A ética trágica de Nietzsche ou mecânica do ressentimento
As passagens textuais das obras nietzschianas se dedicaram em considerações sobre a psicologia do ressentimento em favor de uma reflexão filosófica sobre tal disposição psíquica que tanto influenciou os caminhos axiológicos e morais de nossa civilização.
Interpretar Nietzsche é fundamental para afinal entender a história cultural do ocidente e a sua decadência que reside exatamente no ressentimento presente no indivíduo e o que o torna incapaz de criar valores afirmativos de existência.
Ao sofrer uma ofensa, tal indivíduo desenvolve em seu íntimo o anseio por uma reparação imaginária motivada pelo sentimento de vingança.
O ser ressentido sofre de enfraquecimento da vitalidade e perde qualquer vínculo efetivo com a realidade. A censurada “moral de escravos” assim chamada por Nietzsche que prevaleceu ao longo de nossa civilização que subjuga a moral nobre que é adepta de valores afirmativos de existência.
A moral cristã seria responsável pela inversão de valores ativos, depreciando e os tornando decadentes. O ressentimento como tema é questão principal da filosofia de Nietzsche, e é crucial para o entendimento do pensamento que o expõe na cultura ocidental e sua respectiva influência nas valorações morais.
O ressentimento muito influenciou os rumos axiológicos e morais bem como os mecanismos psicofisiológicos que o filósofo propôs como possíveis recursos para que as forças vitais e criativas que sobressaiam sobre as disposições decadentes da existência.
O ressentimento, em suma, é o estado psíquico de maior expressão da decadência da vitalidade humana denunciada pelo filósofo alemão em sua obra “Genealogia da Moral” .
Uma breve análise semântica da palavra ressentimento é ideal para se identificar que provém do verbo ressentir, significando o ato de sentir novamente, certa impressão motivada por um estímulo externo violento na afetividade pessoal.
É uma experiência psíquica gerada por força externa. Tal impressão pode ser reativa ou negativa em nossa afetividade, por vez debilitando nosso psiquismo por conta de espécie de entorpecimento das capacidades criativas pessoais, posto que ocorra certo envenenamento psicológico.
O ressentimento decorre da incapacidade de interagir adequadamente com os signos da diferença, com os antagonismos, de maneira que, quando marcados por esse transtorno, e assim tendemos a transferir a responsabilidade de um acontecimento para determinada causa externa, tomada simbolicamente como culpada pela nossa fraqueza e por nosso mal-estar afetivo.
O ressentido atribui a outrem a responsabilidade pelo que o faz sofrer, a quem delega momento anterior o poder de decisão, de modo a poder culpá-lo caso venha fracassar.
O ressentimento é uma doença que se origina do retorno dos desejos vingativos sobre o “eu”. É a fermentação da crueldade adiada, transmutada em valores positivos, que envenena e intoxica a alma, que fica eternamente condenada ao não esquecimento (In: KEHL, Maria Rita. Ressentimento. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2004, p. 93-94).
O ressentido não é capaz de agir afirmativamente mediante efeito externo sofrido, assimilando positivamente essa experiência, direcionando sua abertura pessoal.
Dessa forma, o ressentimento motiva a inação, a interiorização psicológica desse indivíduo que cada vez está menos disposto a expandir sua força vital através da participação em circunstâncias que exigem o dispêndio de energias intrínsecas.
Nesse sentido, Nietzsche destacou: “Todos os instintos que não se descarregam para fora, voltam-se para dentro, isto é, o que é chamado de interiorização do homem: é assim que no homem cresce o que depois se denomina alma”.
Todo o mundo interior, originalmente delgado, como que entre duas membranas, foi se expandindo se estendendo, adquirindo profundidade, largura e altura na medida em que o homem foi inibido em sua descarga para fora. (In: NIETZSCHE, F. Genealogia da Moral. Uma polêmica: Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2000, p.73).
Nietzsche desenvolveu a hipótese de coexistência de dois tipos básicos de valoração da vida ao longo da formação histórica da civilização ocidental: a “moral dos senhores” e a “moral dos escravos” no § 260 de “Além do bem e mal” .
Entre as muitas morais (desde as mais finas até as mais grosserias) que dominaram e continuam dominando encontramos traços que regularmente retornam juntos e ligados entre si: até que finalmente se revelaram dois tipos básicos e, uma diferença sobressaiu: há uma moral de senhores e uma moral de escravos. (NIETZSCHE, F., Além do bem e do mal. Prelúdio a uma Filosofia do Futuro. Trad. de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 1999, p.172).
Antes de tudo, é imprescindível esclarecemos que os termos “senhor” e “escravo” na filosofia de Nietzsche, não se referem necessariamente delimitados concretamente e definidos dentro da tônica da filosofia trágica nietzschiana.
“Senhor e escravo” não são definições axiológicas que se esgotam numa significação de cunho social e representam estamentos antagônicos que se confrontariam no decorrer do processo histórico tendo por finalidade e preponderância de uma classe sobre a outra.
Na perspectiva nietzschiana pode haver perfeitamente haver pessoas socialmente desfavorecidas com muito mais disposições “nobres”.
Um escravo propriamente dito, livre do ressentimento e do seu inerente mal-estar psíquico, é uma pessoa mais “nobre” e digna eticamente do que seu opressor social, que é oprimido, todavia, pela incontinência das suas inclinações pessoais e dos seus afetos tortuosos.
Portanto, tais valorações se referem ao modo com um dado indivíduo desenvolve ao longo de sua vida o fluxo de seu ímpeto criativo, mediante as interações com outros corpos.
Nobre e escravo são símbolos psicológicos que representam as disposições afetivas e axiológicas de uma pessoa perante o seu modo de agir cotidianamente em suas interações com o mundo circundante.
