Violência do Estado moderno

O exercício da violência estatal, originada com a prévia aquisição da soberania, legitima-se por ser uma violência justa e, portanto, bastante diferente da violência banal e recíproca de cada um, porque está baseada na lei que o próprio Estado edita.


Em suma, o homem resigna-se, por medo a outros homens, sua soberania e a isso se denomina "humanismo ". Busca proteção em alguém por medo de outros homens e assim o medo é constitutivo do social, do que se denomina "sociedade", que na verdade é uma ordem social.


Nietzsche afirmou que: "somente a partir da lei, ou melhor, da instância da verdadeira potência, desse artifício da modernidade, pode se dar a diferença entre a justiça (acordo com a lei) e injustiça (desacordo com a lei): a Lei impõe-se sobre o Direito".


E a imposição do poder da lei sobre o Direito instala a necessidade da ficção, de imaginar uma separação entre paixões ou interesses particulares do poder soberano, em atribuir-lhe uma diferença em relação às partes que o compõe (os indivíduos, seus interesses, suas paixões, suas violências).


A resolução desse problema tem passado e realmente passa pela retórica, pela aceitação da necessidade de uma forte retórica, pelo apelo às finalidades, metas e autoridades sagradas; a Nação, o povo, a pátria, a moral, o partido, a classe operária, a defesa da sociedade.


E, então mais uma vez, Nietzsche, em “A genealogia da moral”, aduziu: "todas as finalidades, todas as utilidades são somente indícios de que uma vontade poder se apoderou de algo, que impôs seu domínio sobre uma coisa menos poderosa e, sobre a base de seu arbítrio ou vontade, imprimiu-lhe o sentido de uma função. (...)”.


Um questionamento é inescapável: como então, não associar, a vontade de poder com a manutenção da ordem social por meio da política penal?


As ideias de Hobbes tanto no Leviatã como no De Cive podem ser interpretadas como resposta à ameaça do individualismo possibilitada por uma de suas bases materiais que aparece no século XV: a invenção da imprensa.


A imprensa possibilitou de maneira ampliada a tradução e a leitura da Bíblia em diferentes idiomas tornando-a acessível fora do latim, monopolizado pelos monges.


Isso acelerou o processo de individualização e traz como consequência o advento da igreja invisível produzida pela difusão das obras e panfletos de Lutero e das ideais da Reforma, abrindo a possibilidade de uma bíblia aberta e sujeita a interpretações e argumentações particulares de cada leitor.


Esse fenômeno produz uma revolução na vida cotidiana possibilitada pelo livro e pela sua circulação social, que se soma à indústria e à progressiva aceitação do progresso e do produtivismo da economia de mercado.


Uma expressão limite desse encadeamento de fenômenos sociais foram as guerras campesinas, em especial na Alemanha.


Baseado nesse princípio estrutural deve-se considerar que em apenas dois séculos, sob os nomes de Giordano Bruno, Francisco Sanchez, Galileu, Hobbes, Descartes, Maquiavel, Copérnico, Spinoza, Locke, Leibniz, Newton, Kepler, Bacon, Colombo, difundiu-se um forte radicalismo epistemológico que passa a compor o clima cultural e anuncia o declínio da religião ou da moral para orientar as ações humanas.


A partir desse momento acelera-se a grande transformação social produzida pelo crescente aumento da mercantilização das relações sociais que eram antes majoritariamente guiadas pelas tradições ou pelos costumes, e cujo eixo estava colocado na vida rural ou campesina.


Paradoxalmente o problema da nova ordem social é o que aborda Hobbes em suas reflexões.


As concepções cristãs de céu e de um só deus (monoteísmo) ajudaram a fortalecer a ideia de Estado soberano, concepção esta bastante distinta do Olimpo dos gregos.


O Olimpo não era nenhum modelo de sociedade a imitar, mas o espaço dos desejos e paixões dos seres humanos, representado por vários e distintos deuses.


Aliás, o monoteísmo das religiões modernas, Deus ou Allah, contribuiu e contribuem ainda hoje para a forma de dominação estatal e/ou patriarcal e/ou masculina.


