgredir os preceitos da vida castrense. Mas, a busca da punição deve estar pautada pelo respeito aos princípios consagrados no capítulo dos direitos e garantias fundamentais do cidadão previstos no art. 5o, da CF.
A imposição pela administração pública militar da apresentação das testemunhas que foram arroladas pela defesa no momento oportuno pelo acusado viola o princípio da igualdade entre as partes e o devido processo legal, ocasionando um ônus que prejudica o servidor público acusado de ter violado um preceito constante do regulamento disciplinar.
A administração pública possui o jus puniendi para punir os seus integrantes, mas esse direito impõe como obrigação o ônus da prova, o qual não pertence ao acusado. O militar somente estará obrigado a demonstrar os fatos alegados em sua defesa quando invocar uma das excludentes de ilicitude (legítima defesa, estrito cumprimento do dever legal e exercício regular de direito).
Portanto, a imposição pela administração pública da obrigação do acusado ter de apresentar as testemunhas de defesa para sua oitiva sob pena de preclusão da prova fere o disposto no art. 5o, inciso LV, da CF. O acusado no exercício de sua ampla defesa poderá propor mandado de segurança com fundamento no art. 5o, inciso XXXV, da CF, para que a autoridade judiciária determine à administração pública militar a intimação das testemunhas e a realização da prova, sob pena do não cumprimento da ordem judicial configurar desobediência sujeitando o administrador as consequências legais.
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