Nessas condições, uma pessoa manifesta uma qualidade “nobre” pela sua capacidade de fazer prevalecer na sua existência os afetos que favorecem a ampliação de sua força vital, de sua vontade requalificando os afetos decadentes (ódios, raiva, medo e, etc.) em afetos psicofisiologicamente saudáveis que estimulam a superação dos limites da vitalidade do seu corpo.
Já a tipologia “escrava” por sua vez, representaria a disposição psicológica de um indivíduo que deixa prevalecer na sua vida os afetos decadentes, que impedem uma compreensão positiva da existência (que é pautada na afirmação da potência criativa).
Dessa forma, a valoração “escrava” motiva a repressão da vitalidade fisiológica, fato que mitiga a capacidade do indivíduo para agir criativamente ao longo de sua existência, vilipendiando então tudo aquilo que coadune com os aspectos da saúde e da força como estados deploráveis do ponto de vista da consciência moral. As ideias de “nobre” e “escravo” em Nietzsche se antagonizam.
O ressentimento não se pauta em relações dualistas de forças vitais, como se houvesse uma personalidade que pudesse ser denominada como “forte ou fraca”.
O tipo psicológico considerado “forte” ou “nobre” quando consegue prevalecer as suas valorações ativas sobre as reativas e decadentes essa circunstância que denota a confluência das duas disposições vitais no seu organismo já a tipologia da “fraqueza” denota a predominância das valorações depressivas e as reativas sobre as forças fortes, criativas, expansivas e assimiladoras, motivando assim o empobrecimento da capacidade interativa daquele que é afetado por tal disposição.
A moral dos senhores e a moral dos escravos são diametralmente opostas principalmente sobre as condutas pelos quais os seus respectivos enfoques axiológicos sobre a complexidade das relações das suas forças vitais.
A rebelião escrava na moral começa quando o próprio ressentimento se torna criador e gera valores; o ressentimento dos seres aos quais é negada a verdadeira reação, a dos atos, e que apenas por uma vingança imaginária obtêm reparação.
Enquanto toda a moral nobre nasce de um triunfo, já a moral escrava refere-se a um “não-eu” e, este não é seu ato criador.
A inversão do olhar que estabelece valores, é necessário dirigir-se para fora, em vez de voltar-se para si, é algo próprio do ressentimento.
A moral escrava enfim requer sempre, um nascer um mundo oposto e exterior, para poder agir em absoluto (sua ação é no fundo reação).
Mesmo o nobre valorativo contém em seu psiquismo elementos fracos enquanto que o tipo escravo, ressentido, também pode conter disposições afetivas e axiológicas mais potentes somente não conseguindo dar vazão ao quantum de forças vitais que estão concentradas no seu âmago.
A fisiologia na ótica nietzschiana é fornecida a definição por Wilson Frezzatti Junior tida como a configuração de impulsos , em luz por potência. A única atividade do ressentido consiste em relembrar continuamente os seus afetos, que retornam, nalgumas vezes, numa intensidade ainda mais poderosa do que o afeto original.
A manifestação do ressentimento nas valorações da civilização ocidental seria uma das principais evidências de sua decadência criativa.
Tal declínio vital se caracteriza pela incapacidade do indivíduo ressentido se desvencilhar das impressões afetivas avaliadas como ruins que estão registradas dolorosamente na sua estrutura psicofisiológica. Mais ainda devido ao caráter de passividade peculiar do tipo ressentido, e as recordações ruins tornam a aflorar na sua mente continuamente, motivando a degenerescência de suas forças vitais, uma vez que é abalada a estabilidade da estrutura psíquica, pois que nesse ato de lembrar novamente as vivências passadas, o indivíduo consome vorazmente a sua força vital.
Nessas condições, o ressentido perde a capacidade plástica de criar o novo, tornando-se, por conseguinte, um indivíduo decadente existencialmente, destituído de sua vitalidade intrínseca.
A principal atividade do ressentido se reduz a mórbida rememoração de vivências dolorosas. O ressentimento nascido da fraqueza não é prejudicial a ninguém mais que ao próprio fraco.
O ressentimento em sua forma mais potente na história da cultura ocidental através do advento da religião institucionalizada, pois esta para se consolidar no seio de nossa civilização, teria necessidade de inverter a qualidade afirmativa dos valores pagãos (greco-romanos) que privilegiam a saúde, a compreensão refinada da sensualidade e a legitimação da corporeidade em favor de uma disposição ascética doentia.
A dissolução da afirmação trágica da existência já ocorreu a partir do surgimento do pensamento socrático-platônico e a formulação do ideal teórico da existência, no qual a racionalidade se distancia dos afetos.
É justamente a fuga dos instintos que têm lugar no corpo, e a hipertrofia da razão, que levaram à negação da vida tal como esta se apresenta.
Segundo a interpretação nietzschiana a cultura grega alcançou o seu máximo de forças criativas através da harmonia conflitante entre o impulso apolíneo (moderação e autoconsciência) e o impulso dionisíaco (desmedida e legitimação da alteridade) princípios naturais que na antiga Hélade após um período de divergências, interagiram entre si, proporcionando a criação da tragédia ática dotada de celebração estética como um todo era divinizada, para além de qualquer conotação moral de mundo.
No entanto, a racionalidade socrático-platônica rompe esse laço primordial peculiar dos gregos, vislumbrando a elevação que coloca o corpo inferior à alma preparando o terreno para difusão da moral cristã.
Assim conforme Nietzsche destacou o que era considerado bom na cultura trágica grega, passou a ser considerado mal na civilização cristã (e no pensamento socrático-platônico) E o que era considerado mal na cultura trágica, passou a ser considerado bom na civilização cristã.