A luxúria, o hedonismo, o amor e o ódio, o prazer e a dor, a ira e a beleza, a fúria e a bondade eram encarnados por diferentes deuses que conviviam e interagiam com malícia, fraudes, rancores, ciúmes doentios e violência.



Em resumo, um Olimpo formado por deuses, de carne e osso, com ódios e bondades, com razões e paixões, com luxúria e ascetismo.




Já o cristianismo colocou no céu um ser perfeito com o qual o homem não pode se comparar, um deus único, Todo Poderoso, tal como o proclamara Moisés com o monoteísmo cristão.



Logo Hobbes importa a terra esse monoteísmo encarnado em um ser supremo, o Leviatã, a quem se deve obediência total, ponto essencial para o processo de secularização e para o monopólio do poder ou dos poderes por parte do Estado.


Recordemos que para o Hobbes o Estado é um ser sem interesses, sem paixões, um ser artificial, despersonalizado, guiado pela razão e pelo bem comum - um Deus todo poderoso. E, assim, o erotismo religioso do mundo teológico transporta-se para o secular, para o príncipe, para o rei e para o Estado, mas paradoxalmente, um Estado sem príncipe e sem rei, uma impessoalidade.


Hobbes, como vimos, aponta que a fundação do Estado se dá de duas maneiras: por instituição ou por aquisição (por conquista) e, em ambos os casos, quem assim o funda e o aceita o faz por medo: o medo que é produzido pela vulnerabilidade e pela insegurança.


Decifrar nos atos ilegais a diferença entre violar a propriedade e violar o direito de propriedade pode nos dar uma dimensão da batalha pela ordem social que se desenvolve no seio da sociedade.


Cabe aqui um lúcido esclarecimento: a sociedade ou a ordem social não se perturba pelos grandes crimes que comovem a opinião pública, mas sim por aquelas condutas ilegais que têm a capacidade de se reproduzir, de se estender, de ser imitadas e de se generalizar. Michel Foucault diz que nas pequenas ilegalidades é que se joga a batalha pela ordem social.



O ditado da lei implica a necessidade de encontrar remédios para a ausência de virtude. A lei invoca a existência do delito. Cogitar da necessidade de justiça é cogitar sobre a injustiça; falar da necessidade de igualdade e falar da desigualdade; falar da necessidade da lei é falar do delito; falar da necessidade da ordem é falar da ameaça da desordem ou da própria desordem.


Com o aparecimento da sociedade moderna, com a consequente dissolução das relações feudais, a secularização da autoridade e o desenvolvimento das sociedades industriais, a definição de delito e a justificação para o poder de castigar necessitam de outro modelo de legitimação, distinto daquele que pressupunha a existência de seres reconhecidos como socialmente desiguais: senhores, vassalos, nobres e plebeus.


Os exemplos dessa nova definição estavam ao alcance de quem refletia sobre a diminuição da importância da religião para a sociedade, já que é indubitável que o direito penal, em sua origem, era essencialmente religioso.


Até o advento da modernidade, funcionara como cimento da estrutura social. Assim, os delitos religiosos tão severamente punidos nas sociedades antigas, como a blasfêmia ou o sacrilégio, passaram a serem condutas não castigadas ou não contempladas nos códigos penais dos novos Estados que se secularizaram a relação entre soberanos e súditos.


Em evolução das leis penais, Émile Durkheim ao considerar as mudanças produzidas nos últimos séculos, afirma que o crime se reduz progressivamente somente para as ofensas contra as pessoas; enquanto que as formas religiosas de criminalidade declinam, resulta inevitável que a força (violência) por meio do castigo se torne mais frágil, já que os sentimentos coletivos de religiosidade que eram a base do sistema penal nas sociedades pré-modernas têm diminuído.


Ao descrever a evolução das formas do castigo penal Durkheim distingue uma criminalidade religiosa, ligada às sociedades pré-modernas e baseadas na solidariedade mecânica, e uma criminalidade posterior ou moderna a que reserva o nome de criminalidade humana.