É possível identificar o ressentimento no pensamento socrático-cristão em relação ao corpo e a vida especialmente na obra Fédon mediante a ideia de que o corpo é o túmulo da alma e que viver é estar constantemente enfermo e só a morte libera o homem sábio das cadeias da sensibilidade; aliás, a própria Filosofia é considerada como um exercício para a morte, pois adestra o domínio racional sobre as paixões, mitigando progressivamente todos os apelos sensíveis do homem.
Há de se ressaltar, todavia, que a moralidade cristã potencializa ainda mais o espírito de rancor contra a existência, considerando boa a constituição vital como substancialmente má.
A valoração ressentida sempre parte primeiramente de uma avaliação do outro, do forte e saudável como “má” para em seguida autoproclamar como “boa” enquanto que na valoração forte, nobre, primeiro ocorre a avaliação pessoal como boa, para se ver o fraco, desvitalizado, como “mau”, isso é, o desprezível, pois que tal tipo pessoal não é apto a participar de contínuas atividades agonísticas .
A impotência do ressentido o impede de realizar qualquer atividade, ele espera que os outros a realizem por ele.
No momento em que isso não acontece, procura alguém para culpar por não conseguir o que deseja principalmente pela sua dor e sofrimento.
A frustração consequente, porém lhe desagrada e, por conseguinte, ele projeta a infelicidade como responsabilidade de outrem, tendo como contexto a necessidade de se sentir como bom.
A inversão radical de valores conforme Nietzsche apresentou decorreria da insatisfação da moralidade coletiva diante das condições vitais até então estabelecidas, pois os valores vigentes na Antiguidade grega da cultura olímpica e da era trágica preconizavam a beleza, a saúde do corpo e a afirmação da via como virtudes primordiais da existência, virtudes associadas ao plano da imanência, dignificando assim a existência humana.
Tanto Aquiles como Heitor, ambos inimigos figadais, são enaltecidos em diversos momentos da Guerra de Tróia e por Homero em Ilíada, Canto IX, onde se relatam as honras em favor de Aquiles.
No Canto XXII, vs. 109-130, nos quais Heitor pondera sobre a necessidade de afirmar sua dignidade de afirmar sua dignidade em qualquer circunstância e mesmo a morte de Heitor pelas mãos de seu implacável rival é evento glorioso onde recebe as homenagens sagradas.
E cada grande herói épico tal como Diomedes , Menelau , Agamêmnon e Pátroclo mereceram o seu momento de glória ou anistia para que se evidenciassem suas qualidades agonísticas.
Em todas essas circunstâncias não há quaisquer considerações morais de valor acerca dos seus atributos: a coragem e o amor pela glória os tornam “bons”.
Entre o platonismo e o Cristianismo há uma grande proximidade de ideais e de valores e no prólogo de “Além do Bem e do Mal” concluiu: “o cristianismo é um platonismo para o povo”, isto é, a sua mais completa vulgarização axiológica, mediante violento repúdio ao mundo concreto em que vivemos.
“Incapaz de suportar a própria finitude, o homem concebeu a metafísica; incapaz de tolerar a visão de sofrimento imposta pela morte construiu o Cristianismo”.
Ao negar este mundo onde vivemos, a metafísica procurou forjar a existência do outro e fez deste a sede e origem dos valores.
O cristianismo postulou um mundo verdadeiro, essencial, imutável e eterno. Arquitetou a vida após a morte para redimir a existência; fabricou o reino de Deus para legitimar as avaliações humanas.
Então de modo nefasto levou os homens a desejar ser de outro modo, querer estar em outra parte. Na tentativa de justificar a existência do homem inventou o pensar metafísico, e fabulou a religião cristã.
Mas o preço que teve que pagar foi a negação do mundo, a condenação da vida. Ao camuflar a dor, hostilizou a vida; ao esconder ou disfarçar o sofrimento, tratou o mundo como um erro a refutar (Marton, Scarlett).
A odiosa inversão de valores presente na cultura ocidental e promovida pelo ressentimento seria causa eficiente que Nietzsche denominou como formação da “má consciência”, pois o tipo fraco é incapaz de interagir com o tipo forte, e pretende se desvencilhar da responsabilidade de sua própria impotência de agir, denominado consequentemente, aquele que o sobrepuja numa interação o culpado moral maior pelo seu próprio declínio vital (Nietzsche, F. Genealogia da Moral – Uma polêmica, p. 69-71).
Por outro lado, podemos dizer que, numa perspectiva afirmativa da existência, os indivíduos inseridos em tal categoria valorizam justamente a ideia de superação de suas forças a ideia de superação de suas forças corporais, preconizando, para tanto, a realização de atividades que proporcionem a concretização deste objetivo através de salutar competitividade.
A agonística se desenvolveu por meio dessa consideração, na qual os membros de um grupo, ao pretenderem que prevaleça o melhor, promovem uma salutar disputa, na qual, em verdade, todos saem vencedores, pois cada competidor procurar dar o melhor de si nessa interação de forças, esforço esse que amplia a vitalidade do corpo e proporciona o florescimento de alegria do ânimo.
Na perspectiva do ressentimento o mundo concreto não possui uma beleza intrínseca e nem a perfeição autêntica seus adeptos defendem a existência do mundo suprassensível tido como contraponto ao mundo físico.
E nesse caso, a dimensão suprassensível não é considerada uma espécie de complemento do mundo físico, mas há antítese irreconciliável pois a sensibilidade é imputada como corruptível e pecaminosa.
E, o mundo se resumia ao palco do triunfo dos homens vis, apegado aos ditos prazeres vulgares da carne.
Quanto mais o homem aceita seus impulsos, em sua rudez e crueza, menos é domesticado e mais elevado é o nível cultural do qual faz parte.
No sentido contrário, quanto mais o homem é medíocre, fraco, servil e cobarde mais necessitará da civilização, da moral, pois viverá em todo lugar, há na vida, no próprio corpo, o “Reino do Mal”.
A acepção de que o mundo no qual vivemos seria um grande “vale de lágrimas” que é noção célebre presente no hino católico Salve Rainha, comprova que a vida física é ontologicamente degradada e que nós humanos, somos miseráveis de nascença, cabendo-nos apenas aguardar piedosamente a clemência divina.
Esse desprezo pela existência é extraordinariamente contrário ao projeto de uma religião da imanência tal como a vivenciada pelos gregos da época pré-socrática, posto que a prática religiosa, posto que a prática religiosa capaz de proporcionava ao seu praticante a aquisição de uma serenidade e alegria nas suas disposições de ânimo através da contemplação da beleza da divindade, considerando que o mundo seria expressão do seu resplandecente reflexo, de forma que o homem era unificado com a potência da natureza.
Na religiosidade grega, nada há que lembre ascese, espiritualidade e dever, tudo que se faz presente é divinizado. A base teológica de uma religião fixada na axiologia transcendente retira do mundo cotidiano a própria justificação da vida, através da separação da esfera do sensível (inferior) e do espiritual no plano superior.
O ressentimento no fraco é tido como a impossibilidade de superar as suas limitações pessoais, assim como de interagir, na sua vida concreta, com os níveis de forças dos seus adversários, desenvolve na sua engenhosa imaginação, uma série de causas puramente ilusórias, nas quais considera que, enfim, viria a ocorrer uma punição ao agressor, o forte.
A punição nascia através da fantasia da imaginação limitando-se a satisfação mórbida de seu próprio íntimo no sofrimento de seu inimigo. Como complemento dessas questões levantadas podemos dizer que a elaboração da ideia da existência do Inferno como local de expiação da iniquidade seria uma das mais grotescas criações do espírito de ressentimento contra a divergência, contra todo tipo de ação que vai de encontro dos interesses e valores teológicos instituídos dogmaticamente pela estrutura dominante dos sacerdotes.
Nietzsche ironizou o fato de Dante Alighieri ter colocado no portal do “Inferno” de sua “Divina Comédia” a inscrição: “Também a mim criou o eterno amor”. Quando o mais justificável era cogitar em: “Também a mim criou o eterno ódio”.
Quem sofre do distúrbio do ressentimento visa obter plena satisfação através da contemplação deleitosa do sofrimento alheio, uma vez eu a compensação da dor com a dor o satisfaz intimamente.
Contudo apresentou Nietzsche outra possibilidade: o uso da faculdade do esquecimento que representa um dos grandes enunciados de sua ética trágica por permitir uma compreensão sadia e vitoriosa sobre a existência.
Assim é mais adequado do que reagir aos estímulos externos, o ato de esquecer as impressões afetivas decorrentes de encontros ruins que só geram afetos degenerativos (tais como: ódio, o rancor e o medo).
O “homem escravo” é incapaz de conviver de forma harmônica com o jogo de afetos (usando-os como instrumento para a sua ação), deixando-se dominar por estes, sofrendo assim os seus terríveis revezes ao longo da sua vida.
Quando desenvolvemos a capacidade de esquecer, é possível superar o nível valorativo típico dos decadentes. O uso do esquecimento estaria vinculado principalmente pelo tipo nobre cuja vida é composta pelos afetos saudáveis.
Como expressão de fraqueza vital, o homem transfere o direito de punição para uma entidade metafísica uma ideia de Deus com traços vingativos.
O ressentido legitima a tradição teológica de caráter transcendente vislumbra a existência de divindade oposta ao Deus pleno de amor preconizado pela mensagem de Jesus.
Esquecer não é simples vis inertiae (força inercial) como creem os superficiais, mas uma força inibidora ativa e positiva, no mais rigoroso sentido, graças a qual o que é por nós acolhido, não penetra mais em nossa consciência, no estado de digestão psíquica e de todo multiforme processo da nossa nutrição corporal ou assimilação física.
A superação do ressentimento na ética de Nietzsche seria a oportunidade maior para o desenvolvimento da criação de valores afirmativos mesmo diante de condições desfavoráveis de existência.
É a tristeza e a decadência da vitalidade que leva o homem desenvolver o pessimismo tornando-se inapto a interagir afirmativamente.
O ressentimento mina lentamente a potência de agir do indivíduo, e o torna uma triste figura e de acabrunhada existência. Enfim, o que confirma que a filosofia é o exílio voluntário entre montanhas geladas.
Referências:
NIETZSCHE, F. Genealogia da Moral. Uma polêmica: Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
____________. A Filosofia na Idade Trágica dos Gregos. Disponível em: Acesso em 20.05.2014.
_____________. Trad. Tradução: Fernando R. de Moraes Barros. Sobre a verdade e a mentira em sentido extramoral. São Paulo: Hedra, 2008.
______________.Humano, Demasiado Humano, um Livro para Espíritos Livres. (In: Obras Completas - Paulo Quintela, Johann Wolfgang von Goethe, Rainer Maria Rilke, Friedrich Hölderlin, Nelly Sachs, Friedrich Nietzsche, Georg Trakl, Rio de Janeiro: Fundação Calouste Gulbenkian Serviço de Educação, 1997).
____________________________. Aurora, Reflexões sobre Preconceitos Morais. Tradução, apresentação e notas de Noéli Correia de Melo Sobrinho. Rio de Janeiro: Ed. PUC-Rio; São Paulo: Loyola, 2003.
______________________________. Além do Bem e do Mal, Prelúdio a uma Filosofia do Futuro.(In: Obras Completas: Paulo Quintela, Johann Wolfgang von Goethe, Rainer Maria Rilke, Friedrich Hölderlin, Nelly Sachs, Friedrich Nietzsche, Georg Trakl, Rio de Janeiro: Fundação Calouste Gulbenkian Serviço de Educação, 1997).