O papel da religiosidade nos povos primitivos implicava que a criminalidade consistia quase unicamente em não cumprir com o culto, em violar as proibições rituais, em separar-se dos costumes dos velhos, em desobedecer à autoridade, onde estava fortemente constituída.


Nas sociedades modernas (as europeias da época) o crime consiste essencialmente na lesão de qualquer interesse humano. Essas duas formas de criminalidade diferem profundamente porque os sentimentos coletivos que ofendem não são da mesma natureza.


Durkheim concluiu que quanto mais se consideravam certos seres, bens ou valores superiores à natureza humana, mais se considerava qualquer transgressão uma violação ao sagrado, e o castigo em sua crueldade, e em sua publicidade cumpria una função simbolicamente reparadora da autoridade violada, que é desconhecida pela concepção de delito.


De todas as maneiras também cabe ressaltar que se os deuses religiosos na sociedade moderna recebem uma menor proteção da lei, a ordem social instalou outros deuses seculares, como a pátria, a nação e o Estado.


Contudo é um tanto singular que o enfoque de Durkheim sobre a evolução das leis penais se concentre na mudança de concepção do que se considera um delito ou crime .


De fato, o relativismo geográfico e/ou social-temporal que implica numa diferente concepção de crime, demonstra ser insuficiente para explicar a mudança na política penal que aconteceu com o advento da modernidade, essa nova ordem social que fora capitaneada pela burguesia e a economia de mercado nos finais do século XVIII.


A esse respeito, a hipótese de Michel Foucault de explicar as mudanças na politica penal em função da passagem das sociedades de soberania para as sociedades disciplinares me parece uma explicação muito mais sólida do que a simples secularização da sociedade, conforme assinala Durkheim.


Creio que Durkheim se move em um esquema que considera a punição como dada automaticamente pela consciência coletiva, enquanto Foucault assinala que, na verdade, a punição está subordinada à política penal, sendo uma das ferramentas que sustentam a ordem social, como outras (a tolerância, a ocultação ou a participação por parte do poder em atos ilegais).


Que outra é a apelação à razão de Estado, ou ainda, ao estado de exceção que tem se tornado forma permanente de governo.


A nova ordem instaurada pela modernidade não persegue o delito ou alguns delitos, por ser um delito, mas sim para construir uma ordem disciplinar e para que esta ordem seja interiorizada por toda sociedade. Não outra coisa quer dizer Foucault quando afirma que no início da sociedade moderna não se tratava de punir, mas punir melhor, o que significa que o poder de punir deveria ser aceito por um novo subjugado, o povo como sujeitado moral.


Assim, paradoxalmente, se pode dizer que o poder de punir foi transferido para a sociedade que, em conjunto, deve refutar a delinquência que sempre existe como tentação perigosa.


A exemplificação que nos traz Foucault sobre a crueldade do suplício público imposto ao regicida Damiens e seu progressivo declínio, já que substituído pelos regulamentos da fábrica-internato-manicômio-prisão, cinquenta anos depois, indica de que se trata a constituição de nova ordem social. A punição aparece como residual expressão da moralidade. O mesmo sentido adquire o desaparecimento da cadeia de forçados em meados do século XIX.


As mudanças no sistema criminal a partir do renascimento podem dar outra pista para entender a complexidade da violência estatal, embora se possa aceitar que, de maneira geral, esta tenha provocada mudança na concepção social do que seja delito.


Segundo Michel Foucault a lei seria a suave interioridade da consciência... Portanto a existência da lei lembra o que está externo a nós. E não somente a obrigação que temos de aceitar a lei, mas a ameaça que existe de sermos punidos em caso de seu não cumprimento. mas se isso parece uma resposta simples ao esquema delito-pena, tanto como antes fora pecado-penitência, isso não é real.


A penalidade é antes de tudo uma maneira de reprimir os delitos , é fenômeno social complexo que não pode ser plenamente explicado pelo Direito ou pela ética.


Já que o sistema jurídico moderno não é produto de progresso racional e nem resultado da filosofia humanista, mas produto de certas relações de força que se resolvem de maneira violenta, em cenários de guerras, e na produção de poder.