NIETZSCHE, F., Além do bem e do mal. Prelúdio a uma Filosofia do Futuro. Trad. de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.
______________________________. Genealogia da Moral, uma polêmica. (In: Obras Completas. Paulo Quintela, Johann Wolfgang von Goethe, Rainer Maria Rilke, Friedrich Hölderlin, Nelly Sachs, Friedrich Nietzsche, Georg Trakl, Rio de Janeiro: Fundação Calouste Gulbenkian Serviço de Educação, 1997_
________________________________. O Crepúsculo dos Ídolos ou como Filosofar com o Martelo. (In Obras Completas: Paulo Quintela, Johann Wolfgang von Goethe, Rainer Maria Rilke, Friedrich Hölderlin, Nelly Sachs, Friedrich Nietzsche, Georg Trakl, Rio de Janeiro: Fundação Calouste Gulbenkian Serviço de Educação, 1997).
NIETZSCHE, Friedrich. Obras Incompletas, 1ª. edição. São Paulo: Abril Cultural, 1974.
LOSURDO, Domenico. Nietzsche - o rebelde aristocrata: biografia intelectual e balanço crítico. Trad. Jaime A. Clasen. Rio de Janeiro: Revan, 2009.
RUBIRA, Luís Eduardo X. Nietzsche: do eterno retorno do mesmo à transvaloração de todos os valores (tese de doutorado).
FREZZATTI JUNIOR, WILSON. A Fisiologia de Nietzsche. A superação da dualidade. São Paulo: Editora Unijuí, 2006.
As passagens textuais das obras nietzschianas se dedicaram em considerações sobre a psicologia do ressentimento em favor de uma reflexão filosófica sobre tal disposição psíquica que tanto influenciou os caminhos axiológicos e morais de nossa civilização.
Interpretar Nietzsche é fundamental para afinal entender a história cultural do ocidente e a sua decadência que reside exatamente no ressentimento presente no indivíduo e o que o torna incapaz de criar valores afirmativos de existência.
Ao sofrer uma ofensa, tal indivíduo desenvolve em seu íntimo o anseio por uma reparação imaginária motivada pelo sentimento de vingança.
O ser ressentido sofre de enfraquecimento da vitalidade e perde qualquer vínculo efetivo com a realidade. A censurada “moral de escravos” assim chamada por Nietzsche que prevaleceu ao longo de nossa civilização que subjuga a moral nobre que é adepta de valores afirmativos de existência.
A moral cristã seria responsável pela inversão de valores ativos, depreciando e os tornando decadentes. O ressentimento como tema é questão principal da filosofia de Nietzsche, e é crucial para o entendimento do pensamento que o expõe na cultura ocidental e sua respectiva influência nas valorações morais.
O ressentimento muito influenciou os rumos axiológicos e morais bem como os mecanismos psicofisiológicos que o filósofo propôs como possíveis recursos para que as forças vitais e criativas que sobressaiam sobre as disposições decadentes da existência.
O ressentimento, em suma, é o estado psíquico de maior expressão da decadência da vitalidade humana denunciada pelo filósofo alemão em sua obra “Genealogia da Moral” .
Uma breve análise semântica da palavra ressentimento é ideal para se identificar que provém do verbo ressentir, significando o ato de sentir novamente, certa impressão motivada por um estímulo externo violento na afetividade pessoal.
É uma experiência psíquica gerada por força externa. Tal impressão pode ser reativa ou negativa em nossa afetividade, por vez debilitando nosso psiquismo por conta de espécie de entorpecimento das capacidades criativas pessoais, posto que ocorra certo envenenamento psicológico.
O ressentimento decorre da incapacidade de interagir adequadamente com os signos da diferença, com os antagonismos, de maneira que, quando marcados por esse transtorno, e assim tendemos a transferir a responsabilidade de um acontecimento para determinada causa externa, tomada simbolicamente como culpada pela nossa fraqueza e por nosso mal-estar afetivo.
O ressentido atribui a outrem a responsabilidade pelo que o faz sofrer, a quem delega momento anterior o poder de decisão, de modo a poder culpá-lo caso venha fracassar.
O ressentimento é uma doença que se origina do retorno dos desejos vingativos sobre o “eu”. É a fermentação da crueldade adiada, transmutada em valores positivos, que envenena e intoxica a alma, que fica eternamente condenada ao não esquecimento (In: KEHL, Maria Rita. Ressentimento. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2004, p. 93-94).
O ressentido não é capaz de agir afirmativamente mediante efeito externo sofrido, assimilando positivamente essa experiência, direcionando sua abertura pessoal.
Dessa forma, o ressentimento motiva a inação, a interiorização psicológica desse indivíduo que cada vez está menos disposto a expandir sua força vital através da participação em circunstâncias que exigem o dispêndio de energias intrínsecas.
Nesse sentido, Nietzsche destacou: “Todos os instintos que não se descarregam para fora, voltam-se para dentro, isto é, o que é chamado de interiorização do homem: é assim que no homem cresce o que depois se denomina alma”.
Todo o mundo interior, originalmente delgado, como que entre duas membranas, foi se expandindo se estendendo, adquirindo profundidade, largura e altura na medida em que o homem foi inibido em sua descarga para fora. (In: NIETZSCHE, F. Genealogia da Moral. Uma polêmica: Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2000, p.73).
Nietzsche desenvolveu a hipótese de coexistência de dois tipos básicos de valoração da vida ao longo da formação histórica da civilização ocidental: a “moral dos senhores” e a “moral dos escravos” no § 260 de “Além do bem e mal” .
Entre as muitas morais (desde as mais finas até as mais grosserias) que dominaram e continuam dominando encontramos traços que regularmente retornam juntos e ligados entre si: até que finalmente se revelaram dois tipos básicos e, uma diferença sobressaiu: há uma moral de senhores e uma moral de escravos. (NIETZSCHE, F., Além do bem e do mal. Prelúdio a uma Filosofia do Futuro. Trad. de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 1999, p.172).
Antes de tudo, é imprescindível esclarecemos que os termos “senhor” e “escravo” na filosofia de Nietzsche, não se referem necessariamente delimitados concretamente e definidos dentro da tônica da filosofia trágica nietzschiana.
“Senhor e escravo” não são definições axiológicas que se esgotam numa significação de cunho social e representam estamentos antagônicos que se confrontariam no decorrer do processo histórico tendo por finalidade e preponderância de uma classe sobre a outra.
Na perspectiva nietzschiana pode haver perfeitamente haver pessoas socialmente desfavorecidas com muito mais disposições “nobres”.
Um escravo propriamente dito, livre do ressentimento e do seu inerente mal-estar psíquico, é uma pessoa mais “nobre” e digna eticamente do que seu opressor social, que é oprimido, todavia, pela incontinência das suas inclinações pessoais e dos seus afetos tortuosos.
Portanto, tais valorações se referem ao modo com um dado indivíduo desenvolve ao longo de sua vida o fluxo de seu ímpeto criativo, mediante as interações com outros corpos.
Nobre e escravo são símbolos psicológicos que representam as disposições afetivas e axiológicas de uma pessoa perante o seu modo de agir cotidianamente em suas interações com o mundo circundante.
Nessas condições, uma pessoa manifesta uma qualidade “nobre” pela sua capacidade de fazer prevalecer na sua existência os afetos que favorecem a ampliação de sua força vital, de sua vontade requalificando os afetos decadentes (ódios, raiva, medo e, etc.) em afetos psicofisiologicamente saudáveis que estimulam a superação dos limites da vitalidade do seu corpo.
Já a tipologia “escrava” por sua vez, representaria a disposição psicológica de um indivíduo que deixa prevalecer na sua vida os afetos decadentes, que impedem uma compreensão positiva da existência (que é pautada na afirmação da potência criativa).
Dessa forma, a valoração “escrava” motiva a repressão da vitalidade fisiológica, fato que mitiga a capacidade do indivíduo para agir criativamente ao longo de sua existência, vilipendiando então tudo aquilo que coadune com os aspectos da saúde e da força como estados deploráveis do ponto de vista da consciência moral. As ideias de “nobre” e “escravo” em Nietzsche se antagonizam.
O ressentimento não se pauta em relações dualistas de forças vitais, como se houvesse uma personalidade que pudesse ser denominada como “forte ou fraca”.
O tipo psicológico considerado “forte” ou “nobre” quando consegue prevalecer as suas valorações ativas sobre as reativas e decadentes essa circunstância que denota a confluência das duas disposições vitais no seu organismo já a tipologia da “fraqueza” denota a predominância das valorações depressivas e as reativas sobre as forças fortes, criativas, expansivas e assimiladoras, motivando assim o empobrecimento da capacidade interativa daquele que é afetado por tal disposição.
A moral dos senhores e a moral dos escravos são diametralmente opostas principalmente sobre as condutas pelos quais os seus respectivos enfoques axiológicos sobre a complexidade das relações das suas forças vitais.
A rebelião escrava na moral começa quando o próprio ressentimento se torna criador e gera valores; o ressentimento dos seres aos quais é negada a verdadeira reação, a dos atos, e que apenas por uma vingança imaginária obtêm reparação.
Enquanto toda a moral nobre nasce de um triunfo, já a moral escrava refere-se a um “não-eu” e, este não é seu ato criador.
A inversão do olhar que estabelece valores, é necessário dirigir-se para fora, em vez de voltar-se para si, é algo próprio do ressentimento.
A moral escrava enfim requer sempre, um nascer um mundo oposto e exterior, para poder agir em absoluto (sua ação é no fundo reação).
Mesmo o nobre valorativo contém em seu psiquismo elementos fracos enquanto que o tipo escravo, ressentido, também pode conter disposições afetivas e axiológicas mais potentes somente não conseguindo dar vazão ao quantum de forças vitais que estão concentradas no seu âmago.
A fisiologia na ótica nietzschiana é fornecida a definição por Wilson Frezzatti Junior tida como a configuração de impulsos , em luz por potência. A única atividade do ressentido consiste em relembrar continuamente os seus afetos, que retornam, nalgumas vezes, numa intensidade ainda mais poderosa do que o afeto original.
A manifestação do ressentimento nas valorações da civilização ocidental seria uma das principais evidências de sua decadência criativa.
Tal declínio vital se caracteriza pela incapacidade do indivíduo ressentido se desvencilhar das impressões afetivas avaliadas como ruins que estão registradas dolorosamente na sua estrutura psicofisiológica. Mais ainda devido ao caráter de passividade peculiar do tipo ressentido, e as recordações ruins tornam a aflorar na sua mente continuamente, motivando a degenerescência de suas forças vitais, uma vez que é abalada a estabilidade da estrutura psíquica, pois que nesse ato de lembrar novamente as vivências passadas, o indivíduo consome vorazmente a sua força vital.
Nessas condições, o ressentido perde a capacidade plástica de criar o novo, tornando-se, por conseguinte, um indivíduo decadente existencialmente, destituído de sua vitalidade intrínseca.
A principal atividade do ressentido se reduz a mórbida rememoração de vivências dolorosas. O ressentimento nascido da fraqueza não é prejudicial a ninguém mais que ao próprio fraco.
O ressentimento em sua forma mais potente na história da cultura ocidental através do advento da religião institucionalizada, pois esta para se consolidar no seio de nossa civilização, teria necessidade de inverter a qualidade afirmativa dos valores pagãos (greco-romanos) que privilegiam a saúde, a compreensão refinada da sensualidade e a legitimação da corporeidade em favor de uma disposição ascética doentia.