A mudança na natureza do poder de punir particularmente a partir do século XIV que deixou de responder a uma ordem religiosa ou teológica e passou a responder a uma ordem secular e profana, produto da derrota militar do poder cristianismo católico.


A lei não é inerente ao que é justo, e o justo não é dado pela revelação. A partir desse momento, e progressivamente, o conceito de justiça advém somente da aplicação da lei.


A mudança na natureza da ordem social que vai de justificações éticas ou morais para o direito ou lei como uma necessidade para a convivência. Essa noção desenvolve-se em paralelo à perda progressiva da importância do pecado para a ordem social que vai sendo suplantada pela noção de delito descrito na lei e que responde à necessidade de previsibilidade frente as interpretações religiosas ou morais das condutas humanas.


O confisco ou a expropriação gradual do poder de punir por um terceiro que tenha maior poder, que monopoliza o poder: na verdade, um guerreiro triunfante que se institucionaliza transformado em governo-Estado e que monopoliza a coerção, a legislação e a tributação.


A grande mudança no sistema de justiça penal ocorrida ao final do século XVIII particularmente na redução dos castigos públicos suplicantes (necessários nas sociedades de soberania) e a generalização da prisão (peculiar da sociedade disciplinar).


A perda do poder de julgar e punir por parte de órgãos estatais especiais, fato que acompanha o processo crescente da codificação geral, a adoção de tribunais letrados, a ideia do caráter corretivo da pena e, com isso a construção de uma nova subjetividade que seria a alma da lei.


Resumindo, com o advento da sociedade disciplinar a ênfase não está tanto no julgar para punir uma ilegalidade, mas algo diferente: no desvendar o significado individual e social do crime, saber o que esse delito, que causalidade pode tê-lo produzido, que racionalidade o anima, que medida apropriada que se deve tomar.


Enfim, outra verdade deve ser revelada, já que o ato de julgar e punir corresponde a um complexo enigma científico-jurídico que requer a revelação de outra verdade, além da jurídica, não tanto por um imperativo moral, mas para preservar a ordem social.


Atentar contra a propriedade e atentar contra o direito de propriedade possuem significados qualitativamente diferentes para a ordem social e, portanto, também para a política penal.


Por isso, a ordem social requer uma racionalidade penal guiada pela política e não pela moral, ainda que a invoque.


A expropriação do poder de punir pelo Estado não é então uma humanização da ação de punir, é um ato de poder (somente pune quem tem poder sobre outro que não o tem).


Esse ato recorda a todos quem detém o poder, por isso o poder-lei protege o infrator da vingança da vítima, só que não o faz para protegê-lo, e sim, para assinalar a mensagem de que o poder e o poder
de castigar pertencem somente ao Estado.


A lógica penal tem sido historicamente acompanhada de liturgia de solenidade, de ritual hierarquizante e que outorga distância entre os litigantes, o que é acompanhado pelo imaginário coletivo acerca de um inimigo social sobre o qual toda a sociedade exige que se puna.


Essa transferência para a sociedade do ardor da punição, e a legitimidade da punição, é um objetivo que está sempre à mão, embora inalcançável de maneira definitiva: continuamente o poder tem de alimentar, abonar e justificar sua política criminal porque a interpretação geral ou do bem comum presente nesse imaginário contém também desejos de equidade, igualdade e de felicidade.


Para que uma sociedade existe e se sustenta, para que possa assegurar o mínimo de coesão e até de consenso, é imprescindível que os agentes sociais creiam na superioridade do fato social sobre o fato individual, que tenham uma consciência coletiva, um sistema de crenças e práticas que os una em uma mesma comunidade, instância moral suprema a todos que adere a esta.


Existe uma conexão íntima e inevitável entre o comportamento e a representação coletiva. A relação entre justiça e punição é complexa porque precisamos nos separar dos ideais moralistas para desvelar a realidade do continuum ordem social-justiça-política judicial.


Os rituais não somente expressam emoções, mas suscitam e organizam seu conteúdo, proporcionam uma espécie de teatro didático por meio do qual se ensino ao espectador o que sentir, como reagir e quais sentimentos exibir nessa situação.


Os rituais de justiça penal são cerimoniais que mediante a manipulação da emoção despertam compromissos de valor específico nos participantes e no público e atuam como uma educação sentimental gerando e regenerando uma mentalidade concreta.


Aqueles cerimoniais suplicantes das sociedades pré-modernas nas quais o ritual invocava a lei deixaram de ser funcionais na sociedade disciplinar, como analisou Foucault acerca da cadeia de forçados.


Mas o ritual do poder, o cerimonial e sua liturgia mantiveram-se e se mantêm sob outras formas e sob outras justificações: já não é a pessoa do soberano agredido que reclama o castigo e aplicação da lei, mas sim toda a sociedade, que se sente imolada e agredida pela violação do pacto social e reclama a punição por meio de seu representante: o poder judicial, mas guiado pela preservação da ordem social em vez da lei.


A importância do sistema judiciário na sociedade moderna vai além da manutenção e reprodução da ordem social, sendo também um aspecto residual do controle social, já que a ética do trabalho se tornou supérflua.


E, como diriam criminalistas, o Direito judicial se deve usar como o último recurso, nos casos em que todas as outras formas de controle forem insuficientes para manter a ordem.


Vale a paródia que diz sobre a punição: a ordem não é perturbada por crimes comuns. Mesmos os crimes mais bárbaros, com dezenas de vítimas e feridos, como foram, o atentado às torres gêmeas não perturbam a ordem social.


Pelo contrário, o pretenso ataque à ordem social que produzem tais delitos e a resposta quase sempre só retórica por parte do Estado mina de outras formas de organização, outras formas de construção de subjetividade, não terminantemente submetidas aos valores da sociedade moderna, e reforçam a ordem e a segurança, (a lei e a ordem ) que exige o imaginário coletivo comovido por esse fato.


Essa mesma subjetividade construída pelos medos e insegurança que produz o mercado, cada vez mais globalizado, numa sociedade de consumo, é a base que legitima socialmente a política judicial dirigida aos pobres, aos fracos, hipossuficientes, aos excluídos, como se fossem eles que produzissem os medos e as inseguranças.


O mercado tem como paralelo um Estado encarcerador, que enche as prisões com aqueles "imprestáveis" que a ordem socioeconômica produziu.


Ironicamente explicou Zygmunt Bauman sobre a política penal na sociedade moderna: "Na atualidade, os pobres são antes de tudo "não consumidores", já não desempregados. O mundo seria tão agradável sem eles! Não necessitamos dos pobres: por isso não os queremos. Eles podem ser abandonados a seu destino sem o menor ressentimento”.


A legitimidade da política criminal da atualidade está em tornar mais e mais invisíveis os pobres que são reduzidos e confinados em guetos (cortiços, favelas, comunidades, bairros) ou prisões: "Ao mesmo tempo, a obediência à norma e a disciplina social ficam asseguradas pela sedução dos bens de consumo mais do que pela coerção do Estado e das instituições panópticas”.


Observemos o pensamento clássico sobre o direito de punir desenvolvido por Cesare Beccaría De los delitos y las penas.


Ao argumentar fortemente contra os suplícios e certas punições, em especial a pena de morte, Beccaría não vacila em sustentar uma visão da ordem social como o bem máximo a tutelar.


A pena de morte não é um direito, e como tenho demonstrado não pode sê-lo, o é somente na guerra de uma nação contra um cidadão, por julgar útil ou necessária a destruição de seu ser.


Beccaría justificava a aplicação do castigo máximo, a pena de morte, somente quando está em jogo o poder, quando ainda privado de liberdade tenha tais relações e tal poder que interesse à segurança da nação.


Os delitos chamados comuns não ameaçam o poder, simplesmente o violam como produto de alguma paixão momentânea ou alguma irracionalidade, ou ainda, por alguma patologia ou pulsão extrema.