A dissolução da afirmação trágica da existência já ocorreu a partir do surgimento do pensamento socrático-platônico e a formulação do ideal teórico da existência, no qual a racionalidade se distancia dos afetos.
É justamente a fuga dos instintos que têm lugar no corpo, e a hipertrofia da razão, que levaram à negação da vida tal como esta se apresenta.
Segundo a interpretação nietzschiana a cultura grega alcançou o seu máximo de forças criativas através da harmonia conflitante entre o impulso apolíneo (moderação e autoconsciência) e o impulso dionisíaco (desmedida e legitimação da alteridade) princípios naturais que na antiga Hélade após um período de divergências, interagiram entre si, proporcionando a criação da tragédia ática dotada de celebração estética como um todo era divinizada, para além de qualquer conotação moral de mundo.
No entanto, a racionalidade socrático-platônica rompe esse laço primordial peculiar dos gregos, vislumbrando a elevação que coloca o corpo inferior à alma preparando o terreno para difusão da moral cristã.
Assim conforme Nietzsche destacou o que era considerado bom na cultura trágica grega, passou a ser considerado mal na civilização cristã (e no pensamento socrático-platônico) E o que era considerado mal na cultura trágica, passou a ser considerado bom na civilização cristã.
É possível identificar o ressentimento no pensamento socrático-cristão em relação ao corpo e a vida especialmente na obra Fédon mediante a ideia de que o corpo é o túmulo da alma e que viver é estar constantemente enfermo e só a morte libera o homem sábio das cadeias da sensibilidade; aliás, a própria Filosofia é considerada como um exercício para a morte, pois adestra o domínio racional sobre as paixões, mitigando progressivamente todos os apelos sensíveis do homem.
Há de se ressaltar, todavia, que a moralidade cristã potencializa ainda mais o espírito de rancor contra a existência, considerando boa a constituição vital como substancialmente má.
A valoração ressentida sempre parte primeiramente de uma avaliação do outro, do forte e saudável como “má” para em seguida autoproclamar como “boa” enquanto que na valoração forte, nobre, primeiro ocorre a avaliação pessoal como boa, para se ver o fraco, desvitalizado, como “mau”, isso é, o desprezível, pois que tal tipo pessoal não é apto a participar de contínuas atividades agonísticas .
A impotência do ressentido o impede de realizar qualquer atividade, ele espera que os outros a realizem por ele.
No momento em que isso não acontece, procura alguém para culpar por não conseguir o que deseja principalmente pela sua dor e sofrimento.
A frustração consequente, porém lhe desagrada e, por conseguinte, ele projeta a infelicidade como responsabilidade de outrem, tendo como contexto a necessidade de se sentir como bom.
A inversão radical de valores conforme Nietzsche apresentou decorreria da insatisfação da moralidade coletiva diante das condições vitais até então estabelecidas, pois os valores vigentes na Antiguidade grega da cultura olímpica e da era trágica preconizavam a beleza, a saúde do corpo e a afirmação da via como virtudes primordiais da existência, virtudes associadas ao plano da imanência, dignificando assim a existência humana.
Tanto Aquiles como Heitor, ambos inimigos figadais, são enaltecidos em diversos momentos da Guerra de Tróia e por Homero em Ilíada, Canto IX, onde se relatam as honras em favor de Aquiles.
No Canto XXII, vs. 109-130, nos quais Heitor pondera sobre a necessidade de afirmar sua dignidade de afirmar sua dignidade em qualquer circunstância e mesmo a morte de Heitor pelas mãos de seu implacável rival é evento glorioso onde recebe as homenagens sagradas.
E cada grande herói épico tal como Diomedes , Menelau , Agamêmnon e Pátroclo mereceram o seu momento de glória ou anistia para que se evidenciassem suas qualidades agonísticas.
Em todas essas circunstâncias não há quaisquer considerações morais de valor acerca dos seus atributos: a coragem e o amor pela glória os tornam “bons”.
Entre o platonismo e o Cristianismo há uma grande proximidade de ideais e de valores e no prólogo de “Além do Bem e do Mal” concluiu: “o cristianismo é um platonismo para o povo”, isto é, a sua mais completa vulgarização axiológica, mediante violento repúdio ao mundo concreto em que vivemos.
“Incapaz de suportar a própria finitude, o homem concebeu a metafísica; incapaz de tolerar a visão de sofrimento imposta pela morte construiu o Cristianismo”.
Ao negar este mundo onde vivemos, a metafísica procurou forjar a existência do outro e fez deste a sede e origem dos valores.
O cristianismo postulou um mundo verdadeiro, essencial, imutável e eterno. Arquitetou a vida após a morte para redimir a existência; fabricou o reino de Deus para legitimar as avaliações humanas.
Então de modo nefasto levou os homens a desejar ser de outro modo, querer estar em outra parte. Na tentativa de justificar a existência do homem inventou o pensar metafísico, e fabulou a religião cristã.
Mas o preço que teve que pagar foi a negação do mundo, a condenação da vida. Ao camuflar a dor, hostilizou a vida; ao esconder ou disfarçar o sofrimento, tratou o mundo como um erro a refutar (Marton, Scarlett).
A odiosa inversão de valores presente na cultura ocidental e promovida pelo ressentimento seria causa eficiente que Nietzsche denominou como formação da “má consciência”, pois o tipo fraco é incapaz de interagir com o tipo forte, e pretende se desvencilhar da responsabilidade de sua própria impotência de agir, denominado consequentemente, aquele que o sobrepuja numa interação o culpado moral maior pelo seu próprio declínio vital (Nietzsche, F. Genealogia da Moral – Uma polêmica, p. 69-71).