Parafraseando Hobbes, os homens perigosos são aqueles que depreciam as leis e não tanto aqueles que as violam.


A periculosidade na modernidade influi certamente na política de punição, se refere às variáveis necessidades da ordem social, e por isso também às mutáveis formas de controle social.


É o que Michel Foucault assinalou como a passagem das sociedades de soberania para as sociedades disciplinares, não por uma questão evolutiva da humanidade, mas pelas necessidades estruturais da nova divisão social do trabalho e do mercado.


O trabalho precisou ser submetido ao mercado e isso requereu uma política de punição dos pobres que adquiriu formas extremamente cruéis, não tanto para castigá-los, mas para discipliná-los, claro que não economizando na crueldade. Isso significa que já não era possível nenhuma alteridade à sociedade de mercado e ao lugar que o trabalho assalariado ocupava nela.


A sociedade moderna secularizada requer uma teologia racional. A gestão da insegurança funciona como ferramenta de controle social. E a insegurança é produzida pela saída do Estado do Welfare, aquele Estado paternalista que pretendia reduzir os excessos cruéis do mercado autorregulado que produz a concentração da propriedade e das politicas econômicas em mãos das grandes corporações transnacionais.



A necessidade do Leviatã reaparece porque o problema da ordem é a insegurança, o que nos remete para um Estado frágil. O paradoxo disto é que a reivindicação da sociedade não é direcionada à fraqueza do Estado frente às forças sociais do mercado, mas para que se resolvam ou se reduzam os delitos interpessoais (comuns) que produzem uma sensação de insegurança.


“Fora do Estado (da civitas) os homens não têm mais que suas próprias forças para se proteger (...) Fora da sociedade civil reinam as paixões, a guerra, a pobreza, o medo, a solidão, a miséria, a barbárie, a ignorância e a crueldade. Na ordem que impõe o Estado a razão, a paz, as riquezas, a decência, a elegância, as ciências e a tranquilidade reinam em todas a parte”. (in Hobbes).


A violência no Estado moderno é banalizada, diuturna e reina quase absoluta apesar de todo arsenal legislativo e, toda consciência moral que institui uma competitividade permanente entre os indivíduos.


A expressão monopólio da violência, em alemão Gewaltmonopol des Staates refere-se à definição de Estado proposta por Weber e que se tornou clássica para o pensamento político ocidental, atribui-se o monopólio do uso legítimo da força física dentro de um determinado território, possui o monopólio da coerção.


Portanto, a única entidade que é o Estado tem legitimidade para exercer a autoridade, com o uso da violência, sobre determinado território. Esse é um dos princípios de todos os Estados modernos, sendo soberano por exercer o monopólio do uso da força legítima. Mas, é o Estado que tem essa competência, considerado como máquina institucional e não dos outros agentes da sociedade.


A ascensão do Estado Moderno como Estado liberal corresponde ao predomínio político da burguesia e sua formação se estendeu durante alguns séculos e compreende como causa uma série de fenômenos históricos como a Revolução Industrial e movimentos como o Iluminismo.


Uma das principais características estritamente liberal do Estado moderno é aprofundamento da distinção entre a esfera pública e a esfera privada da vida social. Os chamados direitos do homem correspondem à cristalização das conquistas democráticas da fase de ascensão política da burguesia e produziram a garantia à liberdade, a opinião e a propriedade. No entanto, a cidadania do Estado liberal se apresentou insuficiente para o mundo que a burguesia construía.


O Estado do bem estar teve seu principal período histórico após a Segunda Guerra Mundial. Alguns países, principalmente na Europa, criaram um rede de serviço para a sua população que permitiu uma sensível melhoria para todas as classes sociais.


Mas a principal característica do Estado moderno é a concentração dos meios de violência no Estado. Mas essa característica não implica na ausência da violência entre seus habitantes. Significaria que apenas o Estado é ente legitimado a exercer a violência, ou seja, de acordo com a lei, mas, restam outras questões: como o que acontecerá à violência que não será punida, e, afinal, quem puniria o Estado?



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Enviado por GiseleLeite em 23/06/2014
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