Por outro lado, podemos dizer que, numa perspectiva afirmativa da existência, os indivíduos inseridos em tal categoria valorizam justamente a ideia de superação de suas forças a ideia de superação de suas forças corporais, preconizando, para tanto, a realização de atividades que proporcionem a concretização deste objetivo através de salutar competitividade.
A agonística se desenvolveu por meio dessa consideração, na qual os membros de um grupo, ao pretenderem que prevaleça o melhor, promovem uma salutar disputa, na qual, em verdade, todos saem vencedores, pois cada competidor procurar dar o melhor de si nessa interação de forças, esforço esse que amplia a vitalidade do corpo e proporciona o florescimento de alegria do ânimo.
Na perspectiva do ressentimento o mundo concreto não possui uma beleza intrínseca e nem a perfeição autêntica seus adeptos defendem a existência do mundo suprassensível tido como contraponto ao mundo físico.
E nesse caso, a dimensão suprassensível não é considerada uma espécie de complemento do mundo físico, mas há antítese irreconciliável pois a sensibilidade é imputada como corruptível e pecaminosa.
E, o mundo se resumia ao palco do triunfo dos homens vis, apegado aos ditos prazeres vulgares da carne.
Quanto mais o homem aceita seus impulsos, em sua rudez e crueza, menos é domesticado e mais elevado é o nível cultural do qual faz parte.
No sentido contrário, quanto mais o homem é medíocre, fraco, servil e cobarde mais necessitará da civilização, da moral, pois viverá em todo lugar, há na vida, no próprio corpo, o “Reino do Mal”.
A acepção de que o mundo no qual vivemos seria um grande “vale de lágrimas” que é noção célebre presente no hino católico Salve Rainha, comprova que a vida física é ontologicamente degradada e que nós humanos, somos miseráveis de nascença, cabendo-nos apenas aguardar piedosamente a clemência divina.
Esse desprezo pela existência é extraordinariamente contrário ao projeto de uma religião da imanência tal como a vivenciada pelos gregos da época pré-socrática, posto que a prática religiosa, posto que a prática religiosa capaz de proporcionava ao seu praticante a aquisição de uma serenidade e alegria nas suas disposições de ânimo através da contemplação da beleza da divindade, considerando que o mundo seria expressão do seu resplandecente reflexo, de forma que o homem era unificado com a potência da natureza.
Na religiosidade grega, nada há que lembre ascese, espiritualidade e dever, tudo que se faz presente é divinizado. A base teológica de uma religião fixada na axiologia transcendente retira do mundo cotidiano a própria justificação da vida, através da separação da esfera do sensível (inferior) e do espiritual no plano superior.
O ressentimento no fraco é tido como a impossibilidade de superar as suas limitações pessoais, assim como de interagir, na sua vida concreta, com os níveis de forças dos seus adversários, desenvolve na sua engenhosa imaginação, uma série de causas puramente ilusórias, nas quais considera que, enfim, viria a ocorrer uma punição ao agressor, o forte.
A punição nascia através da fantasia da imaginação limitando-se a satisfação mórbida de seu próprio íntimo no sofrimento de seu inimigo. Como complemento dessas questões levantadas podemos dizer que a elaboração da ideia da existência do Inferno como local de expiação da iniquidade seria uma das mais grotescas criações do espírito de ressentimento contra a divergência, contra todo tipo de ação que vai de encontro dos interesses e valores teológicos instituídos dogmaticamente pela estrutura dominante dos sacerdotes.
Nietzsche ironizou o fato de Dante Alighieri ter colocado no portal do “Inferno” de sua “Divina Comédia” a inscrição: “Também a mim criou o eterno amor”. Quando o mais justificável era cogitar em: “Também a mim criou o eterno ódio”.
Quem sofre do distúrbio do ressentimento visa obter plena satisfação através da contemplação deleitosa do sofrimento alheio, uma vez eu a compensação da dor com a dor o satisfaz intimamente.
Contudo apresentou Nietzsche outra possibilidade: o uso da faculdade do esquecimento que representa um dos grandes enunciados de sua ética trágica por permitir uma compreensão sadia e vitoriosa sobre a existência.
Assim é mais adequado do que reagir aos estímulos externos, o ato de esquecer as impressões afetivas decorrentes de encontros ruins que só geram afetos degenerativos (tais como: ódio, o rancor e o medo).
O “homem escravo” é incapaz de conviver de forma harmônica com o jogo de afetos (usando-os como instrumento para a sua ação), deixando-se dominar por estes, sofrendo assim os seus terríveis revezes ao longo da sua vida.
Quando desenvolvemos a capacidade de esquecer, é possível superar o nível valorativo típico dos decadentes. O uso do esquecimento estaria vinculado principalmente pelo tipo nobre cuja vida é composta pelos afetos saudáveis.
Como expressão de fraqueza vital, o homem transfere o direito de punição para uma entidade metafísica uma ideia de Deus com traços vingativos.
O ressentido legitima a tradição teológica de caráter transcendente vislumbra a existência de divindade oposta ao Deus pleno de amor preconizado pela mensagem de Jesus.
Esquecer não é simples vis inertiae (força inercial) como creem os superficiais, mas uma força inibidora ativa e positiva, no mais rigoroso sentido, graças a qual o que é por nós acolhido, não penetra mais em nossa consciência, no estado de digestão psíquica e de todo multiforme processo da nossa nutrição corporal ou assimilação física.
A superação do ressentimento na ética de Nietzsche seria a oportunidade maior para o desenvolvimento da criação de valores afirmativos mesmo diante de condições desfavoráveis de existência.
É a tristeza e a decadência da vitalidade que leva o homem desenvolver o pessimismo tornando-se inapto a interagir afirmativamente.
O ressentimento mina lentamente a potência de agir do indivíduo, e o torna uma triste figura e de acabrunhada existência. Enfim, o que confirma que a filosofia é o exílio voluntário entre montanhas geladas.
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